No inédito deste sábado (17), um trecho do último livro de Umberto Eco (1932-2016), Pape Satàn Aleppe: crônicas de uma sociedade líquida, que será lançado dia 26 pela editora Record. Em pequenos textos, Eco trata de temas diversos: de Harry Potter ao 11 de Setembro, passando pelo Twitter, os templários e questões de caligrafia, além de questões de leitura, como o excerto abaixo, escrito em 2011.
O título do livro alude à frase dita por Plutão a Dante no Inferno da Divina Comédia. Não tem um significado definido, apesar de muitos estudiosos entenderem-na como uma espéce de invocação a Satã.
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Crueldade e Identificação
Lembrei na semana passada que muitíssimos leitores têm dificuldade em distinguir a realidade da ficção num romance e tendem a atribuir ao autor paixões e pensamentos de seus personagens. Como prova, encontrei agora na internet um site que reúne pensamentos de vários autores e, entre as “frases de Umberto Eco”, achei esta: “O italiano é desleal, mentiroso, vil, traidor, está mais à vontade com o punhal que com a espada, melhor com o veneno que com o remédio, melífluo nos negócios, coerente apenas em trocar de bandeira conforme o vento.” Não é que não seja verdade, mas se trata de um lugar-comum secular veiculado por autores estrangeiros e, em meu romance O cemitério de Praga, a frase é escrita por um senhor que, nas páginas anteriores, manifestava pulsões racistas distribuídas a torto
e a direito, usando os clichês mais batidos. Tentarei não colocar mais em cena personagens banais, do contrário um dia desses ainda vão acabar me atribuindo filosofemas do tipo “mãe só se tem uma”.
Li agora a coluna Vetro soffiato, de Eugenio Scalfari [nota 1], que retoma minha Bustina [nota 2] precedente e levanta um novo problema. Scalfari concorda que existem pessoas que confundem a ficção narrativa com a realidade, mas considera (e considera justamente que eu considero) que a ficção narrativa pode ser mais verdadeira que a verdade, inspirar identificações, percepções de fenômenos históricos, criar novos modos de sentir etc. E imaginem se é possível não estar de acordo com esta opinião.
E mais, a ficção narrativa dá ensejo também a resultados estéticos: um leitor pode muito bem saber que Madame Bovary nunca existiu e, no entanto, desfrutar do modo como Flaubert constrói seu personagem. Mas eis que justamente a dimensão estética nos remete por oposição à dimensão “alética” (que tem a ver com a noção de verdade partilhada pelos lógicos e cientistas ou pelos juízes que devem decidir num tribunal se uma testemunha relatou as coisas como aconteceram ou não). São duas dimensões diversas: ai de nós se um juiz se deixar comover por um culpado que narra esteticamente bem as suas mentiras. Mas eu estava tratando da dimensão alética, tanto que minha reflexão nasceu no interior de um discurso sobre o falso e a mentira. É falso dizer que a loção de Vanna Marchi [nota 3] faz crescerem os cabelos? É falso. É falso dizer que dom Abbondio [nota 4] encontra dois bravos? Do ponto de vista alético, sim, mas o narrador não diz que está contando uma verdade, ele finge que é verdade e pede que o leitor também faça de conta. Ele nos pede, conforme recomendava Coleridge, para “suspender a incredulidade”.
Scalfari cita o Werther [nota 5] e todos sabemos quantos rapazes e moças românticos se suicidaram ao se identificar com o protagonista. Eles acreditaram que a história era real? Não necessariamente, pois mesmo sabendo que Emma Bovary nunca existiu, somos capazes de nos comover às lágrimas com sua sorte. Reconhecemos que uma ficção é uma ficção e ainda assim nos identificamos com o personagem.
É que intuímos que, se madame Bovary nunca existiu, existiram muitas mulheres como ela e talvez todos nós sejamos um pouco como ela, e podemos extrair disso uma lição sobre a vida, em geral, e sobre nós mesmos. Os gregos antigos acreditavam que as coisas que aconteceram a Édipo eram verdadeiras e viam nisso uma ocasião para refletir sobre o fato. Freud sabia muito bem que Édipo jamais existiu, mas lia a história como uma lição profunda sobre o modo como as coisas evoluem no inconsciente.
O que acontece, então, com os leitores de que falei, que absolutamente não conseguem distinguir entre ficção e realidade? Sua conduta não tem valência estética, pois estão tão preocupados em levar a história a sério que nem ao menos se perguntam se está sendo mal ou bem contada; não tentam extrair ensinamentos; não se identificam efetivamente com os personagens. Simplesmente manifestam aquilo que definirei como déficit ficcional, são incapazes de “suspender sua credulidade”. E como o número destes leitores é maior do que imaginamos, vale a pena tratar dessa questão, justamente porque sabemos que todas as outras questões estéticas e morais escapam a tais leitores.
NOTAS
As notas abaixo são do Suplemento Pernambuco.
[nota 1] Il vetro soffiato é o nome da coluna que Scalfari assina no jornal italiano L'Espresso.
[nota 2] La bustina di minerva era o nome da coluna que Eco assinou durante 31 anos também no L'Espresso.
[nota 3] Wanna Marchi ou Vanna Marchi (localizamos as duas grafias) é uma esteticista italiana, foi dona de uma linha de cosméticos. É famosa por sua participação em programas televisivos.
[nota 4] Personagem do romance Os noivos, de Alessandro Manzoni (1785-1873). É um homem covarde, preguiçoso e tímido, que foge diante das dificuldades e obstáculos que encontra.
[nota 5] Os sofrimentos do jovem Werther (1774) é uma das obras mais conhecidas de Goethe. Werther é apaixonado por Charlotte, que está prometida a outro homem, Albert. Uma sucessão de acontecimentos se irrompe até o suicídio do protagonista no fim do livro. A esse desfecho é reputada a fama de ter "causado" uma onda de suicídios na Europa, à época de seu lançamento.