Jornal front ineditoJuremir jun17

 

O texto que trazemos nesta segunda-feira não trata de um tema agradável. Nele, o pesquisador Juremir Machado da Silva (PUC-RS) analisa um relato extremamente racista, publicado em um jornal do século XIX. Uma parábola dos anos 1870 sobre como a pessoa negra, obra de Satanás, seria uma espécie de cópia equivocada da pessoa branca.

Trazer este texto à tona tem um objetivo específico: analisá-lo para dele tentar extrair ideias sobre as narrativas fundantes do conservadorismo brasileiro. O jornal que publicou a fábula era conhecido por defender ideias antiescravagistas. Mas, ao mesmo tempo, era racista. “Abolição, racismo e eliminação da violência contra os negros eram elementos entrelaçados e, ao mesmo tempo, coisas diferentes. Era possível ser favorável à abolição, ser racista e praticante de violência contra negros escravos”, diz Juremir. Cabe pensar como isso continua hoje no Brasil.

O texto faz parte do livro Raízes do conservadorismo brasileiro: a abolição na imprensa e no imaginário social, que será lançado pelo autor em Porto Alegre (RS) nesta quinta-feira (29), na livraria Saraiva do Moinhos Shopping, a partir das 19h. A obra é publicada pela editora Civilização Brasileira.

 

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Lenda da criação do preto

A guerra travava-se nos jornais, que alimentavam o imaginário social com sua profusão de preconceitos, e do imaginário social recolhiam elementos para suas provocações e pregações. Em um país de analfabetos, a letra impressa impunha respeito, disseminava despeito e servia de alavanca para a cultura oral como rede mais ampla de conexões. Robert Conrad observou que o império brasileiro jamais promoveu qualquer mecanismo de educação popular. Nos anos 1870, incluindo os escravos, o analfabetismo atingia 86% da população brasileira. (1978, p. XVI) [nota 1] Após serem lidas por privilegiados capazes de decifrar os mistérios do alfabeto, histórias simples eram multiplicadas pela transmissão de viva voz nas ruas, nas casas, em saraus culturais, em reuniões políticas, nos teatros e nos discursos em praça pública. O leitor funcionava como um intermediário que selecionava, editava, acrescentava o que fosse de seu interesse e dava o tom. Cabia-lhe ampliar o publicado servindo-lhe de eco. Essa relação de mão dupla ganhava contornos especiais: a origem de uma história podia ser o cotidiano das ruas ou, ao contrário, a redação de um jornal, espalhando-se e ganhando detalhes de boca em boca.

Em 11 de setembro de 1887, o jornal A Província do Espírito Santo fornecia uma leitura dominical impressionante pela crueza da narrativa: “Lenda da criação do preto.” O texto, publicado na primeira página, imitava uma parábola bíblica: “No tempo da criação do mundo, Satanás vendo o Padre Eterno criar Adão, de um pedaço de barro, quis também fazer o mesmo.” O narrador fechava com o leitor um contrato de leitura baseado na ambiguidade do relato como ficção verossímil. Aquilo que será contado não se explica nem se relativiza. Apenas se dá a ver como uma história prescindindo de justificativa.

Satanás

pegou num pedaço de argila, deu-lhe as mesmas voltas que vira dar-lhe Deus, e depois insuflou-lhe a vida num sopro. Mas com grande espanto e com grande raiva sua, esse bocado de barro, como tudo o mais que ele tocava, ficou negro: – o seu homem era um homem preto.

A parábola, em sua pretensa inocência, fazia do negro uma criação do diabo tentando imitar Deus. Menos de dois anos antes da abolição da escravatura no Brasil, um jornal não se constrangia em fazer dos negros obra do demônio. Cada linha do relato aprofundava o desprezo pelos negros como uma narrativa natural: “Ali ao pé corria límpido e transparente o branco rio Jordão. Satanás teve uma ideia, lavar o seu homem para lhe tirar a negrura.” As elites brasileiras do século XIX lidavam com a ideia de branqueamento. Queriam, se possível, limpar o negro de sua cor. A mestiçagem, porém, horrorizava tanto ou mais que a negritude, de acordo com a ideia de raças puras.

Como puderam homens de uma época tão recente e já tão desenvolvida cultural, tecnológica e cientificamente acreditar que atributos como caráter, sensibilidade e inteligência poderiam ter relação com epiderme? Como puderam imaginar que o branco seria criação de Deus, e o negro, do diabo? Mesmo que respostas categóricas não sejam possíveis, boa parte delas servindo apenas para relativizar o preconceito, ao diluí-lo no chamado “espírito da época”, é possível perceber como se deu, por meio da imprensa, a difusão do racismo. A historieta dominical de A Província do Espírito Santo prossegue sempre mais rica em perversidade:

E [Satanás] pegou nele pela cintura como se pega num cachorro e mergulhou-o no rio. Mas as águas do Jordão afastaram-se imediatamente, enojadas com aquela negrura, e o homem de Satã, o primeiro negro, apenas mergulhou os pés e as mãos no lodo. E por isso só as palmas das mãos e dos pés ficaram brancas.

O negro seria o homem de satã, criado para chafurdar na lama. O cabeçalho do jornal informava: “Diário consagrado aos interesses provinciais – órgão do Partido Liberal.” Poderia um jornal conservador ser mais racista? Talvez essa história ajude a explicar as indistinções entre liberais e conservadores no parlamento que tanto indignavam Joaquim Nabuco e outros abolicionistas. A abolição avançava. Em paralelo a ela, paradoxalmente, crescia o racismo derivado do constante elogio à superioridade racial do imigrante branco importado para substituir o braço negro. Seria uma espécie de ressentimento dos brancos contra os negros, por eles se atreverem a também se considerarem filhos de Deus? O lodo, na perspectiva dessa historieta constrangedora, o primeiro negro, criatura de Satanás, teria enfiado os pés e as mãos, seria o trabalho, o labor manual que tanto horrorizava os preguiçosos proprietários de ferramentas humanas? Seria a senzala esse navio negreiro em terra firme? Seria a lavoura irrigada com suor e sangue?

A “Lenda da criação do preto” tinha mais a dizer em termos de anatomia: “Furioso com o seu desastre, Satanás perdeu a cabeça, e pespegou um famoso murro na cara do seu negro que lhe achatou o nariz e lhe fez inchar os lábios.” Pode-se imaginar o riso dos leitores! Pode-se imaginar a dor dos negros. Pode-se imaginar a indignação dos que combatiam o racismo. O negro, como totalidade, sai de um molde hediondo:

O desgraçado preto pediu misericórdia, e Satanás, passado o primeiro momento de fúria, compreendendo que no fim das contas o negro não tinha nenhuma culpa de ser assim, teve dó dele, arrependeu-se de repente do seu gênio e acariciou, passando-lhe a mão pela cabeça. Mas a mão do diabo queima tudo em que toca: crestou o cabelo do negro como se os seus dedos fossem ferro de frisar. E foi daí que o preto ficou com carapinha.

A conclusão é acachapante: “Se non è vero…” Sabe-se que essa frase se completa com “è ben trovato[nota 2].

Tudo isso ao lado de textos de celebridades nacionais ou internacionais como Eugène Delacroix, Alexandre Herculano, Ramalho Ortigão, Edmond Schérer, Sainte-Beuve, Guerra Junqueiro, José Bonifácio e poemas de Luiz Guimarães Júnior, Raimundo Correia, Olavo Bilac e outros. Logo abaixo da coluna com a “Lenda da criação do preto”, uma frase de Nestor Roqueplan, jornalista e escritor francês muito popular, fazia um contraponto certamente involuntário ao humor diabolicamente racista da pseudoparábola: “Antigamente tinha-se algum medo de Deus; hoje tem-se mais medo dos jornais.” Razão havia para tanto. A atualidade dessa tirada é inquestionável. Um fragmento de Ramalho Ortigão aumentava o absurdo da parábola tão “inocentemente” publicada como piada: “As grandes ideias em evolução são como as escovas em exercício: a princípio limpam, depois emporcalham-se a si mesmas, por fim sujam as coisas em que tocam.”

O que teria pretendido o editor? Um pequeno texto de Girardin parecia prever a abolição e a queda do império: “Só a liberdade plena pode curar os males da meia liberdade. Em tudo e sempre, a meia liberdade não é mais que o arbítrio, e este para o governo é o verme que faz o fruto cair da árvore.” Outro texto, de Auguste Vacquerie, pregava as virtudes do estudo e da cultura literária. Guerra Junqueiro, na mesma primeira página, associava crime e ignorância de uma maneira que seria odiada pelos punitivistas do século XXI:

Há um júri instituído para julgar um assassino analfabeto. A sentença deve ser esta: considerando que as feras não podem andar em liberdade pelas ruas; considerando que a ignorância do assassino concorreu para o assassinato; considerando que a miséria do criminoso foi um dos incentivos para o crime; condenamos o monstro a ser metido numa jaula; condenamos o ignorante a ser metido numa oficina; e condenamos o vadio a ser metido numa escola; deem-lhe uma cadeira, um alfabeto e uma ferramenta. Mas considerando que a sociedade foi a causa em que o bandido foi efeito: condenamos a sociedade a que dê instrução a todas as crianças e dê trabalho a todos os famintos, aplicando-se mais a evitar os assassínios.

Surgido em 1882, com quatro páginas, o jornal de Moniz Freire e Cleto Nunes, dois jornalistas engajados e políticos, como era praxe no período, A Província do Espírito Santo sustentou posições antiescravistas. Artigos do padre Francisco Antunes Siqueira Filho publicados em 1885 dão uma boa mostra disso:

Desde 1836, principiaram os negociantes de carne humana a iludir a vigilância do governo inglês, que, por um tratado de 1831, convencionara com o Brasil extirpar o tráfico de africanos […] Piúma, Guarapari, Vitória e Santa Cruz foram os lugares mais cômodos para os desembarques […] Centenas de vidas foram expostas à mercê das ondas, além do Atlântico, sujeitas aos maus tratos [sic]: mergulhadas no fundo dos porões dos navios; privadas de luz e ar, respirando auras infectas, para satisfazer o egoísmo de homens que pelo ouro sacrificavam seus irmãos! Os portugueses, perdidas as esperanças de escravizar os aborígines, que se achavam sob influência imediata dos jesuítas, lançaram mão deste meio, tão reprovado, para manter a sua negociação e sustentar a lavoura de nosso país. Erro grave, que comprometeu o nosso presente e o futuro da sociedade brasileira. Os escândalos repetiram-se até 1845, em que dentro da própria fortaleza de São João se expuseram à venda duzentos escravos pelo ínfimo preço de 50$000! Ali pelo Campinho e Porto Velho abriram-se praça para essas vendas! Ainda em 1848 o brigue Feliz Ventura desovou em Santa Cruz grande número desses infelizes! Foram levados para a fazenda, que hoje pertence ao dr. Guaraná, guardados em grande depósito para esse comércio imoral e torpe! (apud Almada, pp. 108-109)

O que houve?

Como explicar a “Lenda da criação do preto” em um jornal com sensibilidade antiescravista? Na página 3 da edição de 2 de julho de 1887, A Província do Espírito Santo previa o fim da escravidão no Brasil, em função da morte dos escravos, para julho de 1895. Afirmava que a escravidão diminuía 1% ao mês. Defensor da emancipação gradual, citava o padre José Nunes da Silva Pires, integrante de um conselho auxiliar do presidente da província, para quem “um país livre não podia ter escravos”. Ressalvava, revelando a densidade das práticas de ocultação dos procedimentos em defesa da manutenção do cativeiro, que a declaração do padre não constava em ata “porque quase todos os outros conselheiros tinham interesses nesta instituição”. Destacava com orgulho retrospectivo: “O padre Pires, porém, por sua morte libertou todos os seus escravos e legou-lhes os bens que possuía.”

Na página 3 da edição de 5 de maio de 1888, quando o furacão abolicionista começava a varrer o país, o jornal de Vitória denunciava os maus-tratos a um escravo:

O Paiz [nota 3] deu o seguinte telegrama: “Juiz de Fora, 21 – Está no Fórum um escravizado de Augusto Benjamin, barbaramente seviciado e com grossa corda no pescoço. O infeliz tem um braço de menos. O juiz nomeou-lhe curador. O fato causou indignação geral sendo o escravo fotografado.”

Abolição, racismo e eliminação da violência contra os negros eram elementos entrelaçados e, ao mesmo tempo, coisas diferentes. Era possível ser favorável à abolição, ser racista e praticante de violência contra negros escravos. O maior paradoxo talvez esteja em que o racismo cresceu ao longo da campanha abolicionista. Afinal, os imigrantes brancos europeus deveriam ser trazidos como membros de uma raça superior. Para muitos brasileiros, o principal argumento para a abolição não fora a infâmia da escravidão nem a condição humana do escravo, mas a suposta inferioridade intelectual do negro – apresentada como dado científico –, que deveria ser substituído no trabalho por gente de raça mais inteligente, produtiva e rentável.

 

 

NOTAS

[nota 1] CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravidão no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

[nota 2] Do Suplemento Pernambuco: Se non è vero, è ben trovato: se não é verdade, é bem contado (provérbio italiano).

[nota 3] Do Suplemento PernambucoO Paiz foi um jornal matutino que circulou no Rio de Janeiro de 1884 a 1930.

 

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