No inédito deste sábado, o poema Noite americana, do livro Câmera lenta, de Marília Garcia. A obra é publicada pela Companhia das Letras e será lançada no final deste mês.
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noite 1
no momento de maior intimidade,
ficaram a 1 cm de distância
um do outro.
então me afasto e
vejo a cena em câmera
lenta: ali os dois
não se olham.
está escuro e eles atravessam o espaço.
o ombro dela quase raspa
o braço dele,
os dedos dele
um pouco acima da mão dela.
os olhos fixos no chão
e a respiração em
compasso.
— por quanto tempo você aguentaria ficar debaixo d’água?
é o que ela parece dizer.
em vez disso, olha o mínimo relógio de pulso
e sabe que seis horas depois já estará
do outro lado.
noite 2
está chovendo
e quando o farol acende
o verde brilha no escuro.
— claro. escuro. claro. escuro.
(quando você descreve
tenho a impressão de sentir o que
acontece)
um trem parte para um ano
específico no futuro. dizem que lá as coisas
não mudam.
está escuro e eles atravessam o tempo.
me interesso por um único viajante
no trem. ele busca uma noite específica
e, de longe, parece
em repouso invernal.
quando a viagem chega ao fim, ele decide voltar atrás:
— quando me perguntam
por que voltei,
diz ele,
nunca dou a mesma resposta.
noite 3
a câmera agora mostra
a terra do alto.
de cima,
o planeta azul e úmido
tem uma única mancha cor
de ferrugem
que fica perto do pacífico.
neste ponto de umidade zero
o ar é tão fino
e tão limpo,
tão frio
e tão seco
que se pode ver com nitidez
a luz dos objetos celestes
vinda do passado.
no escuro a luz atravessa o tempo e o espaço
e vem dar aqui
neste ponto.
em geral, ela se mostra à noite
como as lembranças
em pause.