CAIO

 

Há muitos anos esgotada, a edição completa das Cartas de Caio Fernando Abreu será relançada na próxima semana em e-book pela e-galáxia. Além da correpondência já conhecida, como a que consta abaixo, a nova publicação traz ainda cartas e postais inéditos do escritor aos atores Marcos Breda e Stella Miranda. O prefácio e a organização são do poeta Italo Moriconi. 

Vale lembrar que Caio Fernando Abreu (ou CFA, com alguns o chamam), falecido há 20 anos, é o homenageado deste ano da Balada Literária de São Paulo, organizada por Marcelino Freire. 

 

***

A Jacqueline Cantore

Vila de Santa Teresa, 2O.O5.83

Pôs tu s’as que acabo de chegar da fêra, guria [nota 1]. Imagina que tem uma bem aqui atrás, descobri tomando café de manhã cedo: achei vertiginoso (esse adjetivo precisa ser usado com mais freqüência). Comprei maçãs silvestres, daquelas amarguinhas e aperreadinhas, um galho de arruda (tô com um atrás da orelha), uma rosa branca, outra amarela. Tô escrevendo com uns cafés do lado, comprei uma têrmo (a marca é Aladim, pode?) ontem no armarinho, fiz amizade com a Dona Morena da cozinha. É uma têrmo de Oxum, amarelésima, acabo de provar, tá ótima.

Guriããã, não tô muito trilegal, s’as? Nada de grave: aquela gripe que me bateu forte na ponte-aérea de volta. Na terça à noite ainda tive forças para ir à Sônia [nota 2]. Conheci lá um casal lindo, M. e A. — ele, executivo, ela, militante do PDT — ela de Oxóssi, ele de Oxalá, Oxum e Ogum, Leo ascendente Aquário. Na quarta, me senti supercoitado fiquei de cama quase o dia todo, não podia respirar direito, entupidíssimo. Claro que puxei meu chicotinho de vison aquele da Fiorucci) e dê-lhe: oh-o-que-estou-fazendo-da-minha-vida-sozinho-e-abandonado-num-hotel-talvez-com-uma-pneumonia-dupla-como-é-que-vim-parar-aqui-se-morrer-ax-fixiado-durante-a-noite-só-vão-descobrir-daqui-a-um-mês-porque-ninguém-importar-etc-etc-etc. Lá pelas cinco, peguei a saia larga e o tamancão e desci a ladeira até o comércio. Comprei um vidro de mel (descobri um naturalll aqui perto), um xarope de limão bravo, comprei dez mil aspirinas.

Ontem fez uma manhã linda. Apanhei horrores de sol na piscina, o verde da tez vai esmaecendo. Tenho feito muita ginástica e yoga. Horários rígidos: acordar às 8h, almoçar às 12h, jantar às 19h. Nos intervalos, como uma ou duas maçãs. [A margem: Parece que a lobotomia não será necessária. Lembras daquele “Lugar de muito verde” da História de borboletas [nota 3]? Pois é aqui, chê.] Na verdade estou ótimo. E vou ficar melhor ainda: that’s is my revenge against the world (está certo?) [nota 4]. Bueno, à tarde desci para visitar GM [nota 5]. Que continua a mesma, naturalmente. Mas saudabilíssima, jovem, morena & dinâmica. O apartamento é igual ao quarto dela na Mundo Novo, só que maior. Enfim, a velha & boa (sometimes, you know) GM. Lá pelas tantas Ana C. liga e diz que tá vindo. Pergunto a GM como está realmente Ana C. [nota 6] Climas, caras. GM diz que vai sair para pegar o banco aberto e me deixa só esperando Ana C.

Parágrafo novo. Ao fundo, acordes iniciais do Bolero de Ravel. Fumo horrores. Vejo o sovaco direito do Cristo pela janela. Batidas na porta (não tem campainha, claro). Débeis, Abro.

Ana C. MAL. Põe mal nisso. Magra, consumida, trêmula, chorosa. Não sei contar direito. Nunca vi ninguém tão frágil. Com toda minha gripe, eu era um poço de saúde ao lado dela. Imagina uma alface (ela) ao lado de uma costela gorda (eu). E lúcida. Parou de ir trabalhar, vai pedir uma licença. [...] O mais estranho: o caso de amor continua, e ótimo. Ana C. está sofrendo de medo de amor. Não sabe bem. Medo de amor? Culpa do prazer? Não escreveu mais nada depois do Contagem regressiva [nota 7], não consegue dormir, as mãos tremem, são incapazes de datilografar ou segurar uma caneta. Está com Júpiter e Urano em oposição ao sol/Mercúrio/Vênus radicais, justifica, perguntaram? Deixei-a numa sessão de bioenergética, ia a um acupuntor hoje. Me convidou para irmos, com a namorada e maybe GM, para o sítio dela em Petrópolis, hoje à noite ou amanhã. Parece Isabelle Adjani em Nosferatu, depois que começa a ser sugada. Linda, naturalmente, mas troppo morbo. Conversando com GM, somos mais por uma terapia bageense, tipo te fresqueia, prenda, come uma costela gorda, toma uns mates, dança uma chula, uma tirana do lenço, te joga nua no açude na hora da sesta. Porque tá uma crise sensível demais, dá pra entender? Recomendei uma brahma na esquina com uma coxinha e um dreher pra rebater. Something like that [nota 8].

E subi o morro mal, pesado. Horas para voltar, S’as que é trilonge, né, guriããã. Aí acalmei. Aqui em cima é um santo retiro. A loucura fica toda lá embaixo. O tempo mal anda. Fiz amizade com um casal de velhinhos, anteontem ele fez 73 anos (Tôro), ela comprou um bolo e o três tava quebrado, com o isqueiro, consertei. Aí cantamos parabéns-e-pique-pique. Comi bolo. Cumprimentei, cumprimentei, e fui cumprimentado. God. Aí fui ver o pônei [nota 9]. S’as que só eu vejo, né guriããã.


Tô lendo Balanço final, de Tia Simone. S’as que ela é um freezer, não? Mas é estranho: quando eu morava naquele hotel da Gal. Vitorino em Porto (as côsas que já fiz...) lia Simone & Sartre o dia inteiro. Me lembrou demais. E como um karma? Eu tinha 18 anos, então. Mas o Balanço é pura razão. Te transcrevo este comentário dela:

“O que me incomoda no Journal de Anais Nin é seu esteticismo,
seu narcisismo, a estreiteza do mundo que ela cria artificialmente,
o uso imoderado que faz dos mitos, sua admiração pela astrologia.
Sua concepção da feminilidade me horroriza.”

Tia Simone [nota 10] é Capricórnio, naturalmente, do dia 9 de janeiro. Pela cara deve ter pelo menos a Lua em Virgo com ascendente Áries. Uma rocha. Astrológicas: GM acha que com Júpiter e Urano em XII no mapa do Rio, não astrologarei muito, principalmente pela quadratura com o Meio-do-Céu e Aquário na ponta da III. Não entendi o porquê, mas a verdade é que estou sem material nenhum e sem os diários de junho. Falar nisso, hoje estou no auge da minha quadratura Sol/Urano, Vênus/Netuno e Mercúrio.

Escrevi ao C. uma carta DEFINITIVA. Hesitei em mandar, Sônia falou que devia. Pedi a ele uma DEFINIÇÃO. Ou me quer e vem, ou não me quer e não vem. Mas que me diga logo pra que eu possa desocupar o coração. Avisei que não dou mais nenhum sinal de vida. E não darei. Não é mais possível. Não vou me alimentar de ilusões. Prefiro reconhecer com o máximo de tranqüilidade possível que estou só do que ficar a mercê de visitas adiadas, encontros transferidos. No plano REAL: que história é essa? No que depende de mim, estou disposto & aberto. Perguntei a ele como se sentia. Que me dissesse. Que eu tomaria o silêncio como um não e ficaria também em silêncio. Acho que fiz bem.

Não só em relação a ele, mas a muitas outras coisas, quero que daqui pra frente a vida seja hoje. A vida não é adiável. Marilene sempre soube disso, foi nisso que pensou ao deixar o Índio. Anyway, me dói a possibilidade de um não, me dói a possibilidade de um silêncio, me dói não saber de que forma chegar a ele, sacudi-lo, dizer me olha, me encara, vamos ou não vamos nessa? Bueno, os dados estão lançados, e agora só me resta lavar as mãos sujas do sangue das canções.

Acordei com aquela música do Erasmo que a Marina canta na cabeça. Como não sei a letra, vou inventando assim:

“Sei que você vai me procurar
e que a nossa vida vai mudar
sei que você vai sentir que eu
sou tão legal
filosofia, astrologia
já dizia a minha vó
antes mal acompanhado do que só
você precisa de um homem
pra chamar de seu
mesmo que esse homem seja eu.”


Sinto uma falta BRUTAL de som. Quando vieres, vamos acertar o despacho do som ou do rádio, pelo menos. S’as que falei com Maria Clara por telefone e (pausa) chegou UMA CARTA DO IGNÁCIO DE LOYOLA DE BERLIM. Adiei para hoje à noite. Já fiz todas as fantasias tensas, negativas e maravilhosas possíveis. Se for um não, s’as que não tenho futuro, né, guriããã? Aí minha vida vai ficar inteiramente-como-direi. Aí o próximo passo eu simplesmente não sei. Mas acho que não se deve pensar na vida como um jogo de xadrez. Ou sim?

Sobre tua vinda: não posso te hospedar, aqui é hotel; com GM é bom não ficares (ela tem dificuldades contigo) — mas Jorge, a Maria Clara, te espera numa nice (s’as que ela te adora, né, M’ri’lene? Ficarei na terça o dia inteiro aqui, aguardando teu chamado ou tua subida. A Sônia só atende depois das 19h, eu até poderia ir contigo até lá, depois te deixava na Rodoviária e vinha. Acho que o melhor seria me ligares da Rodoviária mesmo, assim que chegares, desço, te pego na C. , vamos à praia e voltamos para cá, algo assim. A não ser que esteja um dia horroroso, como hoje, veio até um tomado de madrugada. Te parece bién?

Sobre o D.: aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii, que cansaço! Não me apaixonei por ele, não estou apaixonado nem me apaixonaria never. [...] ODEIO pessoas que dizem mas-todo-mundo-sempre-se-apaixona-por-mim. Parece a perua da Jessica Lange seduzindo a pobre Dorothy em Tootsie (essa é a interpretação de Ana C.), só para depois rejeitar, fazer cara de santa, dizer magina, eeeeeeeeeeu? São jogos de ego, que eu conscientemente não alimento, me recuso: é uma questão ideológica. Relações humanas são outro papo. Minha maior insegurança avec That Little Grace [nota 11] nota é justamente isso: de estar (eu) alimentando um ego ávido. Acontece que descobri que sou ótimo, vou ficar melhor ainda e esta é a minha REVENGE, como já disse.

Tô tão humildezinho — e dizer isso é de uma vaidade... Veja só, aqui estou sozinho num hotel absurdo, com 34 (quase 35) anos, segurando as minhas pontas sem incomodar ninguém, sem dever nada a ninguém, sem nada além da minha cabeça. E tô achando bom, tô repetindo que bom, Deus, que sou capaz de estar vivo sem vampirizar ninguém, que bom que sou forte, que bom que suporto, que bom que sou criativo e até me divirto e descubro a gota de mel no meio do fel. Colei aquele “Eu Amo Você” no espelho. É pra mim mesmo.

Pausa Telefone. Ana C.Maaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaallllllllllllllllllllllll. A voz um fio. Está a mesma. A bioenergética não adiantou. Se continuo a fim do sítio, nos encontraríamos às 17h na casa de GM. Continuo (com medo). Vou. Nos encontramos. Ana C. está excessivamente débil, excessivamente yin, autocomplacente na própria fragilidade. Continuo a ser pela terapia Fala Grosso Veado. S’as que descobri que a fraqueza me deixa impaciente, deve ser Marte em 1.

Paro pra olhar a paisagem, as palmeiras. M. me disse que, na natureza, tudo que tem pontas é de Oxóssi. Descobri que a maioria das pessoas que conheço me desvitalizam. E eu não vou permitir mais, nunca mais. Você é uma exceção. Maria Clara, o Jorge, outra. Pedro Paulo, outra. Me diz uma côsa, Vênus conjunção Lua não bota muita mulher na roda? Tava a fim não.

O céu tá cinza e, ainda assim, vejo o horizonte. Montanhas. O mundo é maior daqui do que da rua Camiranga. Vou ter que amamentar muito Ana C. Lua e Vênus em Câncer não dão uma capacidade fantástica de alimentar bebês? E dê-lhe Malzebier.

[. . .] Quero porque quero um namorado. Lendo William Burroughs no Leia ontem descobri que, em árabe, não existe a palavra amor. Não existe nenhuma palavra para explicar um relação entre pessoas que exclua a tesão, a atração física. Donde lembrei Pérsio [nota 12]: amor é invenção ocidental. Ana C. cita um livro, O amor e o ocidente [nota 13], sobre isso. O amor puro, ocidental, não dá certo porque não existe. Amizade, companheirismos sim. Agora, Amor? God. Quero porque quero um namorado sexuado, não um bandido, um eletricista, uma transinha — um corpo com um cérebro e emoções. Que trepe e ache ou não coisas de, por exemplo, Robert Altman. Mas em primeiro lugar: que trepe. Existe?, perguntaram. E tão simples, responderam. Mas onde está?, insistiram. Não desista, responderam. Então tá, concordaram.

Beijo pra Cida. Toma um café, que o mundo acabou faz tempo. Love from

 

                                                                                                                                          Caio F.

 


* Agora em ritmo tropical!
Axé! Me traz a pasta de astrologia.

 

 

 

 

NOTAS

[nota 1]: Nas cartas a Jacqueline Cantore, Caio usa linguagem cômica, imitando um modo coloquial e agauchado de falar. Nessas cartas, ele também chama Jacqueline pelos mais diversos apelidos — Marilene, Anthea, M’r’len são alguns dos mais freqüentes — assim como se duplica a si próprio, assumindo codinomes femininos, o principal sendo Marilene. Assim, as cartas se transformam em jogo vertiginoso de máscaras que se espelham: é Marilene escrevendo para Marilene, bem dentro do que se poderia chamar “humor bicha” ou “queer”. Esse tipo de humor, com suas mascaradas dissociações de personalidade e travestismos fake, vai aparecer também em outras cartas, dirigidas a outros destinatários. E própria dessa modalidade de humor a criação de códigos cômicos idiossincráticos, todo um vocabulário, como no caso de Caio, que usava, tanto nas cartas como em suas crônicas e ficções, termos por ele inventados: jacira (bicha); lasanha (homão bonito); rodenir (coisa brega), etc. Talvez o maior praticante de humor queer na imprensa brasileira seja o colunista José Simão, da Folha de S.Paulo.

[nota 2]: Mãe-de-santo estabelecida no bairro carioca do Méier. Segundo depoimentos de amigos, durante uma certa época Caio a consultava para tudo

[nota 3]: “Uma história de borboletas”, conto que integra o livro Pedras de Calcutá (1ª ed. de 1977, 2ª ed. de 1996, pela Cia. das Letras).

[nota 4]: nota do Suplemento Pernambuco – a tradução da frase: “esta é a minha vingança contra o mundo”.

[nota 5]: Apenas as iniciais, já na carta original.

[nota 6]: A poeta Ana C. (Ana Cristina Cesar), já vivendo a crise que a levaria ao suicídio cinco meses depois.

[nota 7]: Poema de Ana C. lido por ela com muito sucesso nas noitadas cariocas de leitura de poesia durante o ano de 1982. Foi postumamente incluído no livro Inéditos e dispersos (Ed. Atica, 1998, 3 ed.).

[nota 8]: nota do Suplemento Pernambuco – a tradução da frase: “algo assim” ou "algo tipo isso".

[nota 9]: “Pônei”: pessoa de baixa estatura, de rabo-de-cavalo, na gíria caio-queer.

[nota 10]: Simone de Beauvoir, a romancista e pensadora francesa radical, ligada ao movimento existencialista dos anos 40/50 do século passado, parceira do filósofo e escritor Jean-Paul Sartre.

[nota 11]: nota do Suplemento Pernambuco – a tradução da frase: “com aquela pequena graça", com "graça" no sentido de "presente", "dádiva".

[nota 12]: O personagem Pérsio, da novela “Pela noite”, a última das três narrativas que compõem Triângulo das águas.

[nota 13]: Livro organizado pelo historiador francês Georges Duby, uma coletânea de artigos sobre as diferentes modalidades de amor e erotismo em situações históricas diversas (Ed. Brasiliense, 1982).

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