Nota: O conto de Conceição Evaristo (foto) será republicado na antologia Olhos de azeviche (Editora Malê), que reúne ficções de 10 escritoras negras e será lançada em fevereiro.
***
Kimbá acordou às cinco e quarenta e nove da manhã. Levantou rápido da cama e olhou o tempo. O céu já andava claro e um bruto sol ameaçava penetrar em tudo. Um dia ensolarado prometia acontecer. Sentiu-se mais aliviado. Detestava chuva. Chuva na favela era um inferno. O barro e a bosta se confundiam. Os becos que circundavam os barracos se tornavam escorregadios. As crianças e os cachorros se comprimiam dentro de casa. As mães passavam o dia inteiro gritando para que os Zezinhos se sossegassem. Antes, ele fora também Zezinho. Kimbá foi o apelido que um amigo rico, viajado por outras terras, lhe dera. O amigo notou a semelhança dele com alguém que ele havia deixado na Nigéria. Então, para matar as saudades que sentia do amigo africano, rebatizou Zezinho com o nome do outro. O brasileiro seria o Kimbá. Zezinho gostou mais do apelido do que do próprio nome. Sentiu-se mais em casa com a nova nomeação.
Olhando e sentindo o dia, Kimbá por um instante teve o desejo de deitar novamente. Era preciso, entretanto, movimentar a vida até à morte. Esse pensamento foi acompanhado de um movimento tão brusco, que o eco de seus gestos agrediu o sono de quem dormia no quarto ao lado, vizinho ao seu. Vó Lidumira, a velha sentinela, que durante toda a noite, aflitivamente, murmurou rezas, tossiu seco e pigarreou uma ave-maria. As duas irmãs de Kimbá, que igualmente ali dormiam, semidespertadas pelo acordar do rapaz, disputaram mais uma vez o único travesseiro, em que juntas aninhavam a cabeça. Sua mãe e suas tias, também contaminadas pelo movimentar do moço, lá do outro lado da parede, estremeceram, cada uma por sua vez, mas como se tivessem sido atravessadas por uma mesma e fina lâmina de aço, da cabeça aos pés.
Kimbá olhou comovido para o irmão mais velho que dormia ali no mesmo quarto com ele. Gostava do mais velho. Coitado do Raimundo! Sempre bêbado e sempre querendo mais e mais cachaça. Observou a imobilidade do outro e riu de sua própria agilidade, de seus movimentos sem direção, sem alvo certo. Levantou, e de pé sentiu melhor o seu corpo. Era alto. Espichando o braço, ultrapassava o telhado. Ficou uns segundos gozando o prazer que seu tamanho lhe dava. Sabia-se alto. Sabia-se forte. Sabia-se bonito. As mulheres gostavam dele e os homens também. Aliás, descoberta foi uma que lhe assustou muito. Uma situação perturbadora que ele lutava para esconder: os homens gostavam dele também.
Kimbá desceu um por um os degraus da escadaria da ladeira. Cá em baixo, sentiu dor e alívio. Tinha conseguido sair do barraco. Deixar tudo para trás. Todos os dias pensava que não conseguiria. Detestava a pobreza, a falta de conforto, a fossa exalando o cheiro de merda. Detestava o rosto lavado lá fora no tanque, o café no copo vazio que antes fora de geléia de mocotó, o pão comprado ali mesmo na tendinha. Detestava a voz alta e forte da mãe, as rezas de Vó Lidumira, os cuidados das tias e os olhares curiosos das irmãs.
As irmãs viviam perguntando tudo. Aonde ele ia? De onde ele vinha? Com quem ele saía? Perguntavam tudo em silêncio. Olhavam para ele de cima a baixo, e o olhar delas parava justamente ali.
Um dia ele estava com a braguilha aberta e só percebeu quando os olhares das duas pararam direto ali, mexendo com o pudor dele. Envergonhado, puxou o zíper. Porém, não tinha nada a temer, o membro dormia esquecido, macio. Ele detestava também ter de ser dois, três, vários talvez. Dava trabalho mudar o rosto, o corpo, mudar até o gosto. Seria tão bom se ele pudesse ser só ele. Mas o que era ser ele? Era ser o Zezinho? Era ser o Kimbá?
Zezinho cresceu solto pelos becos do morro. Empinava pipas, vendia picolé, aprendia um pouco das coisas da escola. Ganhava uns trocados da mãe e das tias. Brigava com as irmãs. Provava de vez em quando uns goles de pinga do irmão, que já naquela época bebia muito. Zezinho gostava de jogar capoeira. Vovó Lidumira pegava o rosário e ficava rezando-rezando, enquanto ele atacava um inimigo imaginário. Ela rezava pedindo a Senhora do Rosário que protegesse o menino. Estava chegando o tempo de guerra, dizia Vovó Lidumira. Zezinho ria. Jogava capoeira até se cansar. Depois entrava no tanque e se banhava. Saía fresco e calmo. Descia o morro e ia encontrar os amigos. Ele não gostava de seus colegas vizinhos, gostava da turma lá de baixo. No meio deles, os lá de baixo, ele, Zezinho, era o diferente. Era o que jogava capoeira, o que morava no morro, o que contava as histórias. Era ouvido sempre. Frequentava a casa de alguns sonhando com o dia em que teria tudo como eles.
Kimbá ia se distanciando do morro. Caminhava com passos seguros, tranquilos. A miséria e tudo que detestava tinha ficado para trás. Enfiou a mão no bolso, tocou na carteira que Beth tinha lhe trazido do exterior. Beth gostava dele e ele estava gostando também da mulher. Foi o amigo que lhe batizara com o nome africano que fizera as apresentações. Ela era prima do amigo, talvez. Na noite em que se conheceram, tinha acontecido um encontro bom, gostoso e cheio de safadezas.
Os dois, ele e o amigo, tinham ido à casa de Beth. O amigo falava sempre dela. Estavam bebendo na sala, quando a mulher se levantou, pediu licença e foi ao banheiro. Voltou logo após, nua. Nuazinha! O amigo começou a beijá-la e acariciá-la. Aos poucos foi tirando a roupa também. Ficaram os dois naquela louca brincadeira. O homem já estava pronto, prontinho para penetrar na mulher. Kimbá estava louco também. Tinha vergonha e desejos por todo o corpo. Estava assentado, parado, duro, de tempo em tempo cruzava e descruzava as pernas. O amigo veio caminhando lentamente em sua direção. Abriu a camisa e a calça dele beijando-lhe avidamente o membro ereto. Kimbá se assustou. Depois o amigo pegou-lhe pelo braço e o empurrou em direção da mulher. Beth abraçou-lhe buscando o seu corpo com firmeza. O amigo regozijou. Riu, riu e riu.
Kimbá esqueceu o outro, esqueceu de si próprio e se lançou dentro dela. Quando se percebeu novamente, estavam os três deitados no chão. O homem calmo, satisfeito como ele e a mulher. E só então, se viu e sentiu nu. Comparou o negrume de seu corpo com a alvura dos corpos dos dois. Achou tudo muito bonito. Queria se vestir, porém. Suas roupas estavam na poltrona, um pouco distante. E agora, como caminhar na frente dos dois? Queria se levantar e não sabia como. O amigo e a mulher se levantaram por ele e se encaminharam para o banheiro. Quando voltaram, Kimbá estava de pé, vestido no meio da sala. Queria ir embora, já era tarde. Precisava subir o morro. Os dois insistiram para que ele ficasse. Não, não podia ficar mesmo. O amigo perguntou se ele queria dinheiro para o táxi. Não queria. Gostava de andar à pé pela madrugada.
Kimbá saiu daquele encontro de corpo leve. Não sabia, porém, se estava feliz ou infeliz. Já tinha ouvido falar de pessoas que transavam juntas, mas pensava que fosse caso de cinema. Não sabia porque tinha feito aquilo. A mulher tinha um corpo bonito. Cheirava a perfumes e a sabonete. E o amigo? O que deu no amigo? Quando pensou que o amigo fosse penetrar na mulher, eis que o homem se levanta, vai atrás dele, abre a roupa dele e ainda por cima beija o membro dele! Será que o amigo era? Será que era? E agora, o que ele ia fazer? Gostava tanto dele. Frequentava a casa dele, saía com ele às vezes. Conhecera algumas amigas e amigos deles. Nunca havia percebido nada. Será que o homem ia dar em cima dele?
Quando Kimbá empurrou a porta do barraco em que morava, já era madrugada alta, quase manhã. Pode escutar o ressonar da avó, da mãe, das tias e das irmãs. Seu irmão, Raimundo, roncava alto. Da boca aberta exalava um hálito de cachaça. Virou o irmão com cuidado, o ronco diminuiu. Sentiu em seu próprio corpo o cheiro da mulher. Vestiu o calção e foi lá fora no tanque. Pegou um pedaço de sabão de coco, ligou a borracha e começou a se ensaboar. Tinha se acostumado com o sabão de coco. Não gostava de fragrância de sabonete em si próprio. Depois veio para a cama. Segunda-feira, o dia já rompia. Kimbá não conseguiu dormir. Nas horas seguintes não se levantou. Não desceu o morro. Não foi ao supermercado trabalhar.
Beth possuía Kimbá querendo ter certeza de que o homem era seu. Sabia dele com Gustavo, aliás, o conhecera por meio dele. Há muito que o amigo nutria uma paixão, um desejo intenso por Kimbá, mas não tinha tido a coragem de abordá-lo. No dia em que Gustavo falou que ia apresentá-la a um negro lindo, Beth não se entusiasmou. Estava cansada dos exageros dele. Mas com poucos encontros, no primeiro talvez, ficara apaixonada. Uma coisa estava lhe preocupando. Tinha de resolver essa questão sozinha. Não podia esquecer que entre ela e Gustavo havia um acordo tácito. Nada de ciúmes, nada de disputa entre os dois, caso um se envolvesse com o parceiro do outro. Mas com Kimbá estava sendo diferente. Não suportava pensar nele deitado recebendo e dando carinhos a alguém que não fosse ela. E o pior é que, ele que antes ficava tão sem jeito na situação, agora parecia transitar, viver, fazer amor naturalmente com os dois.
Kimbá jogou a água e sabão no chão esfregando violentamente a sujeira como se estivesse com raiva. Estava mesmo. Estava cansado do dia a dia no supermercado e da noite, a noite com Beth e o amigo. Não aguentava mais. Ou era o amigo ou era Beth. Eles lhe dariam tudo, caso ele quisesse. Tanto um como o outro já lhe haviam feito a proposta, para que ele deixasse de trabalhar e fosse morar em casas deles. Era tentador. Deixar a favela. Deixar a miséria. Deixar a família. As rezas de Vó Lidumira lhe irritavam profundamente. A velha rezava por tudo e por nada. E ele não via milagre algum. Não via nada de bom acontecer com ela ou com a família. A avó nascera de mãe e de pai que foram escravizados. Ela já era filha do “Ventre Livre”, entretanto vivera a maior parte de sua vida entregue aos trabalhos em uma fazenda. A mãe e as tias passaram a vida se gastando nos tanques e nas cozinhas das madames. As irmãs iam por esses mesmos caminhos. E ele, ele mesmo, estava ali, naquele esfrega-esfrega de chão de supermercado.
Kimbá estava gostando de Beth. Tinha vergonha deste sentimento. Não sabia como ajeitar a mulher dentro e fora do peito. Não poderia dizer para ninguém, muito menos para Gustavo. O amigo levava tudo na brincadeira. Até a amizade dos dois parecia uma brincadeira. Não seria ele que iria estragar tudo dizendo que estava gostando da moça. Havia o pior ainda. Ela era de um mundo que diziam não ser o dele. Gustavo também era das “altas”, como dizia ele próprio às vezes, quando se referia às desavenças que tinha com os pais. Ele não podia esquecer isto. Tinha de transar no meio dos dois e ter cuidado, muito cuidado.
Kimbá achava Beth muito diferente das mulheres que ele conhecera até então. Era diferente da avó, da mãe, das tias e das irmãs. Era diferente de todas as mulheres que ele conhecera na favela e no trabalho. Diferente em tudo. Desde a maneira de fazer a coisa, como na de se vestir depois. Tudo na mulher parecia ensaiado. Tinha pose para sentar, para levantar, para comer, para se sentar no vaso... Um dia ele viu a mulher sentada para fazer xixi ou cocô. Ela estava com o corpo ereto, como se estivesse em um trono. Kimbá às vezes achava que Beth era inventada, fabricada para bulir com os sentimentos, com os desejos e com a vida dele.
O amigo de Kimbá tinha certeza de que o homem não era seu. Sabia dele com Beth. Kimbá ficava com ele por amizade ou interesse talvez. Sabia que se ele tivesse de fazer uma escolha, optaria pela mulher. Sentiu um misto de ciúmes e mágoa. Afinal, tinha sido ele que havia apresentado Kimbá para a amiga. Sabia também que não era justo ficar magoado com ela e com Kimbá muito menos. Nenhum dos três tinha previsto sentimentos que pudessem mudar a situação. Jamais havia pensado em se apaixonar por Kimbá e agora estava ali, desinteressado de tudo e de todos, pensando só no homem, tal qual namoradinho envolvido pelo primeiro amor. E agora o que fazer? Que rumos tomar ou dar aquilo tudo? Como falar com Kimbá? Como mostrar ao rapaz no que tinha dado a brincadeira...
Kimbá caminhava firme em direção à casa de Beth. Sabia que ela e Gustavo esperavam por ele. Tinham combinado tudo na noite anterior. Tinham colocado o dedo na ferida. Beth estava apaixonada por ele. Ele estava apaixonado por Beth. O amigo estava apaixonado por ele. Estavam tentando viver. Beth tinha dinheiro. O amigo, dinheiro e fama. Kimbá, a noite e o dia. A decisão seria, portanto, de Kimbá, que não tinha nada a perder. Só a vida. Era só ele querer. Já que não estava dando para viver, por que não procurar a morte? Seria fácil. Primeiro Beth, depois o amigo e em seguida ele. A morte selaria o pacto de amor entre eles. A morte pelo amor dos três.
Ao acordar as cinco e quarenta e nove da manhã, Kimbá já tinha a vida acertada. Vó Lidumira, a velha sentinela, insistia em suas rezas, tinha o rosário nas mãos e murmurava padre-nossos, ave-marias e salve-rainhas. Kimbá não queria mais nada do céu, da terra ou do inferno. Ele sabia que o seu dia estava rompendo. Seria preciso coragem, muita coragem. Se as orações de Vó Lidumira nunca valeram nada, agora era o que menos valia. Detestou, profundamente, mais uma vez, a avó.
Kimbá caminhava firme, estava chegando. Parou na porta do prédio olhando tudo. Sorriu para o porteiro. O elevador demorou. Subiu a pé até ao nono andar. Beth e o amigo já esperavam por ele. Estavam os dois nus. Kimbá tirou lentamente a roupa e se sentou. Os copos já estavam preparados. Ele, com um ligeiro tremor de mãos, ofereceu o primeiro copo à mulher. O segundo ofertou ao amigo. Ao pegar o terceiro copo, o dele, teve um breve desejo de recuo. Beth e Gustavo já estavam deitados no chão à espera do mais nada.
Kimbá procurou algum motivo de vida. Os amigos estavam na quase morte. Sorveu de uma única vez a sua porção e se deitou ali no meio, para esperar com eles também.