Freud Sign

 

 

O texto a seguir é um trecho do livro A cura pelo espírito (Zahar), de Stefan Zweig (1881-1942), que será lançado na próxima quinta (19/01). Nele, Zweig traça ensaios analíticos sobre três nomes: Franz Mesmer (1734-1815), médico alemão que desenvolveu as ideias e práticas do magnetismo; Mary Baker Eddy (1821-1910), criadora do movimento Ciência Cristã; e Sigmund Freud (1856-1939). É sobre o último que versa o excerto abaixo. A tradução é de Kristina Michahelles. 

 

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Durante um século terrivelmente longo [o século XIX] essa covarde conspiração do silêncio “moral” domina a Europa. De repente, uma voz vem rompê-lo. Sem qualquer intenção revolucionária, um belo dia um jovem médico se levanta no círculo dos seus colegas e, a partir de suas pesquisas sobre a natureza da histeria, fala das perturbações e dos recalcamentos do mundo das pulsões e de como eles podem ser postos a descoberto. Não emprega grandes gestos patéticos, não proclama agitado que é tempo de apoiar as concepções morais em novas bases, de discorrer livremente sobre a questão da sexualidade: esse jovem médico rigorosamente objetivo não representa de forma alguma o papel de pregador civilizatório no meio acadêmico. Limita-se a fazer uma palestra diagnóstica das psicoses e de suas origens. Mas é justo a calma e a naturalidade com que constata que muitas – ou todas – as neuroses têm sua origem na repressão do desejo sexual que provoca um espanto horrorizado entre os colegas. Não que declarassem falsa tal etiologia – ao contrário, a maior parte deles muitas vezes já intuíra ou experimentara essas coisas; todos, no âmbito privado, têm plena consciência da importância do sexo para a constituição geral do indivíduo. Mas, como representantes de sua época, escravos da moral civilizatória, imediatamente sentem-se feridos por essa referência aberta a um fato cristalino, como se a mera indicação diagnóstica por si já fosse um gesto indecente. Entreolham-se embaraçados – afinal, esse jovem docente ignora o acordo tácito de que não se fala sobre temas espinhosos, muito menos numa sessão pública da honorabilíssima Sociedade dos Médicos? Sobre o capítulo da sexualidade, os colegas se comunicam com piscadelas – o novato deveria conhecer e respeitar essa convenção! Brinca-se sobre o tema durante uma partida de cartas, mas no século XIX, um século tão culto, jamais se expõem semelhantes teses a um fórum acadêmico! Para os colegas de faculdade, já a primeira aparição pública de Sigmund Freud – a cena aconteceu de fato – tem o efeito de um tiro de pistola numa igreja. E os mais benévolos entre eles logo deixam claro que, pelo bem de sua carreira acadêmica, seria preferível que ele abdicasse dessas pesquisas constrangedoras e impuras, pois elas não levam a nada – ou pelo menos a nada passível de ser discutido em público.

Mas, para Freud, o que importa não é a convenção, e sim a sinceridade. Encontrou uma pista e a persegue. O próprio sobressalto de seus colegas lhe revela que sem querer pôs o dedo na ferida e que, logo de primeira, chegou muito próximo do nervo do problema. Não desiste. Não se deixa intimidar nem pelas advertências bem-intencionadas dos colegas mais velhos nem pelas lamentações de uma moral ofendida que não está habituada a ser abordada de maneira tão brusca in puncto puncti – em relação à sexualidade. Com a tenaz intrepidez, com a coragem humana e a energia intuitiva que, juntas, formam o seu gênio, não cessa de pressionar cada vez mais firme aquele ponto sensível, até o abscesso do silêncio finalmente estourar, até a ferida ficar exposta e o processo de cura poder começar. Nesse primeiro ataque ao desconhecido, o jovem médico solitário ainda não pressente o quanto haverá de descobrir em tais trevas. Apenas intui a profundidade que sempre atrai magneticamente o espírito criador.

É simbólico, e não casual, que – apesar da aparente insignificância do motivo – já esse primeiro encontro de Freud com a sua geração tenha se transformado em choque. Não são apenas o pudor ofendido e uma dignidade moral adotada como hábito que se incendeiam com uma teoria isolada: não, com a clarividência nervosa de quem se sente ameaçado, o método obsoleto de silenciar logo percebe um real adversário. Não é como Freud toca nessa esfera, mas o fato de ele ousar tocar nela, que soa como uma provocação para uma batalha decisiva. Pois desde o primeiro momento o que está em jogo não são melhorias, e sim uma transformação. Não se trata de dogmas, e sim de princípios. Não se trata de detalhes, mas do todo. Cara a cara, duas formas de pensamento, dois métodos tão diametralmente opostos que entre eles não há e jamais poderá haver uma comunicação. A velha psicologia pré-freudiana, assentada na ideologia da supremacia do cérebro sobre o sangue, exige do indivíduo culto e civilizado que reprima seus impulsos via razão. Freud responde de maneira curta e grossa: as pulsões não podem ser reprimidas, e é superficial querer supor que elas desapareçam do mundo se forem reprimidas. Na melhor das hipóteses, podem ser recalcadas do consciente para o inconsciente. Mas ali se acumulam, perigosamente retorcidas nesse espaço da alma, produzindo, com sua constante fermentação, agitação nervosa, perturbação e doença. Sem ilusões, descrente no progresso, sem indulgência e de maneira radical, Freud constata que as forças das pulsões da libido, estigmatizadas pela moral, formam uma parte indestrutível do ser humano, que renasce em cada embrião, elemento que jamais poderá ser eliminado, mas, na melhor hipótese, transformado em atividade inofensiva ao ser transportado para o nível da consciência. Portanto, Freud considera um processo saudável precisamente aquilo que a velha ética social declara um pecado capital, ou seja, a conscientização. E prova que o perigo é justo o que era considerado saudável: o recalcamento. Onde o velho método recomendava ocultar, Freud exige a exposição. Quer identificar em vez de ignorar. Enfrentar em vez de esquivar-se. Aprofundar em vez de desviar a vista. Descobrir em vez de encobrir. As pulsões só podem ser disciplinadas por quem as compreende. Os demônios só podem ser dominados por quem os tira do abismo e os encara de frente. A medicina tem tão pouca relação com a moral e o pudor como com estética ou filologia. Sua principal tarefa não é silenciar os mais misteriosos segredos do homem, mas trazê-los à tona através da fala. Sem se importar com o puritanismo do século, Freud expõe esses problemas do autoconhecimento e da autoconfissão do inconsciente e do que foi recalcado. Com isso, dá início ao tratamento não apenas de inúmeros indivíduos, mas de toda uma época moralmente enferma, transportando da hipocrisia para a ciência o seu conflito fundamental latente.

[…]

Admirável obra de um indivíduo: Sigmund Freud deu à humanidade uma noção mais clara de si mesma – digo mais clara, não mais feliz. Aprofundou a concepção de mundo de toda uma geração – digo aprofundou, não tornou mais bela. Pois o que é radical nunca traz felicidade, apenas decisões. Mas não faz parte do dever da ciência embalar o eterno coração pueril da humanidade com novos sonhos tranquilizadores. Sua missão é ensinar os homens a caminharem direitos e firmes em nosso áspero planeta. Nesse trabalho indispensável Sigmund Freud fez uma parte exemplar: em sua obra, a dureza se fez força, o rigor se tornou lei inflexível. Nunca, em nome do consolo, Freud apontou ao homem uma saída confortável, um refúgio em paraísos celestes ou terrenos, sempre indicou somente o caminho que conduz para dentro, o trajeto perigoso que leva às próprias profundezas. Sua clarividência não foi indulgente: seu modo de pensar não aliviou em nada a vida das pessoas. Aguda e cortante como um vento glacial, sua irrupção na atmosfera sufocante dissipou muitos nevoeiros dourados e nuvens róseas do sentimento, mas limpou o horizonte e abriu uma nova perspectiva para a vida espiritual. Graças à sua façanha, uma nova geração contempla uma época nova com um olhar diferente, mais livre, mais conhecedor, mais honesto. Se a perigosa psicose da hipocrisia, que intimidou os costumes europeus durante um século, está definitivamente afastada; se nós aprendemos a olhar para a nossa vida sem falsa vergonha; se palavras como “vício” e “culpa” despertam horror em nós; se os juízes, cientes da supremacia das pulsões na natureza humana, hesitam às vezes em proferir sentenças incriminadoras; se hoje os professores já aceitam coisas naturais com naturalidade, e a família, coisas abertas com mais abertura; se a moral tem mais sinceridade e a juventude mais camaradagem; se as mulheres aceitam mais livremente a sua vontade e o seu sexo; se aprendemos a respeitar a singularidade de cada ser e a compreender com criatividade o segredo no nosso próprio ser espiritual – todos esses elementos de um melhor e mais ético crescimento reto, devemos, nós e nosso novo mundo, em primeira linha a esse homem que teve a coragem de saber o que sabia e a tríplice coragem de impor esse seu conhecimento a uma moral obstrutiva e covardemente resistente de sua época. Alguns detalhes de sua obra podem ser passíveis de discussão, mas o que importam as minúcias?! As ideias vivem tanto da confirmação quanto da sua negação, assim como uma obra não vive menos do amor que do ódio que suscita. O único triunfo decisivo de uma ideia – e o único que ainda hoje estamos dispostos a venerar – é passar a viver. Pois na nossa época de justiça incerta nada reacende tanto a fé no predomínio do espírito quanto o exemplo vívido de que sempre basta que um só homem tenha a coragem para a verdade a fim de multiplicar a veracidade em todo o universo.

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