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Os Estados Unidos realizaram, na madrugada desta sexta-feira (7), um bombardeio na Síria. A alegação para o ataque foi agir em resposta a um atentado químico ocorrido na última terça (4), também no país árabe. Embates pontuais, batalhas ou guerras nos fazem questionar sobre quem são os verdadeiros criminosos, assassinos de um embate. Momentos em que deixamos de lado os olhares de perspectivas laterais - um lado ou outro -, para analisar incoerências e tentar captar uma visão global da situação. 

Como forma de refletir a respeito desse ataque, publicamos aqui o ensaio Quem são os criminosos de guerra?, feito por George Orwell em 1943 e centrado em como Benito Mussolini fora legitimado pelos principais líderes europeus para, posteriomente, ser execrado por eles. Mesmo as controversas ações de Mussolini na África eram endossadas (ou negligenciadas) por esses líderes. Mussolini fora preso em 1943, ano do artigo; seria executado pela Resistência Italiana dois anos depois. Ainda que fale de outros tempos - outros personagens, outras configurações políticas -, a pergunta fundamental do título e a realidade de que os sírios são os mais afetados pela disputa, nos levam a buscar encaixes desse passado no presente. 

A tradução abaixo, de Paulo Geiger, integra o livro O que é o fascismo? E outros ensaios, de Orwell, que a Companhia das Letras lança no próximo dia 17.

 

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Aparentemente, o colapso de Mussolini foi uma história extraída direto de um melodrama vitoriano. Enfim a Justiça triunfou, os homens iníquos foram derrotados, os moinhos de Deus estão fazendo seu trabalho. Numa segunda reflexão, no entanto, essa fábula moral não é tão simples nem tão edificante. Para começar, qual foi o crime, se é que houve algum, que Mussolini cometeu? Nas políticas do poder não existem crimes, porque não existem leis. E, por outro lado, há algum aspecto no regime interno de Mussolini que possa ser seriamente contestado por qualquer grupo de pessoas capacitado a emitir juízo sobre ele? Pois, como demonstra sobejamente o autor desse livro [nota 1] — e este é de fato o principal propósito do livro —, não há uma só canalhice cometida por Mussolini entre 1922 e 1940 que não tenha sido louvada e guindada aos céus pelas mesmas pessoas que agora prometem levá-lo a julgamento.

Para os fins dessa alegoria, “Cassius” imagina Mussolini, indiciado, ante um tribunal britânico, tendo como promotor o procurador-geral. A lista de acusações é impressionante, e os fatos principais — do assassinato de Matteotti até a invasão da Grécia, e da destruição da cooperativa de camponeses até o bombardeio de Addis Ababa — não são contestados. Campos de concentração, acordos rompidos, cassetetes de borracha, óleo de rícino [nota 2] — tudo é admitido. A única questão problemática é: como é que algo que era louvável na época em que vocês a praticaram — digamos, dez anos atrás — de repente torna-se repreensível? Mussolini recebe permissão de convocar testemunhas, tanto vivas quanto mortas, e demonstrar, por meio das próprias palavras impressas delas, que desde o início os responsáveis por liderar a opinião britânica o incentivaram a fazer tudo que fez. Por exemplo, aí está lorde Rothermere em 1928:

Em seu próprio país [Mussolini] foi o antídoto a um veneno mortal. Para o resto da Europa ele tem sido um tônico que fez a todos um bem incalculável. Posso alegar com sincera satisfação que fui o primeiro homem numa posição de influência pública a iluminar com uma luz correta a esplêndida conquista de Mussolini [...]. Ele é a maior figura de nossa época.

E eis Winston Churchill em 1927:

Se eu fosse italiano, estou certo de que estaria de todo coração com você em sua vitoriosa luta contra os bestiais apetites de paixões do leninismo [...]. [A Itália] forneceu o necessário antídoto contra o veneno russo. De agora em diante nenhuma grande nação estará desprovida de meios definitivos de proteção contra o crescimento canceroso do bolchevismo.

Aqui está lorde Mottistone em 1935:

Não me opus [à ação italiana na Abissínia]. Eu quis desfazer a ridícula ilusão de que seria uma coisa boa simpatizar com o oprimido [...]. Disse que seria uma coisa iníqua enviar armas ou ser conivente com o envio de armas a esses cruéis, brutais abissínios, e negá-las àqueles que estão atuando como o lado honrado.

E aqui está o senhor Duff Cooper em 1938:

No que concerne ao episódio abissínio, quanto menos se disser agora, melhor. Quando velhos amigos se reconciliam após uma briga, é sempre perigoso para eles discutir suas causas originais.

E aqui está o sr. Ward Price, do Daily Mail, em 1932:

Pessoas ignorantes e preconceituosas falam de questões relativas à Itália como se aquela nação estivesse submetida a alguma tirania da qual ela gostaria de se livrar. Com essa mórbida comiseração por minorias fanáticas que é a regra em certos setores imperfeitamente informados da opinião pública britânica, este país há muito tempo fecha os olhos ao magnífico trabalho que o regime fascista está fazendo. Já ouvi por diversas vezes o próprio Mussolini expressar sua gratidão ao Daily Mail por ter sido o primeiro jornal britânico a apresentá-lo corretamente perante o mundo.

E assim por diante, assim por diante, assim por diante. Hoare, Simon, Halifax, Neville Chamberlain, Austen Chamberlain, Hore-Belisha, Amery, lorde Lloyd e vários outros sobem ao banco das testemunhas, todos eles dispostos a defender que, se Mussolini estivesse esmagando os sindicatos italianos, não intervindo na Espanha, jogando gás de mostarda nos abissínios, expulsando árabes de aviões ou construindo uma armada para usá-la contra a Grã-Bretanha, o governo britânico e seu porta-voz oficial o apoiariam, para o que desse e viesse. Mostram-nos lady (Austen) Chamberlain apertando a mão de Mussolini em 1924, Chamberlain e Halifax com ele num banquete erguendo um brinde ao “Imperador da Abissínia”, em 1939. Lorde Lloyd bajulando o regime fascista num panfleto oficial já em 1940. A nítida impressão deixada por essa parte no julgamento é muito simplesmente que Mussolini não é culpado. Apenas mais tarde, quando um abissínio, um espanhol e um italiano antifascista apresentam sua evidência, começa a aparecer o verdadeiro caso contra ele.

Bem, o livro é todo fantasioso, mas sua conclusão é realista. É imensamente improvável que os tories [conservadores] britânicos alguma vez levem Mussolini a julgamento. Não há nada do que poderiam acusá-lo, exceto por sua declaração de guerra em 1940. Se o “julgamento de criminosos de guerra”, com o qual algumas pessoas gostam de sonhar, acontecer alguma vez, só poderá ser após revoluções nos países aliados. Mas toda a noção de encontrar bodes expiatórios, de culpar indivíduos, ou partidos, ou nações pelas calamidades que nos aconteceram suscita outras correntes de pensamento, algumas das quais bem desconcertantes.

A história das relações britânicas com Mussolini ilustra a fraqueza estrutural do Estado capitalista. Afirmar que uma política do poder não é moral, tentar comprar a Itália para que abandone o Eixo — e essa ideia subjaz claramente na política britânica de 1934 em diante —, foi um movimento estratégico natural. Mas não foi um movimento que Baldwin, Chamberlain e os demais fossem capazes de levar adiante. Isso só poderia ser feito sendo tão fortes que Mussolini não ousaria se alinhar com Hitler. Isso era impossível, pois simplesmente não é plausível que uma economia governada e motivada pelo lucro se rearme numa escala moderna. A Grã-Bretanha só começou a se armar quando os alemães estavam em Calais. Antes disso, na realidade, já tinham sido aprovadas quantias bem grandes para armamentos, mas elas escorregaram pacificamente para os bolsos de acionistas, e as armas não apareceram. Como não tinham intenções reais de reduzir seus próprios privilégios, era inevitável que a classe governante britânica conduzisse essa política sem muita vontade, e fechasse os olhos ao perigo iminente. Mas o colapso moral que isso implicava era algo novo na política britânica. No século XIX e início do XX, os políticos britânicos podiam ser hipócritas, mas hipocrisia subentende um código moral. Aconteceu algo novo quando membros conservadores do Parlamento aplaudiram a notícia de que navios britânicos haviam sido bombardeados por aviões italianos, ou quando membros da Câmara dos Lordes envolveram-se em campanhas de protesto organizadas contra crianças bascas que estavam sendo trazidas para cá como refugiadas.

Quando se pensa nas mentiras e traições daqueles anos, no cínico abandono de um aliado após outro, no otimismo imbecil da imprensa tory, na categórica recusa em acreditar que as ditaduras significavam guerra, mesmo quando elas apregoavam isso dos telhados, na incapacidade da classe endinheirada de enxergar qualquer coisa de errado em campos de concentração, guetos, massacres e guerras não declaradas, pode-se ser levado a sentir que a decadência moral desempenhou sua parte tanto quanto a mera estupidez. Em 1937, ou por volta disso, já não era possível ter dúvidas quanto à natureza dos regimes fascistas. Mas os senhores de propriedades tinham decidido que o fascismo estava do seu lado e mostravam-se dispostos a engolir os mais fedorentos males, contanto que sua propriedade ficasse em segurança. A seu modo canhestro, estavam jogando o jogo de Maquiavel, do “realismo político”, ou do “tudo que faz avançar a causa do partido está correto” — evidentemente sendo o partido, no caso, o Partido Conservador.

Tudo isso é apresentado por “Cassius”, mas ele se esquiva de um corolário. Ao longo do livro fica implícito que apenas os tories são imorais. “Mas ainda existe uma outra Inglaterra”, ele diz. “Essa outra Inglaterra detestou o fascismo desde o dia em que nasceu [...]. Era a Inglaterra da esquerda, a Inglaterra do trabalhismo.” É verdade, mas só parcialmente verdade. O comportamento efetivo da esquerda tem sido mais honroso do que suas teorias. Ela lutou contra o fascismo, mas os pensadores que a representam penetratam tão profundamente quanto seus oponentes no mundo maligno do “realismo” e da política do poder.

“Realismo” (costumava ser chamado de “desonestidade”) é parte da atmosfera política geral de nossa época. É um sinal da fraqueza da posição de “Cassius”, o fato de que alguém poderia compilar um livro muito semelhante intitulado O julgamento de Winston Churchill, ou O julgamento de Chiang Kai-shek, ou até mesmo O julgamento de Ramsay MacDonald. Em cada caso ver-se-iam os líderes da esquerda se contradizendo quase tão rudemente quanto os líderes conservadores citados por “Cassius”. Pois a esquerda também tem estado disposta a fechar os olhos a muita coisa e a aceitar alguns aliados muito duvidosos. Hoje rimos ao ouvir os tories insultando Mussolini quando o bajulavam cinco anos atrás, mas quem poderia prever em 1927 que a esquerda seria um dia tão benevolente com Chiang Kai-shek? Quem poderia prever logo após a Greve Geral que dez anos depois Winston Churchill seria o queridinho do Daily Worker? Entre os anos de 1935 e 1939, quando quase todo aliado contra o fascismo parecia aceitável, os esquerdistas viram-se louvando Mustafa Kemal e depois desenvolvendo um sentimento de ternura por Carol, da Romênia.

Embora fosse, sob qualquer critério, mais perdoável, a atitude da esquerda em relação ao regime russo tem sido claramente semelhante à atitude dos tories em relação ao fascismo. Houve a mesma tendência de lhes desculpar quase tudo “porque eles estão do nosso lado”. Não há nenhum problema que se fale sobre lady Chamberlain sendo fotografada apertando a mão de Mussolini; a fotografia de Stálin apertando a mão de Ribbentrop é muito mais recente. Como um todo, os intelectuais da esquerda defenderam o Pacto Russo-Alemão. Ele foi “realista”, assim como a política de apaziguamento de Chamberlain, e com consequências similares. Se há uma saída para a pocilga moral em que estamos vivendo, o primeiro passo em sua direção é provavelmente perceber que “realismo” não compensa, e que vender seus amigos e ficar sentado esfregando as mãos enquanto eles são destruídos não constitui a última palavra no que concerne à sabedoria política.

Esse fato é demonstrável em toda cidade entre Cardiff e Stalingrado, mas não muitos são capazes de enxergá-lo. Enquanto isso, é dever dos panfleteiros atacar a direita, mas sem bajular a esquerda. E é, em parte, por ter se satisfeito bastante facilmente consigo mesma que a esquerda chegou onde está hoje.

Mussolini, no livro de “Cassius”, depois de convocar suas testemunhas, sobe ele mesmo ao banco para testemunhar. Ele se atém a seu credo maquiaveliano: O poder é que tem razão, vae victis! Ele é culpado do único crime que conta, o crime do fracasso, e admite que seus adversários têm direito de matá-lo — mas não, ele insiste, de culpá-lo. O comportamento deles fora similar ao seu, e suas condenações morais são todas hipocrisia. Mas depois disso vêm outras três testemunhas, o abissínio, o espanhol e o italiano, que moralmente estão num plano diferente, uma vez que nunca contemporizaram com o fascismo nem tiveram oportunidade para atuar na política do poder; e todos os três pedem a pena de morte.

Eles a pediriam na vida real? Algo assim poderia um dia acontecer? Não é muito provável, mesmo que as pessoas que realmente têm direito a julgar Mussolini o tivessem, de alguma forma, em suas mãos. Os tories, é claro, conquanto se encolham ante um verdadeiro inquérito sobre a origem da guerra, não lamentam ter a oportunidade de lançar toda a culpa sobre alguns indivíduos notórios, como Mussolini e Hitler. Desse modo, a manobra Darlan-Badoglio fica mais fácil. Mussolini é um bom bode expiatório enquanto solto, mas seria um bem desastrado se estivesse preso. Mas e quanto às pessoas comuns? Elas matariam seu tirano a sangue-frio e nos conformes da lei, se tivessem a oportunidade?

É fato que houve muito poucas execuções desse tipo na história. No fim da Primeira Guerra uma eleição foi ganha em parte sob o mote “Enforque o Kaiser”, e no entanto, se alguma coisa assim fosse tentada, é provável que a consciência da nação se revoltasse. Quando tiranos são executados, deveriam sê-lo exclusivamente por seus próprios súditos; os que são punidos por uma autoridade estrangeira, como Napoleão, acabam virando mártires e lendas.

O importante no que tange a esses gângsteres políticos não é que se cause sofrimento a eles, mas que fiquem desacreditados. Felizmente, eles ficam mesmo desacreditados em muitos casos, pois com uma surpreendente frequência os senhores da guerra em suas armaduras reluzentes, os apóstolos das virtudes marciais, tendem a não morrer lutando quando chega a sua hora. A história está cheia de saídas ignominiosas dos grandes e famosos. Napoleão rendeu-se aos ingleses para obter proteção contra os prussianos, a imperatriz Eugénie fugiu numa carruagem de aluguel com um dentista americano, Ludendorff recorreu a óculos azuis, um dos mais inconvenientes imperadores romanos tentou escapar a seu assassinato trancando-se num lavatório, e durante os primeiros dias da Guerra Civil Espanhola um líder fascista fugiu de Barcelona, com requintada aptidão, por um esgoto.

É uma saída dessas que se deveria querer para Mussolini, e se ele for deixado consigo mesmo, talvez recorra a elas. Possivelmente, Hitler também. Costumava-se dizer de Hitler que quando sua hora chegasse ele nunca fugiria ou se renderia, mas pereceria de alguma maneira operística, no mínimo suicidando-se. Mas isso foi quando Hitler estava se dando bem; durante o último ano, desde que as coisas começaram a degringolar, dificilmente se pode dizer que ele tenha se conduzido com dignidade ou coragem. “Cassius” termina seu livro com um resumo feito pelo juiz e mantém o veredicto em aberto, parecendo deixar a decisão a cargo de seus leitores. Bem, se essa decisão ficasse em minhas mãos, meu veredicto tanto para Hitler quanto para Mussolini seria: não morte, a menos que infligida de um modo apressado e não espetacular. Se alemães e italianos acharem que eles devem passar por sumária corte marcial e depois por um pelotão de fuzilamento, deixemos que o façam. Ou melhor ainda, deixemos esse par escapar com uma mala cheia de títulos ao portador e se instalar como os chatos de carteirinha em alguma pension suíça. Mas nenhuma martirização, nada dessa história de Santa Helena. E, acima de tudo, nenhum solene e hipócrita “julgamento de criminosos de guerra”, com toda a lenta e cruel pompa da lei, que depois de algum tempo, de um modo muito estranho, projeta uma luz romântica no acusado e o transforma de canalha em herói.

 


Tribune, 22 de outubro de 1943 [nota 3]

 

 

NOTAS

[nota 1] O julgamento de Mussolini, de “Cassius”. (nota do editor do livro)

[nota 2] Mussolini foi acusado de obrigar seus inimigos a tomar óleo de rícino, para enfraquecê-los e humilhá-los. (nota do tradutor do livro)

[nota 3] Segundo Sérgio Augusto, que assina o prefácio do livro da Companhia das letras, O Tribune era "um quinzenário socialista londri- no, de tendência democrática, em cujas páginas analisou e discutiu as profecias do fascismo, a literatura e a esquerda, os criminosos de guerra, a complicada relação dos socialistas com o paraíso e o inferno, a panfletagem política (de que se tornou profundo connois- seur e colecionador)".

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