O texto abaixo é um trecho do ensaio de Hélène Cixous que foi republicado na edição dos 40 anos de A hora da estrela, que a Rocco lançou neste mês. Foi publicado pela primeira vez no nº 17 da revista Travessia, da Pós-graduação em Literatura da UFSC, de 1987. A tradução é de Carlos Nougué.
Acima, na imagem, um frame do filme A hora da estrela (1985), de Suzana Amaral. Na cena, Madame Carlota (Fernanda Montenegro) lê o futuro de Macabéa (Marcélia Cartaxo).
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Sempre sonhei com o último texto de um grande escritor. Um texto que seria escrito com as últimas forças, com o último alento. No último dia antes de sua morte, o escritor está sentado à beira da terra, seus pés estão leves no ar infinito, ele olha as estrelas. No dia seguinte o autor será uma estrela entre as estrelas, molécula entre todas as moléculas. O último dia é belo para quem o sabe viver, é um dos mais belos da vida. Nesse dia (eu deveria dizer nesses dias, pois o último dia bem pode ser muitos dias), vê-se o mundo com o olhar dos deuses: vou enfim tornar-me parte dos mistérios mundiais. Sentado à beira da terra, o autor já não é quase ninguém. As frases que vêm de seu coração a seus lábios estão livres do livro. São belas como a obra, mas jamais serão publicadas, e, ante a iminência do silêncio estrelado, elas aceleram-se, reúnem-se, e dizem o essencial. São adeuses sublimes à vida; não luto, mas agradecimento. Como és bela, ó vida, dizem elas.
Um dia escrevi um livro que se intitula Limonada tudo era tão infinito. Era um livro de meditação sobre uma das últimas frases de Kafka, uma frase que ele inscreveu numa folha de papel, justo antes de sua morte.
Esta frase é: Limonade es war alles so grenzenlos.
Para mim isto é O Poema, o êxtase e a saudade, o coração de todo simples da vida.
As obras derradeiras são curtas e ardentes como o fogo que se eleva para as estrelas. Às vezes, têm uma linha. São obras escritas com muita ternura. Obras de reconhecimento: pela vida, pela morte. Pois é também a partir da morte e graças à morte que se descobre o esplendor da vida. É a partir da morte que se lembram dos tesouros que a vida contém, com todos os seus infortúnios viventes e todos os seus gozos.
Há um texto que é como um salmo discreto, uma canção de graças à morte. Este texto se intitula A hora da estrela. Clarice Lispector escreveu-o quando ela já quase não era mais ninguém sobre a terra. Em seu lugar imenso, abria-se a grande noite. Uma estrela menor que uma aranha passeava ali. Essa coisa ínfima, vista de perto, mostrava-se uma criatura humana minúscula, que pesava talvez 30 quilos. Mas, vista a partir da morte, ou a partir das estrelas, era tão grande como qualquer coisa no mundo e tão importante como qualquer pessoa mais importante ou sem importância de nossa Terra.
Essa pessoa ínfima e quase imponderável se chama Macabéa: o livro de Macabéa é extremamente fino, tem a aparência de um pequeno caderno. É um dos maiores livros do mundo.
Este livro foi escrito com uma mão cansada e apaixonada. Clarice já tinha de certa maneira deixado de ser uma autora, de ser uma escritora. É o último texto, aquele que vem depois. Depois de todo livro. Depois do tempo. Depois do eu. Pertence à eternidade, a esse tempo de antes de depois do eu que nada pode interromper. A esse tempo, a essa vida secreta e infinita de que somos fragmentos.
A hora da estrela conta a história de um minúsculo fragmento de vida humana. Conta fielmente: minusculamente, fragmentariamente.
Macabéa não é (senão) uma personagem de ficção. É um grão de poeira que entrou no olho do autor e provocou um mar de lágrimas. Este livro é o mar de lágrimas causado por Macabéa. É também um mar de questões imensas e humildes que não demandam respostas: demandam a vida. Este livro se indaga: o que é um autor? Quem pode ser digno de ser o autor de Macabéa?
Este “livro” nos murmura: os seres que vivem numa obra não têm direito ao autor de que têm necessidade?
Macabéa tem necessidade de um autor muito particular. É por amor a Macabéa que Clarice Lispector vai criar o autor necessário.
A hora da estrela, a última hora de Clarice Lispector, é um pequeno grande livro que ama e que não sabe sequer seu nome. Quero dizer: nem seu título. Títulos, há-os 13 ou 14. Como escolher um título? No mundo de Macabéa, escolher é um privilégio reservado aos ricos. Escolher é um martírio para a criatura que jamais teve nada. E que pois não quer nada, e quer tudo.
Então A hora da estrela hesita. Um título equivale a outro. A hora da estrela intitula-se também: A culpa é minha – Ou – A hora da estrela – Ou – Ela que se arranje – Ou – O direito ao grito quanto ao futuro – Ou – lamento de um blue – Ou – Ela não sabe gritar – Ou – Assovio ao vento escuro – Ou – Eu não posso fazer nada – Ou – Registro dos fatos antecedentes – Ou – História lacrimogênia de cordel – Ou – Saída discreta pela porta dos fundos.
Uma criatura equivale a outra.
Outra? O outro! Ah! o outro, aí está o nome do mistério, aí está o nome do Tu, o desejado para quem Clarice Lispector escreveu – todos esses livros. O outro por amar. O outro que põe o amor à prova: como amar o outro, o estranho, o desconhecido, o absolutamente não eu? O criminoso, a burguesa, o rato, a barata? – Como uma mulher pode amar um homem? ou outra mulher?
Ela, A hora da estrela, vibra inteira de tais mistérios.
O que se segue é uma modesta meditação sobre esse livro que saiu dos livros para dirigir-se a nossos corações cambaleante como uma criança. Agora vou mudar de tom, para falar um pouco mais friamente dessa centelha divina.
H. C.
(A hora da estrela é, pois, a história de uma pequena pessoa que deve pesar 30 quilos, uma habitante do apenas, uma nativa do quase. O que Clarice fez ali foi ir ao encontro do sujeito que, para ela, era o mais outro possível.) Imaginemos quanto a cada uma, cada um, que é o mais outro possível, a criatura que seria para nós a mais estranha possível, ainda que no interior da esfera do reconhecível (não falo dos marcianos, isso não me interessa), ou seja, a criatura terrestremente que seria a mais estrangeira possível e que ao mesmo tempo nos “tocaria”. Cada um tem seu estranho pessoal. Para Clarice era isso, um muito pequeno pedaço de vida, vindo do Nordeste. O Nordeste tornou-se tristemente célebre: nele se é feliz quando se come rato, é uma terra onde em nossos dias se morre de fome no Ocidente. Essa pessoa vem do lugar mais deserdado do mundo, e para Clarice tratava-se de trabalhar sobre o que era ser deserdado, ser sem herança, até ser sem nada, sem memória – mas não amnésico –, ser tão pobre, que a pobreza está por todo o ser: o sangue é pobre, a língua é pobre, e a memória é pobre; mas nascer e ser pobre é como se se pertencesse a outro planeta, e desse planeta não se pode tomar um meio de transporte para vir ao planeta da cultura, da alimentação, da satisfação etc.
A “pessoa” que Clarice escolheu, essa quase mulher, é uma mulher quase não mulher, mas é de tal modo quase-não-mulher que talvez seja mais mulher que toda mulher. É de tal modo mínima, de tal modo ínfima, que está ao rés do ser, e portanto é como se estivesse em relação quase íntima com a primeira manifestação do vivente na terra; é, aliás, capim, e termina no capim, como capim. Enquanto capim, enquanto talo de capim, situa-se fisicamente, afetivamente, de todo embaixo na gênese, no começo e no fim. E pois mais que nós, que somos brancos e pesados, ela porta, ela mostra os elementos mais finos do que se pode chamar “ser-mulher”, porque, como as pessoas extremamente pobres, ela é atenta e nos faz atentos às insignificâncias que são nossas riquezas essenciais e que nós, com nossas riquezas ordinárias, esquecemos e rejeitamos. Quando ela descobre um desejo ou um apetite, ou quando saboreia pela primeira vez na vida um alimento que para nós se tornou o menos apetitoso, o mais ordinário dos pratos, é para ela descoberta e maravilha extraordinárias. E seu maravilhamento devolve-nos as delicadezas perdidas.
Para chegar a falar o mais proximamente dessa mulher que ela não é, que nós não somos, que eu não sou, e que provavelmente, como conta Clarice em certo momento, ela teve de encontrar por acaso na rua indo ao mercado, foi preciso que Clarice fizesse um exercício sobre-humano de deslocamento de todo o seu ser, de transformação, de afastamento de si mesma, para tentar aproximar-se desse ser tão ínfimo e tão transparente.
E o que fez ela para tornar-se suficientemente estranha? O que ela fez é ser o mais outra possível de si mesma, e isso resultou nesta coisa absolutamente notável: o mais outra possível era passar ao masculino, passar por homem. É uma démarche paradoxal. Assim, para aproximar-se dessa quase mulher, vê-se no texto que Clarice não fez a barba desde há algumas horas, não jogou futebol etc. Ela passa ao masculino, e esse masculino a empobreceu. Passar ao masculino é, sugere-nos ela, um empobrecimento, e, como toda operação de empobrecimento em Clarice, é um movimento bom, uma forma de ascetismo, de maneira de todo inteligível, um modo de refrear algo do gozo. Ademais, esse homem, por sua vez, se “monasteriza”, se priva, se inclina. Ela dá de si – até explicações que fariam com que a pobre Clarice fosse imediatamente queimada pelas feministas americanas. Ela diz a certa altura: ninguém pode falar de minha heroína, só um homem como eu pode falar dela, porque, se fosse “escritora mulher”, poderia “lacrimejar piegas”. Isso é cheio de humor, mas obriga a fazer perguntas. Eis que nos dizemos: talvez seja verdade que, paradoxalmente, é sendo, transformando-se em autor de barba (ele, aliás, tem sua personalidade, não é o autor dos mass-media, é alguém que está no fim da vida, que diz que já não lhe resta nada além da escrita), é enquanto extremidade de homem, enquanto ser despojado, que renuncia a todos os desfrutes, incluído o futebol, que Clarice encontra a distância mais respeitosa em relação a seu pequeno talo de mulher. E perguntamo-nos: Por que tal não teria sido possível enquanto mulher? Eu respondo em lugar de Clarice, mas não mo permito senão após uma longa meditação. Uma mulher talvez tivesse tido piedade: o “lacrimejar piegas” (essa é uma admirável questão de época), e a piedade não tem que ver com o respeito. Para Clarice o valor supremo é o sem-piedade, mas um sem-piedade cheio de respeito. Nas primeiras páginas, diz que ela tem o direito de ser sem piedade. A piedade é deformante, é paternalista ou maternal, cobre, recobre, e o que quer fazer Clarice aqui é deixar nu esse ser em sua grandeza minúscula.