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Os poemas abaixo fazem parte de uma tradução, em curso, da poesia completa de Emily Dickinson (1830-1886), que segue a edição recente Emily Dickinson’s poems as she preserved them, organizada por Cristanne Miller (Belknap/Harvard Press, 2016). Também se leva em consideração, aqui, a edição crítica de R.W. Franklin (Belknap/Harvard, 1998), e os manuscritos e o léxico do Arquivo Emily Dickinson. Essas edições tornaram problemática a edição de Thomas H. Johnson (1956), na qual se baseiam todas as traduções publicadas no Brasil, inclusive as mais recentes.

Emily Dickinson escreveu cerca de 1.800 poemas ao longo de 30 e poucos anos. Apenas 10 foram publicados em vida. Ao invés de publicar, ED preferia enviar seus poemas a amigos, para depois reescrevê-los ou modificá-los para uma publicação futura. As primeiras edições de sua obra tentaram ordenar a movência de sua poesia, mas acabaram por lhe impor restrições, supressões, acréscimos. A edição de Franklin apresentou variantes dos textos, e tornou a datação dos poemas mais precisa. Já a edição de Cristanne Miller teve o mérito de mostrar, pela primeira vez, que Emily Dickinson deixara os seus manuscritos já preparados para uma possível publicação.

Tais manuscritos foram reunidos em forma de fascículos, costurados pela poeta à mão. Ao todo, são 40 fascículos, organizados entre 1858 e 1864, a fase mais produtiva da poeta americana, contendo mais da metade dos poemas por ela escritos. O restante de seus poemas ficou separado em folhas soltas, ou foi encontrado posteriormente em cartas e papéis guardados. Percebe-se, nos fascículos, que há um fio “narrativo” costurando (ou suturando) os poemas, quase sempre ligados a circunstâncias biográficas, afetivas, ou mesmo climáticas – ED era extremamente sensível a mudanças climáticas!

Um mito que está se desfazendo, aos poucos, é o da “reclusão” da poeta. Uma recente exposição em Nova York (Morgan Library & Museum, fevereiro de 2017) mostrou que ED estava “conectada” (networked) com pessoas e instituições importantíssimas para seu tempo. Vale lembrar que ED foi uma aluna brilhante no secundário, num dos primeiros ginásios para moças dos EUA (Mount Holyoke), e que, nos dois anos de faculdade que cursou no Amherst College, uma das melhores instituições superiores de sua época, foi aluna excepcional. ED tinha conhecimentos consideráveis de línguas e literaturas clássicas (Virgílio, especialmente), Geografia, Geologia, Botânica, Direito, e mesmo de Astronomia. A poeta lia diariamente um dos jornais de maior circulação nos EUA, o Springfield Republican, que era dirigido por um amigo da família e um de seus correspondentes, Samuel Bowles. Em outros termos, ED não estava “nas nuvens”, escrevendo poemas abstratos. Era, antes, uma mulher do seu tempo. Aliás, bastante avançada para seu tempo. Seus poemas refletem isso, se os lermos de forma adequada.

O mais importante é que o leitor de língua portuguesa esteja em mais perto do modo de organização dos poemas que Emily Dickinson deixou. Que o leitor leia os poemas de acordo com alguma ordem mais próxima da vida. E não aleatoriamente, como ocorre nas antologias, que desvestem os poemas de quaisquer circunstâncias históricas e biográficas, e submetem o leitor a escolhas pessoais dos tradutores, nem sempre explícitas, e que, em alguns casos, embaralham o entendimento. Como se verá por esta amostra, a questão circunstancial é importante para a compreensão da poesia de ED. Muitos dos seus poemas foram enviados em cartas, ou com presentes (flores), e faziam parte de um contexto específico, o qual, muitas vezes, ilumina e esclarece a sua leitura. Ignorar a sequência histórica e circunstancial dos poemas e dos fascículos, através de reordenações arbitrárias, acarreta um indesejado teor de abstração aos mesmos. Isso, numa autora que gostava de manter-se em equilíbrio entre o concreto e o abstrato, pode levar a interpretações equivocadas.

A tradução, aqui, procura, sempre que possível, manter o entrelaçamento de ritmo, imagens e pensamento, que tão bem caracteriza a poesia de ED. Sem isso, os poemas traduzidos seriam meros índices a apenas apontar para os originais, e não teriam valor nenhum em si mesmos. Em outros termos, cada poema aqui quer ser a reescrita do poema original, reescrita que se dirige unicamente à sensibilidade estética do leitor de língua portuguesa. Também dei atenção especial à questão dos curiosos travessões dickinsonianos, do uso anormal de maiúsculas, das elipses e das inversões, estranhas até mesmo à língua inglesa, bem como das escolhas lexicais peregrinas e das citações, que conformam a “gramática” dickinsoniana, tal como a interpretou Cristanne Miller, no célebre estudo A poet’s grammar (Harvard Press, 1987). Em alguns casos, levei em consideração o longo e misterioso relacionamento afetivo entre ED e Susan “Sue” Gilbert Dickinson, amiga de juventude e posteriormente cunhada, a quem ela enviou mais de um terço dos poemas. Os poemas endereçados a Sue levantam questões de gênero (gender e genre) que não podem ser desconsideradas pelo tradutor, sob pena de reduzir o alcance de seus poemas amorosos, e mesmo eróticos, como se estivessem direcionados sempre a um único e abstrato Mestre. Sobre o qual, aliás, nada se pode provar tampouco. A relação com Sue, pelo menos, foi concreta, ainda que não saibamos das vias de fato.

Para a tradução, além da fortuna crítica, foi fundamental o confronto com a tradução da poesia completa em outros idiomas, sobretudo a realizada em alemão por Gunhilde Kübler (Sämtliche Gedichte, Hanser Verlag, 2015), e a versão em espanhol, em três volumes, por Ana Mañeru Mendez e Maria-Milagros Garretas (Barcelona: Sabina, 2012, 2013, 2014). Também me serviram de inspiração as 70 e poucas transcriações de Augusto de Campos, que obedecem bem ao rigoroso programa estético do poeta concretista. Mas, enfim, sempre usei como guia de bom senso as belas e fiéis traduções francesas de Mme. Claire Malroux, de quem ouvi segredos inestimáveis sobre Emily e a quem dedico este trabalho, bem como a Carlos Daghlian, que dedicou sua vida a mostrar que a obra de ED, de tanto ser traduzida, acabou fazendo parte da poesia brasileira moderna, e contemporânea.

 

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Abaixo, 3 poemas de Emily Dickinson (tradução e original):

 

Eu – Anos – Estive fora – de Casa –
E agora – não ouso abrir
A Porta – vai que um rosto,
Que nunca vi, vai vir

Encarando, e pergunte pelo
Meu Negócio, àquela hora –
Meu Negócio – a Vida perdida –
Aqui – será que ainda mora?

Apalpei meus nervos –
Examinei as Janelas –
O Silêncio – veio em ondas –
E quebrou em minhas Orelhas –

Sorri um sorriso Amarelo –
Não ia temer, quem lá mora –
Eu que afrontei – Perigo – e Morte –
Mas tive medo – àquela hora –

Ajustei a Mão – ao Trinco –
Tremendo com Cuidado –
Vai que a Terrível Porta salta
E me deixa – no chão – caída –

Afastei os dedos da porta,
Como se fosse de Vidro –
E fugi – como um Ladrão –
Tapando bem os Ouvidos – [nota 1]

 

I – Years – had been – from Home –
And now – before the Door –
I dared not enter – lest a Face
I never saw before

Stare solid into mine –
And ask my Business there –
My Business – just a Life I left –
Was such – still dwelling there?

I fumbled at my nerve –
I scanned the Windows o’er –
The Silence – like an Ocean rolled –
And broke against my Ear –

I laughed a wooden Laugh –
That I – could fear a Door –
Who Danger – and Death – had faced –
But never shook – before –

I fitted to the Latch – my Hand –
With trembling Care –
Lest back the awful Door should spring –
And leave me – in the Floor –

Then moved my Fingers off,
As cautiously as Glass –
And held my ears – and like a Thief
Stole – gasping – from the House.

*

 

Morri pela Beleza – mas
Mal me ajustei à Cova
Quando a Outra, que morreu
Pela Verdade – noutra Alcova –

Quis saber “Onde, foi meu erro?”
“Foi a Beleza,” respondi –
“O Meu – a Verdade – as duas
Uma – Somos Primas” – Disse –

Assim, como Parentes, conversamos –
De perto – sob os Vaga-Lumes –
Até que o Musgo alcançou nossos lábios –
E cobriu – os Nossos nomes –

 

I died for beauty – but was scarce
Adjusted in the Tomb
When One who died for Truth, was lain
In an adjoining Room –

He questioned softly “Why I failed?”
“For Beauty,”; I replied –
“And I – for Truth – Themselves are One –
We Brethren, are,”; He said –

And so, as Kinsmen, met a Night –
We talked between the Rooms –
Until the Moss had reached our lips –
And covered up – Our names – [nota 2]

*

Sonhos – são bons – mas Andar é melhor –
Se a Pessoa acorda na Hora –
Se acorda à Noite – melhor –
Sonhando – com a Aurora –

Que fofo – o Tordo Imaginário –
Mas nunca agradou Árvore –
Melhor que esperar – a Sólida Aurora–
No Dia de São Nunca –

 

Dreams – are well – but Waking’s better,
If One wake at Morn –
If One wake at Midnight – better –
Dreaming – of the Dawn –

Sweeter – the Surmising Robins –
Never gladdened Tree –
Than a Solid Dawn – confronting –
Leading to no Day –

 

 

NOTAS

[nota 1]: Como vários autores de seu tempo, Emily Dickinson foi bastante influenciada pela literatura gótica, que teve em seu conterrâneo de Massachusetts, Edgar Allan Poe, a mais importante expressão.

[nota 2]: Este poema foi traduzido por Manuel Bandeira, entre outros. Embora haja ecos de Keats (“Beauty is Truth, Truth Beauty”) e de Emerson, a referência mais provável é a Elizabeth B. Browning, A vision of poets: “These were poets true/Who died for Beauty, as martyrs do / For truth – the ends being scarcely two”, versos sublinhados no exemplar de Emily Dickinson.

 

 

 

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