Kazantzakis inedito.jun17

 

O escritor grego Nikos Kazantzakis (1883-1957) é mais conhecido por sua obra Vida e proezas de Alexis Zorbas, adaptada ao cinema em 1964 por Michael Cacoyannis. No inédito deste sábado (10), trazemos um texto no qual o autor explora um viés diferente – mas em diálogo – com o seu livro clássico.

Ascese – Salvatore Dei é um livro no qual Kazantzakis realiza um denso monólogo interior para pensar o ser humano e sua relação com o mundo. O Humano é o campo de batalha em que sagrado e profano, finito e infinito, o real e o ideal convivem em constante tensão. É preciso, portanto, um cuidado singular com a construção do Eu Individual. A obra será publicada pela Grua Livros no dia 24. A tradução, direta do grego, é de Silvia Ricardino.

Como ficará claro, Kazantzakis olha tudo a partir do prisma da religiosidade. E não só no tema; também a forma do texto transmite essa ideia: todo o escrito é estruturado em parágrafos curtos, de forma semelhante aos Salmos.

Ainda que não seja agradável a alguns, suas ideias nos permitem vislumbrar uma teoria que pensa o conhecimento como algo dependente de quem o obtém, e não apenas do objeto que é conhecido. O conhecimento depende das formas como percebemos as coisas e das nossas orientações práticas. Além disso, ele nos exorta a um senso de coletividade – algo que soa muito importante no atual contexto –, ainda que o viés por ele proposto para chegar a esse senso seja discutível. 

 

*

 

SEGUNDO ENCARGO

Não aceito as fronteiras, os fenômenos me restringem e me asfixiam! Viver essa angústia em profundidade e encarniçadamente, eis o segundo encargo.

A razão adapta-se, tem paciência, gosta do jogo; o coração irrita-se, não admite jogar, sufocado atira-se para romper a rede da fatalidade.

Subjugar a terra, a água, o ar, vencer o espaço e o tempo, perceber a quais normas as miragens que sobem do deserto escaldante da razão amoldam-se, como surgem e ressurgem — que valor tudo isso pode ter?

Eu só almejo uma coisa: Apreender o que está escondido por trás dos fenômenos, conhecer o mistério que me faz nascer e me faz morrer, saber se por trás do visível fluxo incessante do mundo está escondida uma presença invisível e imóvel.

Se a razão não pode, não é obra sua empreender uma saída heroica e desesperada para além das fronteiras, oxalá meu coração pudesse!

Além! Além! Além! Além do homem, eu procuro o chicote invisível que o fustiga e o incita ao combate. Além dos animais, fico à espreita para ver o rosto primordial que – criando, esmagando, refundindo as inúmeras máscaras – luta para ser estampado na carne mutável. Além dos vegetais, esforço-me para distinguir os primeiros deslizes do Invisível na lama.

Uma voz dentro de mim ordena:

— Escave! O que vê?

— Homens e aves, águas e pedras!

— Escave mais! O que vê?

— Ideias e sonhos, lampejos e aparições!

— Escave mais! O que vê?

— Não vejo nada! É noite silenciosa, densa como a morte. Deve ser a morte.

— Escave mais!

— Ai, não consigo transpor a divisória sombria! Ouço gritos e lamúrias, ouço asas do outro lado!

— Não chore! Não chore! Não estão do outro lado! Os gritos, as lamúrias e as asas são o seu coração!

Além da razão, à beira do precipício sagrado do coração, eu caminho trêmulo. Um pé gruda-se à terra firme, o outro busca às escuras sobre o abismo.

Pressinto por trás de todos os fenômenos uma substância em luta. Quero juntar-me a ela.

Pressinto que essa substância em luta por trás dos fenômenos também se bate para juntar-se ao meu coração. Mas o corpo está entre nós e nos separa. A razão está entre nós e nos separa.

Qual é o meu encargo? Esmagar o corpo, arremeter para juntar-me ao Invisível. Que a razão se cale e eu possa ouvir o clamor do Invisível.

Caminho à beira do abismo e tremo. Duas vozes combatem em meu interior.

A razão: “Por que nos perdermos buscando o impossível? Dentro do recinto sagrado dos cinco sentidos, é nosso encargo reconhecer os limites do homem.”

Mas outra voz interna – chamemos de sexta faculdade, chamemos de coração –insurge-se e grita: “Não! Não! Nunca reconheça os limites do homem! Rasgue as fronteiras! Rejeite tudo aquilo que seus olhos veem! Morra dizendo: Não existe morte!”

A razão: “Meu olho é límpido e desesperançado e tudo vê. A vida é um folguedo, uma exibição oferecida pelos cinco atores do meu corpo.

“Olho com avidez, com indizível curiosidade, mas não tenho a inocência do homem rústico que acredita e sobe ao palco, intervindo na comédia sangrenta.

“Sou o faquir prodigioso que imóvel, postado na encruzilhada dos sentidos, vê o mundo nascer e desaparecer, vê as multidões agitando-se e clamando nas veredas multicoloridas da vanglória.

“Ó coração, coração simplório, fique calmo e submeta-se!”

Mas o coração alvoroça-se e grita: “Sou o rústico que invade a cena e intervém no percurso do mundo!”

Eu não pondero, não calculo, não me ajusto! Sigo os intensos batimentos do meu coração!

Pergunto, torno a perguntar, golpeando o caos: Quem nos planta nesta terra sem pedir a nossa permissão? Quem nos erradica desta terra sem pedir a nossa permissão?

Sou uma criatura efêmera, débil, feita de barro e sonhos. Mas dentro de mim sinto turbilhonarem todas as forças do Universo.

Quero por um momento, antes que me aniquilem, abrir os olhos e vê-las. Não tenho outro escopo na vida.

Quero achar uma justificativa para viver e suportar o terrível espetáculo cotidiano da doença, da fealdade, da injustiça e da morte.

Parti de um lugar escuro – a Matriz; caminho para outro lugar escuro – o Túmulo. Uma força me arremessa de dentro do precipício escuro; outra força me puxa incessantemente para dentro do precipício escuro.

Não sou o condenado a quem deram vinho para turvar o cérebro; com o juízo lúcido, sóbrio, transponho a vereda entre os dois precipícios.

E luto para, antes de morrer, acenar aos companheiros, estender-lhes a minha mão, conseguir juntar sílabas e lhes atirar uma palavra íntegra. Dizer-lhes qual imagino ser esse percurso e para onde pressinto que vamos. E como há necessidade de regularmos todos juntos o nosso passo e o nosso coração.

Uma senha, como entre conspiradores, uma palavra simples, que eu consiga dizer aos companheiros!

Sim, o escopo da Terra não é a vida, não é o homem. Ela viveu sem essas coisas, sem elas viverá. São meras centelhas efêmeras de sua rotação impetuosa.

Vamos nos unir e nos estreitar, vamos juntar os nossos corações – enquanto durar o calor desta Terra, enquanto não vierem terremotos, dilúvios, glaciações, cometas para nos destruírem – e vamos criar um cérebro e um coração para a Terra, vamos dar um sentido humano ao combate sobre-humano!

Essa angústia é o segundo encargo.

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