Angela Davis inedito jul17

 

No sábado (8), chega às livrarias o lançamento mais recente da filósofa, professora e militante Angela Davis, Mulheres, cultura e política (Boitempo Editorial). Originalmente lançada em 1990, a obra traz ensaios escritos por Davis na década de 1980. O livro foi traduzido por Heci Regina Candiani.

Abaixo, um trecho do capítulo “Nós não consentimos: a violência contra as mulheres em uma sociedade racista”. Fala sobre as violências a que eram submetidas mulheres nas décadas de 1970/1980 nos Estados Unidos. Os problemas, entretanto são muito anteriores àquele tempo. E continuam até hoje. No mundo todo. 

 

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Estupro, intimidação sexual, espancamento, estupro conjugal, abuso sexual de crianças e incesto são algumas das muitas formas de violência sexual explícita sofrida por milhões de mulheres neste país. Quando somos proibidas de exercer nosso direito ao aborto pelas táticas terroristas adotadas por pessoas que se denominam “defensoras do direito à vida”, responsáveis por atentados a clínicas, e pelas ações criminosas do governo, que retira os subsídios federais ao aborto, vivenciamos a violência direcionada às nossas escolhas reprodutivas e sexualidade. Mulheres pobres, em particular as de minorias étnicas, continuam a ser vítimas da violência cirúrgica da esterilização forçada. Inúmeras mulheres ferem seu corpo de modo involuntário com o Dalkon Shield [nota 1] e outros métodos potencialmente fatais de controle de natalidade, ao mesmo tempo que mulheres com deficiência física ou mental são presunçosamente definidas como não sexuadas e, portanto, dispensadas de atenção especial no que se refere às suas necessidades relativas ao controle de natalidade. Os direitos reprodutivos, entretanto, implicam mais do que o acesso ao aborto e a métodos contraceptivos seguros. Eles abrangem, por exemplo, o direito das mulheres lésbicas de ter suas crianças fora dos limites dos relacionamentos heterossexuais e exigirão leis não repressivas sobre novas tecnologias reprodutivas envolvendo inseminação com esperma de doadores, fertilização in vitro e gravidez por substituição.

Essas manifestações específicas da violência contra a mulher se situam em um espectro mais amplo de violência produzida socialmente, que inclui violações sistemáticas orquestradas contra os direitos econômicos e políticos femininos. Como tem ocorrido ao longo da história, essas agressões afetam mais gravemente as mulheres de minorias étnicas e suas irmãs brancas da classe trabalhadora. A terrível onda de estupros da atualidade, que se tornou tão generalizada a ponto de uma em cada três mulheres estadunidenses poder presumir que será estuprada em algum momento de sua vida, reflete de modo assustador a deterioração da condição econômica e social das mulheres. De fato, à medida que a violência racista em contexto nacional cresce – e que a agressão imperialista global se expande –, as mulheres podem supor que, individualmente, os homens estarão mais propensos a cometer atos de violência sexual contra aquelas que os cercam. Embora a administração Reagan [nota 2] tente transferir a responsabilidade por esse fato, não pode fugir da sua culpa pelo aumento do risco de violência em nossa sociedade. Esse não é apenas o governo mais sexista – o único, por exemplo, a se opor ativamente à Equal Rights Amendment [Emenda dos Direitos Iguais] ao mesmo tempo que apoia a sexista e homofóbica Family Life Amendment [Emenda da Vida Familiar] – nem o mais racista a insistir na tentativa de desmantelamento de trinta anos de vitórias do movimento pelos direitos civis, mas é de longe o governo mais ferozmente beligerante deste século. Na verdade, pela primeira vez na história da humanidade, enfrentamos a ameaça muito real de um onicídio [nota 3] nuclear global.

Deixando de lado, por enquanto, esse cenário mais amplo, vamos nos concentrar na história recente de nossa consciência social em relação à violência sexual contra as mulheres. Quando começou a ganhar forma durante os primeiros anos da década de 1970, pouco depois da emergência do movimento de libertação feminina, o movimento antiestupro contemporâneo – juntamente com a campanha pela descriminalização do aborto – mostrou-se o mais dramático movimento ativista de massa associado à luta pela igualdade das mulheres. Em janeiro de 1971, o New York Radical Feminists [Feministas Radicais de Nova York] organizou um diálogo aberto sobre estupro que, pela primeira vez na história, proporcionou a um grande número de mulheres um fórum no qual relatar em público suas experiências frequentemente assustadoras como vítimas de estupro [nota 4]. Também em 1971, as mulheres de Berkeley, Califórnia, reagiram ao tratamento dolorosamente discriminatório recebido pelas sobreviventes de estupro nas delegacias, hospitais e tribunais ao criarem um serviço comunitário de atendimento emergencial 24 horas conhecido como Bay Area Women Against Rape [Mulheres da Região da Baía de São Francisco contra o Estupro]. Esse centro emergencial se tornou o modelo para inúmeras instituições semelhantes que surgiram por todo o país durante os anos 1970.

Em 1971, Susan Griffin publicou um artigo histórico na revista Ramparts intitulado “Rape: The All-American Crime” [Estupro: o crime americano por excelência]. O texto se inicia com estas palavras:

Nunca estive livre do medo do estupro. Desde uma idade muito tenra, eu, como a maioria das mulheres, pensei no estupro como parte de meu ambiente natural – algo a ser temido e contra o qual eu deveria rezar, como um incêndio ou um raio. Nunca perguntei por que os homens estupravam; simplesmente pensava que era um dos muitos mistérios da natureza humana.

[...] Quando eu tinha oito anos [...], minha avó me levou para os fundos da casa, de onde os homens não poderiam nos ouvir, e me disse que homens estranhos queriam fazer mal a garotinhas. Eu aprendi a não caminhar em ruas escuras, a não falar com desconhecidos nem entrar em seus carros, a trancar as portas e a ser recatada. Ela nunca explicou por que um homem desejaria fazer mal a uma garotinha, e eu nunca perguntei.

Se alguma vez eu cheguei a pensar que os temores de minha avó eram imaginários, a ilusão durou pouco. Naquele ano, voltando para casa depois da escola, um colega alguns anos mais velho do que eu tentou me estuprar. Depois disso, em um corredor escuro da biblioteca local (enquanto eu lia Freddy the Pig [nota 5]), virei-me e descobri um homem se exibindo. E, então, o homem simpático da vizinhança foi preso por molestar crianças [nota 6].

O fato de que praticamente todas nós podemos recuperar episódios similares em nossas memórias de infância é a prova do grau em que a violência misógina condiciona a experiência feminina em sociedades como as nossas.

 

NOTAS

[nota 1]: Dispositivo intrauterino (DIU) comercializado pela empresa A. H. Robins nos Estados Unidos e em Porto Rico nos anos 1970. Entre 1971 e 1975, foram registrados mais de 200 mil casos de mulheres que sofreram infecção por bactérias, septicemia, aborto espontâneo e lesão uterina, além de alguns incidentes de morte, associados ao uso do dispositivo. Em 1976, por causa da repercussão dos casos e do alto número de hospitalizações, as autoridades estadunidenses tornaram obrigatórios testes dos DIUs e de outros dispositivos médicos, bem como sua aprovação para comercialização. A A. H. Robins foi alvo de mais de 300 mil processos e faliu. (Nota da tradutora)

[nota 2]: Do Suplemento Pernambuco – O governo Reagan durou de 1981 a 1989.

[nota 3]: Do Suplemento Pernambuco – Segundo o dicionário Michaelis, onicida é “aquele que provoca destruição em grande escala”.

[nota 4]: Ver Noreen Connell e Cassandra Wilson (orgs.), Rape: Th e First Sourcebook for Women by New York Radical Feminists (Nova York, New American Library, 1974).

[nota 5]: Série de livros infantis publicada nos Estados Unidos entre 1927 e 1958, escrita por Walter R. Brooks e ilustrada por Kurt Wiese. (Nota da tradutora)

[nota 6]: Jo Freeman (org.), Women: A Feminist Perspective (1. ed., Palo Alto, Mayfi eld, 1975).

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