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O texto abaixo é o primeiro conto do livro Contos de Kolimá 4, do russo Varlam Chalámov (1907-1982), lançado recentemente pela Editora 34. Os contos são fruto da vivência do autor em um campo de concentração em Kolimá, região da Sibéria, durante vinte anos. Posteriormente, ele segue a Moscou e passa a se dedicar à escrita da obra, que lhe tomaria 20 anos. Os Contos de Kolimá são divididos em seis volumes, dos quais cinco já foram lançados. 

No texto abaixo, o autor cruza sua experiência ao conviver com criminosos com a de Dostoiévski (foto acima), e de como ambos transformaram isso em literatura. 

 

 

A propósito de um equívoco da literatura

A literatura de ficção sempre representou o mundo dos criminosos com simpatia, por vezes com complacência. Seduzida por seu esplendor aparente, ela o envolveu de uma aura romântica. Os artistas não foram capazes de discernir a verdadeira e repugnante face desse mundo. É um pecado pedagógico, um erro pelo qual nossa juventude paga muito caro. Pode-se até compreender que um rapaz de catorze ou quinze anos se deixe fascinar pelas figuras heroicas desse universo; mas a um artista é imperdoável. Entretanto, mesmo entre os grandes escritores não encontramos um que, discernindo a verdadeira face do bandido, tenha lhe voltado as costas ou o tenha reprovado como todo grande artista devia reprovar o que é moralmente inadmissível. Por capricho da história, os mais expansivos propagadores da consciência e da honra, como Victor Hugo, por exemplo, consagraram grandes esforços ao louvor do mundo do crime. A Hugo parecia que o mundo do crime é aquela parte da sociedade que protesta abertamente, com firmeza e decisão, contra a hipocrisia do mundo dominante. Mas ele não se deu ao trabalho de examinar de que posição essa comunidade de malfeitores luta contra qualquer poder governamental. Não são poucos os rapazes que depois da leitura do romance de Hugo buscam conhecer “miseráveis” reais. O apelido “Jean Valjean” existe até hoje entre os bandidos.

Em suas Recordações da casa dos mortos, Dostoiévski evita dar uma resposta clara e direta a essa questão. Do ponto de vista do verdadeiro mundo do crime — dos autênticos blatares [nota 1] — todos esses Petrov, Lutchka, Suchilov, Gazin [nota 2] são uns “patos”, otários, broncos, isto é, fráieres [nota 3] são aqueles que a bandidagem despreza, espolia e pisoteia. Para os blatares, os assassinos e ladrões Petrov e Suchilov estão muito mais próximos do autor de Recordações da casa dos mortos que da bandidagem. Os “ladrões” de Dostoiévski eram alvo de ataque e roubo do mesmo modo que Aleksandr Petróvitch Goriantchikov [nota 4] e seus pares, por maior que fosse o abismo que separava os delinquentes de origem nobre daqueles que provêm da gente simples. É difícil dizer por que Dostoiévski não se decidiu por construir uma imagem verídica dos bandidos. Um bandido não é simplesmente aquele que rouba. É possível roubar, e até mesmo de modo sistemático, mas não ser um blatar, ou seja, não pertencer a essa abominável ordem clandestina que a bandidagem representa. Ao que parece, na colônia penal onde Dostoiévski esteve preso não havia essa “categoria”. Normalmente, tipos como esse não são condenados a penas de prazo muito longo, pois não é de assassinos que se constitui sua grande maioria. Ou melhor, não se constituía no tempo de Dostoiévski. Blatares condenados por atos “banhados de sangue”, aqueles criminosos de mão “ousada”, não eram especialmente numerosos no mundo do crime. Arrombadores, assaltantes, golpistas, batedores de carteira — eis as principais categorias da sociedade dos urkas, ou urkaganes [nota 5], como se autodenominam os criminosos. A expressão “mundo do crime” é um termo com significado preciso. Vigarista, meliante, urka, urkagán, blatar — são todos sinônimos. Dostoiévski não os encontrou em sua prisão; se os tivesse encontrado, teríamos sido privados, talvez, das páginas mais nobres de seu romance, aquelas que afirmam a fé no homem, na existência de um princípio positivo na natureza humana. Mas Dostoiévski não encontrou verdadeiros blatares. Os personagens encarcerados de Recordações da casa dos mortos são pessoas tão ocasionais no crime quanto o próprio Aleksandr Petróvitch Goriantchikov. O roubo, por exemplo, de um pelo outro — o que Dostoiévski especialmente ressalta, detendo-se nisso por muitas vezes —, acaso seria coisa possível no mundo dos blatares? O que por lá se encontra é a espoliação dos fráieres, a repartição do espólio, o jogo de cartas e a passagem das coisas roubadas de um bandido a outro, a depender da vitória nas partidas de faraó ou trinta e um. Na Casa dos mortos, Gazin vende aguardente, o que também fazem outros taberneiros. Mas os blatares não esperariam muito para extorquir a bebida de Gazin, de modo que ele não teria tempo de fazer carreira.

De acordo com a antiga “lei” da bandidagem, um blatar não deve trabalhar no lugar em que está preso, seu trabalho deve ser feito por fráieres. No mundo do crime, esses Miasnikov e Varlamov receberiam o desdenhoso apelido de “carregadores do Volga”. Nenhum desses “ossos” (soldados), Bakluchin, maridos de Akulka, [nota 6] tem qualquer coisa a ver com o mundo dos criminosos profissionais, o mundo da bandidagem. São apenas homens que vieram a se deparar, por algum acaso, com a força negativa da lei, que ultrapassaram às cegas algum limite, como Akim Akimovitch — um típico fraieriuga [nota 7]. Quanto ao mundo blatar — é um ambiente que tem sua lei e que mantém guerra constante com esse outro mundo do qual são representantes tanto Akim Akimovitch quanto Petrov, juntamente com o major “oito-olhos”.

O major é até mais próximo aos blatares. É uma autoridade comissionada por Deus, então, lidar com ele, enquanto representante do poder, é um tanto mais simples, e a um major desses qualquer blatar teria muitas coisas belas a dizer sobre justiça, honra e outras matérias elevadas. Ludíbrio que há séculos se repete. O ingênuo major de rosto espinhento é deles um inimigo declarado, enquanto tipos como Akim Akimovitch e Petrov são suas vítimas.

Em nenhum dos romances de Dostoiévski os bandidos estão de fato representados. Dostoiévski não os conhecia, e se os viu e conheceu, como artista voltou-lhes as costas.

(...)

O mundo do crime permanece, desde os tempos de Gutenberg até nossos dias, um livro fechado a sete selos, tanto para autores, quanto para leitores. Os escritores que abordaram esse seriíssimo tema trataram-no levianamente, deixando-se seduzir e iludir pelo fosforescente brilho da criminalidade, adornando sua verdadeira face com uma máscara romântica, com o que reforçam, no leitor, uma ideia inteiramente falsa desse pérfido e repugnante universo, no qual nada de humano está contido.

A agitação em torno das diversas “reforjas” acabou por dar uma trégua que salvou muitos milhares de ladrões profissionais.

Mas o que, afinal, é o mundo do crime?

 

***

 

Todas as notas são do tradutor Francisco de Araújo. 

[nota 1]: De blatar: bandido ou criminoso profissional que segue o “código de conduta” da bandidagem. 

[nota 2]: Personagens de Recordações da casa dos mortos (1862), de Dostoiévski, romance baseado na experiência do escritor, que ficou detido por quatro anos numa colônia penal siberiana. 

[nota 3]: De fráier: termo do jargão criminal. Designa o criminoso ocasional, que não faz parte da bandidagem; sinônimo de ingênuo, vítima dos bandidos de verdade.

[nota 4]: Personagem condenado pelo assassinato da esposa, do qual as memórias, lidas por um narrador, constituem o enredo, conduzido em primeira pessoa, de Recordações da casa dos mortos

[nota 5]: De urka, urkagán: bandido proeminente no mundo do crime; de modo geral equivale ao termo blatar. 

[nota 6]: Estes últimos, citados em sequência, são outros personagens de Recordações da casa dos mortos; o “marido de Akulka”, em particular, é personagem-título de um dos capítulos.

[nota 7]: Variação diminutiva de fráier

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