O trecho abaixo pertence à edição de O culpado seguido de A aleluia, de Georges Bataille, recentemente lançada pela editora Autêntica. Na obra, Bataille tenta abrir um caminho diferente para o pensamento que buscar estar à altura da "noite do não-saber". No excerto abaixo, da introdução, vemos alguns dos temas que não saem do seu radar: o medo, a verdade, a angústia.
A tradução é de Fernando Scheibe.
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Não tenho a intenção, nestas poucas linhas – que apresentam a reedição de meus dois primeiros livros [nota de rodapé] –, de buscar o princípio do qual minha reflexão procedia..., e sim de dizer, mais modestamente, de que maneira, a meus olhos, meu pensamento se afasta daquele dos outros. Sobretudo do pensamento dos filósofos. Afasta-se deste, em primeiro lugar, por causa da minha inaptidão. Só muito tarde empreendi a tarefa de adquirir os conhecimentos exigidos: disseram-me que era bem-dotado, que devia..., mas as próprias críticas – não foram poucas as que incidiram sobre o primeiro livro desta obra – me deixaram indiferente. (Tenho outras preocupações, mais razoáveis talvez…).
Gostaria de propor hoje esta explicação principal de uma atitude que se afasta: tenho medo. E nunca me senti encarregado de revelar a verdade, cada dia mais claramente, minhas atitudes são as de um doente, ou ao menos as de um homem sem fôlego, esgotado. É o medo que me conduz, o medo – ou o horror – daquilo que está em jogo na totalidade do pensamento.
A busca da verdade não é meu forte (falo aqui, sobretudo, da fraseologia que a representa). E devo agora salientar isto: mais do que a verdade, é o medo que quero e busco: aquele que um escorregão vertiginoso abre, aquele que o ilimitado possível do pensamento atinge.
Pareceu-me que o pensamento humano tinha dois termos: Deus e o sentimento da ausência de Deus; mas Deus, não sendo mais que a confusão do SAGRADO (do religioso) com a RAZÃO (o utilitário), só tem lugar num mundo onde a confusão do utilitário com o sagrado se torna a base de uma atitude tranquilizadora. Deus aterroriza se deixa de ser a mesma coisa que a razão (Pascal, Kierkegaard). Mas se ele deixa de ser a mesma coisa que a razão, estou diante da ausência de Deus. E essa ausência, confundindo-se com o último aspecto do mundo – que não tem mais nada de utilitário – e nada tendo a ver, por outro lado, com retribuições ou castigos futuros: no final, a questão ainda se coloca:
– ...o medo... sim, o medo, que só o ilimitado do pensamento atinge... o medo, sim, mas o medo de quê...?
A resposta preenche o universo, preenche o universo em mim: –...evidentemente, o medo de NADA...
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Evidentemente, na medida em que aquilo que me dá medo neste mundo não é limitado pela razão, devo tremer. Devo tremer na medida em que a possibilidade do jogo não me atrai.
Mas, humanamente, o jogo, que, por definição, permanece aberto, está, a longo prazo, condenado a perder...
O jogo não coloca em causa apenas o resultado material que, eventualmente, o trabalho pode oferecer, mas também o próprio resultado oferecido sem trabalho pelo jogo. O jogo ou a fortuna. A fortuna das armas se confunde com a coragem, com a força, mas a coragem e a força são, em definitivo, formas da chance. Podem se combinar com o trabalho, porém, o trabalho não pode alcançar com elas sua forma pura. Nem por isso é menos verdade que o trabalho, trazendo sua contribuição, aumenta as chances daquele que joga: aumenta-as na mesma medida em que, de uma maneira apropriada, aquele que joga trabalha.
Mas a aliança do trabalho com o jogo acaba favorecendo o trabalho. O aporte do trabalho ao jogo faz com que, no final, todo o espaço seja cedido ao trabalho, o jogo passando a não ter mais que o espaço reduzido ao inevitável.
Assim, ainda que minha inclinação não tivesse me lançado na angústia, as vias que o jogo poderia ter aberto para mim não me deixavam saída real. No final, o jogo só leva à angústia. E nosso único possível é o trabalho.
A angústia não é verdadeiramente o possível do homem. Claro que não! a angústia é o impossível! ela o é no sentido em que o impossível me define. O homem é o único animal que, de sua morte, soube fazer exata, pesadamente, o impossível, pois ele é o único animal que morre nesse sentido fechado. A consciência é a condição da morte completa. Morro na medida em que tenho consciência de morrer. Mas, a morte furtando a consciência, não apenas tenho consciência de morrer: essa consciência, ao mesmo tempo, a morte a furta de mim...
O homem, que, talvez, é o ápice, não é mais que o ápice de um desastre.
Como o pôr delirante do sol, aquele que a morte sepulta afunda na magnificência que lhe escapa: ela lhe escapa na medida em que o engrandece. Nesse momento, as lágrimas riem, o riso chora, e o tempo...: o tempo atinge a simplicidade que o suprime.
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Em verdade, minha linguagem só poderia se completar com minha morte. Sob a condição de não confundi-la com um aspecto violento e teatral, que o acaso lhe daria. A morte é uma desaparição, uma supressão tão perfeita que, no ápice, o pleno silêncio é sua verdade, tanto que é impossível falar dela. Aqui, o silêncio que evoco, evidentemente, só é aproximado de fora, de longe.
Acrescento: se morresse agora, é certo que intoleráveis sofrimentos figurariam no balanço de minha vida. Meus sofrimentos, que eventualmente tornariam minha morte mais penosa a alguns sobreviventes, não alterariam a supressão de que eu seria objeto.
Dessa maneira, chego ao fim da linguagem que é a morte. Em potência, trata-se ainda de uma linguagem, mas cujo sentido – já a ausência de sentido – é dado nas palavras que põem fim à linguagem. Essas palavras só têm sentido, ao menos, na medida em que precedem imediatamente o silêncio (o silêncio que põe fim): só teriam sentido pleno esquecidas, caindo decidida, subitamente, no esquecimento.
Mas permaneço, permanecemos – seja como for – no domínio onde apenas o limite do silêncio é acessível. O silêncio equívoco do êxtase é ele próprio, no limite, inacessível. Ou – como a morte – acessível por um instante.
Deixarei meu pensamento lentamente – sorrateiramente, e trapaceando o mínimo possível – se confundir com o silêncio? *
* Não. Ainda não! Seria preciso ainda aproximar meu pensamento do pensamento dos outros! De todos os outros? É possível: chego à saída prévia: não podemos, no fim, compor em seu conjunto as possibilidades do pensamento (como, aproximativamente, Hegel o fez, ele que, talvez, em certo sentido, morreu afogado...)?
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[nota de rodapé]: A experiência interior, 2. ed. revista. Seguida de Método de meditação, 1954; O culpado, 2. ed. revista. Seguido de A aleluia. Esses dois livros formam os tomos I e II da Suma ateológica (editora Gallimard)
A nota acima foi extraída da edição de O culpado, da editora Autêntica.