Sara Montiel1 A

 

O trecho pertence ao livro Tengo miedo torero, único romance que o chileno Pedro Lemebel (1952–2015) lançou em sua carreira literária. A tradução ainda não tem editora no Brasil.

 

***

 

A tarde caía rápido em Cajón Del Maipo. O sol foi interceptado pelos morros e a luz se amoleceu pelas sombras rasantes de cor laranja. Carlos tirava fotografias, tomava medidas e fazia planos estranhos do terreno somando metros e perímetros com réguas de cálculo. Não era sobre plantas o seu trabalho? Sobre botânica ou flores ou algo parecido? Ela não entendia direito, não entendia dessas coisas universitárias. Preferia não perguntar para não falar bobagem. Preferia se fazer de louca, já que ele achava que ela era boba respondendo sempre: depois te explico. Por isso deixava ele trabalhar tranquilo, via que se abaixava sobre o caminho, de barriga no chão. Olhava como subia e descia a ladeira uma e outra vez, olhava o precipício, olhava a hora, contava os minutos, ficava pensando, voltava para olhar e retomava suas anotações. Tentava não interromper, fingindo ler a revista Vanidades que tinha levado. A mesma revista que sabia de cor e que alguma de suas amigas bichas esqueceu na sala feita de caixotes em sua casa e da qual ela se apropriou ao descobrir uma reportagem sobre Sarita Montiel. Posso botar uma música, toureiro? Carlos levantou o olhar dos papéis. Como sempre, a Louca o surpreendeu com sua alucinada fantasia barroca, com aquela mania de enfeitar até o mais insignificante momento. Boquiaberto, ficou olhando para ela trepada numa pedra com a toalha de mesa amarrada ao pescoço, simulando uma maja banhada de pássaros e anjinhos. Garbosa, com seus óculos de gata, sedutora mordendo uma florzinha, com as mãos enluvadas de amarelo e os dedos crispados no ar imitando o gesto andaluz. Divertindo-se olhou pra ela, fazendo um parêntesis em seu sério trabalho. E foi ele quem apertou a tecla do rádio cassete, participando como espectador do tablao, para vê-la girar e girar movida pela dança, ficando para sempre aplaudindo esses gestos, esses “beijos bruxos” que a Louca lhe jogava, apreciando esses lenços carmim que flutuavam em sua volta, requebrando como um caule na força dessa dança pé de chinelo, no sapateio descalço na terra molhada, sobre o limo “verde de verde limón, de verde albahaca, de verde que te quiero verde como el yuyo verde de tanta espera verde y negra soledá”.

Nunca mulher alguma tinha provocado tamanho cataclismo em sua cabeça. Nenhuma tinha conseguido desconcentrá-lo tanto, com tanta loucura e leveza. Não lembrava nenhuma namorada, das muitas que rondaram seu coração, capaz de fazer esse teatro por ele, ali, em pleno campo, sem mais espectadores que as montanhas engrandecidas pela sombra do crepúsculo. Nenhuma delas, falou ele baixinho, com os olhos baixos e confusos. Tentava recuperar o pulso de sua emoção. Procurava voltar ao raciocínio frio dos números e das equações de tempo que requeria a elaboração do seu plano. O dia avançava rápido e não haveria uma segunda oportunidade para corrigi-lo. Por isso lhe pedia, por favor, que por um instante, apenas meia hora, deixasse de olhar assim para ele, com essa lavareda escura queimando sua virilidade, demandando seu carinho. Que por favor parasse a música, essa fita cassete pressagiando desgraça, esse disco de bordel antigo ensanguentando a tarde por antecipação. Que depois poderia ouvi-lo quantas vezes quisesse, mas agora era urgente terminar o trabalho. A luz já é tênue, faltam algumas fotos e temos tempo só até as seis.

Na viagem de volta quase não falaram. Ela dormiu junto à janela e ele a cobriu com sua blusa cor de pimenta. Na realidade, ela não dormia, só estava de olhos fechados para se repor de tanta felicidade e poder retornar sem drama à sua realidade. Era muita emoção para um dia só e preferia não falar, não dizer nada para não entorpecer essa alegria. Estava quieta, embalada pelo barulho do motor, quase sem respirar, quando sentiu as mãos de Carlos agasalhando-a com a tepidez da lã de sua blusa. Assim, extasiada, se fingiu de bela adormecida para cheirar a vertigem erótica de sua axila fecunda, essa fragrância de maratona, de vestiário esportivo no côncavo cheiroso de seu corpo, deixando-a zonza, incitando seus dedos de tarântula a deslizar-se pelo banco do carro até tocar essas coxas duras, tensas por causa do acelerador. Mas se conteve, não podia aplicar no amor as lições sujas da rua. Não podia confundir, nem mal interpretar os contínuos toques, sem querer, da perna de Carlos em seu joelho. Não era a mesma eletricidade pornô vivenciada dentro dos ônibus, onde essa esfregação de panturrilhas era sintoma de outra coisa, uma proposta para tocar, amassar e esfregar uma sucuri na rota sem pedágio. Por isso congelou a cena e retirou a perna com um gesto recatado e se aconchegou na janela como uma pombinha, deixando-se envolver pelo esgotamento luminoso daquele dia.

Ao chegar, o bairro parecia um vilarejo de província, apenas iluminado por umas poucas luzes que se salvaram dos apedrejamentos. As crianças corriam pela rua se esquivando do carro, e, na esquina, a mesma patota de jovens submersos na nuvem azeda da erva. No ar intumescido do anoitecer, se ouviam os rádios tocando o rock brega de Led Zeppelin, os arpejos revolucionários de Silvio Rodriguez e o ressoar vibrante do flash noticioso no armazém da esquina:

Cooperativa, a rádio da maioria. Manola Robles informa: Um comunicado do Ministério da Casa Civil declara que a invasão domiciliar executada hoje pelos serviços de segurança do país, em várias favelas, teve como objetivo a apreensão de armas de grosso calibre, assim como numeroso material impresso chamando à rebelião. O material pertence ao movimento Frente Patriótico Manuel Rodríguez.

Uff! Baby, finalmente chegamos. É preciso tirar as coisas do carro com cuidado porque... Shhh! Carlos pediu silêncio para ouvir atento as notícias da rádio. Ela também ouviu, mas não se preocupou. Nenhuma notícia poderia ofuscar esse romântico momento do adeus. Por isso, pegou seu chapéu amarelo com flores silvestres, juntou as tralhas do piquenique, entrou em casa e subiu pela escada, esperando que Carlos subisse atrás dela para despedir-se. Mas o violento barulho do acelerador fez com que ela voltasse e mal conseguisse ver a traseira do carro virando a esquina, numa fuga apressada, como se com essa abrupta partida fugisse do seu romance campestre, de seus cheiros de malva e rosa.

Nada é perfeito, falou fechando a porta, colocando as flores na água, abrindo todas as torneiras para que esse ressoar de cataratas soltasse o nó fluvial que se acumulava em seu peito. Nada é ideal, insistiu sentindo o calor da tristeza umedecendo seu olhar, descolorindo a aquarela azul das flores murchas que esperavam o orvalho amargo e teatral do seu pranto. Mas não conseguiu chorar, por mais que tenha se esforçado em lembrar canções tristes e arpejos sentimentais, não podia desaguar o oceano atormentado de sua vida. Esse bolero seco que emanava tantas letras de amores peregrinos, tanta lírica dor de cotovelo, de amor barato, hemorragia de amor com “tinta sangre”, maldito amor, “yo que todo te lo di”, “tu querias que te dejara de querer”, “tu te quedas yo me voy”, “tu dijiste que quizás”, “tu me acostumbraste y por eso me pregunto”. Amores de folhetim, de panfleto amassado, amores perdidos, revirados na dança triste do marica sozinho, o marica faminto de “besos brujos”, o marica drogado pelo tato imaginário de uma mão pandorga tocando o céu turvo de sua carne, o marica infinitamente preso pela lepra boiola em sua gaiola, o viadinho frufru aprisionado em sua teia de aranha melancólica de maquiagens e embelecos, o marica fifi alinhavado nos pespontos de sua própria trama. Tão sozinho em seu casulo, que nem conseguia chorar sem ter um espectador apreciando o esforço de encenar uma lágrima.

É como devolver pérolas ao mar, concluiu sacudindo as flores, espalhando faíscas de vidro no ar carnavalizado pelo seu gesto travesti. Carlos não merece nem uma lágrima, nem mesmo uma gota. De jeito nenhum desperdiçaria a joia de sua tristeza com alguém tão ingrato. Alguém tão enigmático, capaz de ir embora desse jeito, sem dar nem tchau. Achando que pode pegar e largar, como se fosse um objeto, uma caixa a mais que faz parte da decoração. Sempre falando: depois eu explico, você não entende, amanhã conversamos. Acreditava que era uma bicha bobinha, apenas um porão para guardar caixas e pacotes misteriosos? O que está achando esse pirralho de merda? Será que pensava que ela não percebia? Que reuniões de barbudos eram aquelas em sua casa? Por que tanto estudar? Se fingia de zonza só por causa dele. Se aguentava tanta lorota sobre os livros das caixas era porque estava lhe fazendo um favor. Mas não suportaria humilhações. O que está achando esse pentelho abobado? Que pode me tratar assim? Acha que porque é universitário, bonito e jovem e com esses olhos tão... Só por ele se fingia de dama, só porque esses olhos amáveis a intimidavam. Se sentia constrangida com essa cortesia de menino educado. Se não fosse por isso, se não fosse porque gostava tanto dele, afloraria sua alma vagabunda e ordinária e mandaria tudo à merda. Não a assustava ficar sozinha de novo porque, certamente, não faltaria o vagabundo que, por um prato de comida, pagaria com uma boa foda. De fato, nunca faltavam os garotões que, se fingindo de amáveis, carregavam as sacolas da feira, e depois de fechar a porta, dentro de casa, ela não precisava fazer nem dizer nada porque eles, sem rodeios, diziam: então, já que você mora sozinho, quem sabe, podemos nos divertir, ando louco de vontade. Nunca faltavam os passageiros do toque de recolher, esses maconheiros que ficavam até tarde reunidos nas esquinas sem poder voltar pra casa com medo de serem presos. Sobravam os desempregados que por umas moedas, por um cigarro, por uma cama quente lhe faziam o favor sem trâmite. E ela não precisava de muito verso e esforço para que a quisessem apenas por um momento. Não precisava esgotar-se tentando parecer fina e elegante. Não era necessário tecer olhares de coração para que Carlos, só de vez em quando, a abraçasse como amigo, deixando-a tão excitada, que se sentia culpável por desejar esse corpo proibido. Tudo seria mais fácil se não tivesse que suportar o feitiço de sua presença. Voltaria a vadiar na rua pegando vagabundos e ereções momentâneas com o arpão de sua pesca milagrosa. E o amor, enluvado nesse nome amaldiçoado, deixaria apodrecer com os restos do piquenique, com os ossos do frango que fermentariam nessa ladeira do Cajón del Maipo. Onde nunca voltaria, onde jamais voltaria a dançar como uma velha ridícula para esse malnascido.

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