O texto abaixo é parte da introdução da obra O pensamento africano no século XX, organizada pelo professor José Rivair Macedo (UFRGS) e lançada pela editora Expressão Popular. O evento de lançamento ocorre hoje (9), em São Paulo.
O pensamento africano no século XX reúne textos de 14 intelectuais sobre os principais nomes e ideias que norteiam os olhares sobre África e a diáspora negra.
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Ao longo dos séculos XIX-XX, durante os períodos da colonização europeia, descolonização e reorganização das sociedades africanas, os intelectuais nascidos na África apropriaram-se de um vasto conjunto de referenciais teóricos, conceituais e metodológicos, empregando-os para expressar a posição de seus coetâneos em relação ao mundo. Paralelamente aos saberes orais, tradicionais, e à experiência vivida que orientavam as formas de organização sociocultural dos povos anteriores ao período de predomínio europeu, ganhou corpo um novo tipo de saberes, eruditos, fundados em pressupostos acadêmicos, científicos, e que deu sustentação ao que se tem denominado de pensamento africano.
Um primeiro esclarecimento quanto ao alcance e a natureza dos capítulos que integram este livro tem que ver, portanto, com a explicação sobre os campos de abrangência do pensamento africano tradicional e do pensamento africano não tradicional. No primeiro caso, tem-se um vasto conjunto de saberes acumulados pela experiência ancestral, alimentado e transmitido por meio da oralidade, com acesso relativamente restrito a grupos especializados que são os tradicionalistas. Esta esfera do conhecimento africano, que poderia ser qualificado como endógeno, desenvolveu-se em paralelo aos conhecimentos escritos desde tempos recuados, e preservou elementos essenciais das culturas que lhe deram substância por vezes com maior eficácia do que os saberes escritos antigos que acabaram parcialmente desaparecendo em virtude das pressões do tempo (Aguessy, s.d., p. 113-114) [nota 1]. O pensamento não tradicional, por sua vez, diz respeito ao conjunto de saberes acumulados por um grupo particular de escritores, intelectuais, lideranças político-sociais, filósofos, literatos, artistas e cientistas sociais nascidos na África, para explicar as realidades específicas do continente.
Cabe também um esclarecimento prévio acerca da delimitação dos estudos aqui apresentados, que se referem exclusivamente a autores e questões provenientes ou envolvidos diretamente com o continente africano, caso do caribenho Frantz Fanon, que militou durante anos no movimento pela Independência da Argélia, tornando-se o teórico por excelência da revolução africana.
Tomamos, portanto, o cuidado de distinguir, e separar, pensamento africano de pensamento diaspórico. Não porque sejamos partidários da ideia de uma “essência africana” ou de uma “autenticidade africana”. Ocorre que, embora a substância que anima aquelas correntes de ideias diga respeito, praticamente, aos mesmos sujeitos, isto é, aos povos negros africanos ou de matriz africana, os deslocamentos decorrentes dos fenômenos associados à Diáspora Negra promoveram reconfigurações espaciais, temporais e culturais, com consequências inovadoras no plano identitário (Zoungbo, 2012) [nota 2]. De modo que, não obstante a origem africana seja comum aos nascidos no continente e aos afrodescendentes, neste último caso a ruptura e o deslocamento promovidos pela condição do cativeiro fendeu a identidade étnica originária e promoveu uma dupla desterritorialização (na África e no Novo Mundo), forçando movimentos de recomposição sociocultural que capacitaram os cativos e seus descendentes a resistir em situação de profunda opressão e recriar sua existência em outros termos (Piault, 1997, p. 23; Hall, 2003, p. 40) [nota 3]. Por isto, seria preciso repensar, em cada uma dessas grandes correntes de pensamento, os significados de “tradição” e “ancestralidade”, uma vinculada a reivindicações pautadas por uma identificação supostamente “étnica”, entre africanos, e outra, calcada em reivindicações identitárias de cunho racial e aberta a variados processos de fusão, sincretismo e mestiçagem, entre africanos e entre afrodescendentes.
O certo é que, para nós, americanos, latino-americanos, em busca de referências que nos capacitem a problematizar os pressupostos hegemônicos do pensamento ocidental, etnocêntrico, é fundamental recuperar, em conjunto, o aporte do pensamento africano e do pensamento afro-americano, afro-latino, afro-brasileiro. Se, no primeiro caso, a aproximação nos permite reavaliar nossa pró- pria condição de subalternidade advinda de nossa “herança colonial”, no segundo caso trata-se da apropriação de um pensamento mantido praticamente em silêncio nas esferas acadêmicas (mas que nunca deixou de ter ressonância entre ativistas dos movimentos sociais e comunidades excluídas brasileiras), bem como da recuperação da obra de autores essenciais como Manuel Querino (1851- 1923), Edison Carneiro (1912-1972), Abdias Nascimento (1914-2011) e Clóvis Moura (1925-2003), entre outros, algo que tem sido feito nos últimos anos pelos pesquisadores especializados em história e cultura afro-brasileira.
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Leitores de destacados escritores negros de orientação cristã do século XIX, como Samuel Ajayi Crowther (1809-1891), Alexander Krummel (1819-1898), ou críticos dela, como Edward Wilmot Blyden (1832-1912), e de afro-americanos das primeiras décadas do século XX, principalmente W. E. B. Dubois (1868- 1963) e Marcus Garvey (1887-1940), alguns intelectuais africanos tomaram consciência de sua responsabilidade social no processo diaspórico desencadeado pela “situação colonial” de que falava Georges Balandier em meados do século XX (Balandier, 2011) [nota 4]. Daí a identificação de jovens universitários, como Kwame Nkrumah (1909-1972) na Inglaterra, Léopold Sédar Senghor (1906-2001), Cheikh Anta Diop (1923-1986), Joseph Ki-Zerbo (1922-2006) e tantos outros, na França, com o ideário do pan-africanismo e as orientações culturais e estéticas de valorização da “África negra” – expressas de modo mais elaborado no movimento da Négritude dos anos 1930-1950.
Detectam-se, desde então, as pautas que orientariam as discussões, opções teóricas e interpretações político-sociais dos ativistas e teóricos das independências africanas entre os anos 1930 e 1970, alinhadas em torno de proposições que tinham por fim uma crítica incisiva da ordem política e intelectual vigente, colonial, e a elaboração de referenciais próprios em que encontrassem autonomia e determinação do devir dos povos do continente. Os argumentos circularam e tiveram grande eficácia junto a autores que se poderia qualificar de anticoloniais, em diálogo constante com intelectuais afro-americanos como Aimé Césaire (1913-2008), C. L. R. James (1901-1989), Frantz Fanon (1925-1961) e Edouard Glissant (1928-2011), entre outros. A maioria deles apoiava-se em pressupostos de um “nacionalismo negro-africano”, de uma “identidade negro-africana” (Sanches, 2012; Hernandez, 2014) [nota 5].
No plano historiográfico, entre os anos 1950 e 1980, os temas do “nacionalismo africano” aparecem de modo recorrente em publicações de pesquisadores oriundos da “Escola de Dakar” (muitos vinculados ao Institut Fondamental d’Afrique Noire – Ifan, e à atual Universidade de Dakar – Cheikh Anta Diop), da “Escola de Ibadan”, na Nigéria, e da “Escola de Dar-es-Salaam”, da Tanzânia (Falola, 2004, p. 223-260) [nota 6]. Estamos, aqui, diante de tendências fundadoras de um pensamento crítico ao colonialismo e ao eurocentrismo cujos limites epistemológicos seriam evidenciados pela geração de intelectuais nascidos no período da descolonização. Todavia, está fora de dúvida sua extraordinária contribuição na elaboração de um discurso de autoridade em bases acadêmicas, científicas, que reivindicava legitimidade para a visão dos próprios africanos sobre o seu passado e o seu presente, quebrando, deste modo, com o monopólio do discurso ocidental.
Paralelamente aos autores vinculados ao “nacionalismo africano” e parcialmente vinculados a eles, dos anos 1970 para cá convém considerar a contribuição de teóricos e pesquisadores comprometidos com uma leitura crítica da tradição marxista, lendo-a de modo distinto, a partir das condições estruturais concretas do continente africano, cujo expoente é Samir Amin (1931), pensador egípcio radicado há décadas no Mali e no Senegal, autor, entre tantas obras, de O desenvolvimento desigual: ensaio sobre as formações sociais do capitalismo periférico (1976) e La desconexión (A desconexão) (1988), inspirador e primeiro Secretário Executivo do Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa em Ciências Sociais em África – Codesria (Dembelé, 2011) [nota 7]. A matriz teórica de seus trabalhos está inserida em categorias gerais vinculadas a interpretações que levam em conta a existência de conexões fenomênicas de alcance universal, como os conceitos de sistema-mundo ou da “teoria da dependência”, traço visível também nos trabalhos de outros africanistas consagrados das últimas décadas como, por exemplo, Boubacar Barry e Walter Rodney (Devés-Valdés, 2003) [nota 8].
Um aspecto que merece ser sublinhado diz respeito ao fato de que, em geral, tais autores africanos foram formados segundo os pressupostos do pensamento ocidental (laico ou religioso), com maior ou menor vinculação ao que o filósofo congolês Valentin Mudimbe denominou de “biblioteca colonial”, com obras e conceitos orientados para a desconstrução de uma “razão etnológica”, limitados a uma perspectiva racializada, construída em torno da noção de “África Negra” (Mudimbe, 2013) [nota 9]. Um ponto importante concernente a tais condicionamentos diz respeito ao pequeno espaço reservado aos intérpretes africanos de formação muçulmana, nascidos no Magreb e na África Oriental.
Bem antes da primeira edição de Orientalismo (1978), de Edward Said, livro considerado por muitos o texto fundador dos “estudos pós-coloniais”, o sociólogo marroquino Abdelkébir Khatibi formulava em seu curto ensaio L’Orientalisme désorienté (O Orientalismo desorientado) uma poderosa crítica às epistemologias ocidentais – extraídas da metafísica, da ciência, a partir de uma perspectiva eminentemente técnica – empregadas para explicar o Oriente – incluído aí o Magreb africano –, incapazes de dar conta de sua diversidade, compreendê-lo e interagir com ele. Mais recentemente, o pesquisador senegalês Ousmane Oumar Kane considera imperativo repensar a influência desmedida das línguas e dos pressupostos “ocidentais” (europeus ou africanos) sobre a “inteligibilidade do real na África”, sistematizando dados concernentes à contribuição intelectual do islã na produção de sentidos para o continente e ampliando o repertório de possibilidades de interpretação, ao incluir no panorama cultural da África no período anterior, durante e posterior ao colonialismo europeu, a contribuição dos autores (africanos ou não) de língua árabe (Kane, 2003) [nota 10].
De modo geral, em que pesem as diferenças político-ideológicas e teórico-metodológicas, um traço recorrente da obra dos intelectuais aqui apontados tem que ver com a reivindicação de uma interpretação endógena das questões atinentes ao seu continente. Tem que ver com o fato de que a interpretação das realidades africanas nem sempre é feita a partir do próprio continente, nem em consonância com o ponto de vista de seus intérpretes locais, o que leva Paulin Hountondji (2008, p. 149-160) [nota 11] a perguntar-se quão “africanos” são os “estudos africanos”, e Carlos Pimenta e Vítor Kajibanga (2011) a formularem a hipótese segundo a qual os estudos africanos, o modo que têm sido elaborados usualmente, seriam “um conhecimento periférico sobre a periferia”. É, certamente, neste mesmo sentido que devem ser entendidas as proposições de Toyn Falola, em defesa de uma relativização das interpretações ocidentalizantes e de uma “politização da identidade”, de modo que, aos africanos, seja reconhecido seu “poder de definição”, isto é, sua capacidade de iniciativa na interpretação de sua existência social (Falola, 2007, p. 21).
NOTAS
Para facilitar o trabalho de pesquisadores, mantivemos as referências bibliográficas do texto no formato ABNT.
[nota 1] AGUESSY, Honorat. “Visões e percepções tradicionais”, in: SOW, Alpha; BALOGUN, Ola; AGUESSY, Honorat; DIAGNE, Pathé. Introdução à cultura Africana (Biblioteca de Estudos Africanos). Lisboa: Edições 70, s.d., p. 95-136.
[nota 2] ZOUNGBO, Victorien Lavou. “Idas e vindas: Áfricas, Américas. Trajetórias imaginárias e políticas”. Projeto História (PUCSP), n. 44, 2012, p. 9-22.
[nota 3] PIAULT, Marc H.. “Images de l’Afrique, Afrique imaginaire ou question d’identité brésilienne”. Journal des Africanistes (Paris), t. 67, n. 1, 1997, p. 9-25 e HALL, Stuart. “Pensando a diáspora: reflexões sobre a terra no exterior”, in: _____. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte; Brasília; Editora da UFMG; Unesco, 2003, p. 32-46.
[nota 4] BALANDIER, Georges. “A situação colonial: uma abordagem teórica”, in: SANCHES, Manuela Ribeiro (org.). As malhas que os impérios tecem: textos anticoloniais, contextos pós-coloniais. Lisboa: Edições 70, 2011, p. 219-252.
[nota 5] SANCHES, Manuela Ribeiro (org.). Malhas que os impérios tecem: textos anticoloniais, contextos pós-coloniais. Lisboa: Edições 70, 2012. e HERNANDEZ, Leila Leite. “A itinerância das ideias e o pensamento social africano”. Anos 90: Revista do PPG de História da UFRGS(Porto Alegre), v. 21 n. 9, 2014, p. 195-225.
[nota 6] FALOLA, Toyn. Nationalism and african intelectuals. University of Rochester Press, 2004.
[nota 7] DEMBELÉ, Demba Moussa. Samir Amin: intellectuel organique a service de l’emancipation du Sud. Dakar: Codesria, 2011.
[nota 8] DEVÉS-VALDÉS, Eduardo. “La circulacion de ideas en el mundo periferico: algunas presencias, influencias y reelaboraciones del pensamiento latinoamericano en Africa”. Anos 90: Revista do PPG de História da UFRGS (Porto Alegre), v. 10, n. 18, 2003, p. 88-98.
[nota 9] MUDIMBE, V. Y. A invenção da África: gnose, filosofia e a ordem do conhecimento. Lisboa: Mangualde (Portugal), Luanda (Angola): Edições Pedago; Edições Mulemba, 2013 (or. 1988).
[nota 10] KANE, Ousmane. Les intellectuels non europhones. Dakar: Codesria, 2003.
[nota 11] HOUNTONDJI, Paulin J. “Conhecimento de África, conhecimento de africanos: duas perspectivas sobre os estudos africanos”. Revista Crítica de Ciências Sociais (Coimbra), n. 80, 2008, p. 149-160.