O texto a seguir é parte da introdução do livro A difícil democracia (Boitempo), do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos. A obra será lançada em breve.
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Nos últimos cinco anos, tenho dirigido outro projeto internacional, intitulado Alice – Espelhos estranhos, lições imprevistas: definindo para a Europa um novo modo de partilhar as experiências o mundo. Nesse projeto, que inclui os países estudados no anterior (África do Sul, Brasil, Colômbia, Índia, Moçambique, Portugal) e, além deles, a Bolívia e o Equador, procuro identificar e analisar experiências econômicas, sociais e políticas que possam ampliar e aprofundar o reconhecimento da diversidade do mundo e, dessa forma, constituir aprendizagens globais. Ou seja, aprendizagens que uma Europa arrogante e colonialista, viciada em ensinar ao mundo e nunca em aprender com ele, deverá levar em conta. Trata-se de sinais de futuros emancipatórios pós-europeus, não de um futuro emancipatório eurocêntrico, o futuro que se foi constituindo no passado hegemônico dos últimos cinco séculos.
Entre as experiências-aprendizagens está, obviamente, o vasto experimentalismo democrático a que me referi. Esse projeto termina no final de 2016, mas já é evidente a frustração das elevadas expectativas que esse experimentalismo gerou. A esperança da nação arco-íris sonhada por Nelson Mandela tem sido traída perante as continuidades evidentes do antigo regime, tanto no domínio econômico como no cultural, situação que alguns dos investigadores que participam desse projeto chamam de neoapartheid. A democracia participativa perdeu muito de seu impulso contra-hegemônico inicial, em muitas situações foi instrumentalizada, cooptada, deixou-se burocratizar, não se renovou em termos sociais nem em termos geracionais. No pior dos casos, conseguiu ter todos os defeitos da democracia representativa e nenhuma de suas virtudes. Por sua vez, as elevadas expectativas suscitadas pelos processos boliviano e equatoriano têm igualmente sido em parte frustradas, sobretudo no Equador, tendo em vista que o modelo de desenvolvimento econômico lá adotado, centrado na exploração intensiva dos recursos naturais, colidiu com os princípios da interculturalidade e da plurinacionalidade e por prevalecer sobre eles.
Entretanto, em muitos dos países estudados, a própria democracia representativa sofreu um enorme desgaste, devido a uma conjunção de fatores, todos eles convergindo na transformação da democracia liberal em democracia neoliberal, uma transformação sub-reptícia que teve lugar sem suspensão nem revisão das constituições vigentes. Essa transformação ocorreu por meio de dois processos convergentes. Por um lado, a prevalência crescente do capitalismo financeiro global corroeu a soberania dos Estados a ponto de transformar Estados soberanos em presas fáceis de especuladores financeiros e de suas guardas-avançadas, as agências de notação de crédito e o FMI. A concentração de riqueza e a degradação dos direitos econômicos e sociais estão fazendo com que o círculo da reciprocidade cidadã se estreite e cada vez mais cidadãos passem a viver na dependência de grupos sociais poderosos que têm direito de veto sobre seus modos e suas expectativas de vida, sejam eles filantropos, narcotraficantes, latifundiários industriais, empresas de megaprojetos e de mineração. A isso chamo “fascismo social”, regime social que constitui o outro lado das democracias de baixa intensidade.
Por outro lado, enquanto a democracia liberal reconhece a existência de dois mercados, a democracia neoliberal reconhece apenas um. Para a democracia liberal, há dois mercados de valores: o mercado político da pluralidade de ideias e convicções políticas em que os valores não têm preço, precisamente porque são convicções ideológicas de que se alimenta a vida democrática; e o mercado econômico, que é o mercado dos valores que têm preço, o qual é precisamente determinado pelo mercado de bens e serviços. Esses dois mercados devem manter-se totalmente separados para que a democracia liberal funcione de acordo com seus princípios. Ao contrário, a democracia neoliberal dá total primazia ao mercado dos valores econômicos e, por isso, o mercado dos valores políticos tem de funcionar como se fosse um mercado de ativos econômicos. Ou seja, mesmo no domínio das ideologias e das convicções políticas, tudo se compra e tudo se vende. Daí a corrupção endêmica do sistema político, corrupção não só funcional, como necessária. A democracia, enquanto gramática social e acordo de convivência cidadã, desaparece para dar lugar à democracia instrumental, a democracia tolerada enquanto serve aos interesses de quem tem poder econômico e social para tanto.
Vivemos, pois, uma conjuntura perigosa, na qual foram desaparecendo ou sendo descaracterizados ao longo dos últimos cem anos os vários imaginários de emancipação social que as classes populares geraram com suas lutas contra a dominação capitalista, colonialista e patriarcal. O imaginário da revolução socialista foi dando lugar ao imaginário da social-democracia, e este, ao imaginário da democracia sem adjetivos e apenas com complementos de direitos humanos.
Isso leva-nos a pensar que é preciso ter a coragem de avaliar com exigência crítica os processos e os conhecimentos que nos trouxeram até aqui e de enfrentar com serenidade a possibilidade de termos de começar tudo de novo.