Marina Site1

 

No inédito deste sábado, um trecho do livro O poeta e o tempo, recentemente lançado pela editora Âyiné. A obra traz ensaios críticos da poeta russa Marina Tsvetaiéva (1892-1941) – um dos grandes nomes da literatura daquele país. 

No excerto abaixo, Tsvetaiéva pensa a crítica literária. A tradução é de Aurora Fornoni Bernardini. 

 

*

 

Não tem o direito de julgar um poeta quem não leu cada um de seus versos. A criação é sequência gradual e sucessão. Eu, em 1915, explico a mim mesma em 1925. A cronologia é a chave para a compreensão.

“Por que seus poemas são tão diferentes?” Porque os anos são diferentes.

 

O leitor ignorante toma por estilo algo incomparavelmente mais simples e ao mesmo tempo mais complicado: o tempo. Esperar de um poeta textos iguais em 1915 e em 1925 é a mesma coisa que esperar que tenha o mesmo rosto em ambas as ocasiões. “Por que você mudou tanto em dez anos?” Isso, pela evidência da resposta, ninguém me pergunta, mas compreende e acrescenta: “Passou o tempo!”. O mesmo ocorre com os versos. Vou continuar com o paralelismo. O tempo, conforme é sabido, nunca embeleza, a não ser na infância. E ninguém que me tenha conhecido aos 20 anos me diz agora que estou nos 30: “Como você ficou bonita!”. Com 30 anos posso ter os traços do rosto mais marcados, mais expressivos, mais particulares. Posso ser magnífica, talvez. Mas não mais bonita. O que se passa com os traços se passa com os versos. Eles não se tornam mais bonitos com o tempo. O frescor, o caráter imediato, a acessibilidade, a beauté du diable1 do rosto poético ocupam o lugar dos traços. “Você escrevia melhor antes.” Vivo ouvindo me dizerem isso! Apenas significa que o leitor prefere a beauté du diable à essência. A beleza, à magnificência.

A beleza é uma medida exterior; a magnificência, interior. Mulher bonita, mulher magnífica, paisagem bonita, música magnífica. Com a diferença de que a paisagem pode ser, além de bonita, magnífica (reforço, do exterior para o interior) e a música só pode ser magnífica, bonita não (enfraquecimento, o interior reduzido ao exterior). Mas não é só isso: tão logo um fenômeno saia do domínio do visível e do material, “bonito” já não cabe. Uma paisagem de Leonardo, por exemplo, é bonita? Não cabe.
Uma “bela música”, “belos versos” são a medida da ignorância musical e poética. Uma bobagem da linguagem vulgar.

 

Assim, a cronologia é a chave da compreensão. Dois exemplos: o julgamento judiciário e o amor. Cada juiz e cada amante andam para trás; a partir da hora em questão, vão à fonte, ao primeiro dia. Quem faz o interrogatório percorre o caminho ao contrário. Não existe ação separada das outras: sempre estão ligadas, da primeira a todas as seguintes. A hora em questão é o resultado de todas as horas precedentes e fonte das futuras. A pessoa que não tiver lido toda a minha obra, desde o Álbum da tarde (infância) até Ratoeira (hoje), não tem o direito de julgar.

O crítico: inquisidor e amante.

 

Do mesmo modo, não acredito nos críticos que não sejam nem completamente críticos nem completamente amantes. Não conseguiram, não se deram bem, não querem sair deste mundo, mas nele permanecem ofendidos, não enriquecidos de sabedoria, mas enganados por sua própria (infeliz) experiência. Uma vez que não consegui, ninguém vai conseguir, uma vez que não há inspiração para mim, não há para ninguém. (Se existisse, eu seria o primeiro...) “Sei como se deve fazer.” Você sabe como se faz, mas não como sai. Consequentemente, você não sabe como se faz. A poesia é um ofício, o segredo está na técnica. O sucesso vem de uma maior ou menor Fingerfertgkeit, habilidade manual. Disso, a conclusão é a seguinte: não existe o dom, o talento. (Se existisse, eu seria o primeiro...) É desses fracassados que, habitualmente, saem os críticos — os críticos teóricos da técnica poética, os críticos técnicos, no melhor dos casos, os escrupulosos. Só que a técnica, enquanto fim em si mesma, é o mais pobre dos fins.

Alguém, diante da impossibilidade de se tornar um pianista (um estiramento dos tendões), tornou-se compositor. Devido à impossibilidade do menor, o maior. É uma exceção entusiasmante de uma triste lei: na impossibilidade de ser grande (ser criador), tornar-se menor (“companheiro de estrada”).

É como se uma pessoa, digamos, já não acreditando poder encontrar o ouro do Reno2, dissesse que no Reno não existe ouro nenhum e se entregasse à alquimia: um pouco disso, um pouco daquilo, e lá está o ouro. Mas onde está seu “o quê”, já que conhece o “como”? Alquimista, onde está seu ouro?

 

NOTAS

[nota 1]  “Beleza do diabo” (nota da autora)

[nota 2]  Escolhi de propósito o enigmático ouro do Reno no qual só acreditam os poetas (Rheingold, Dichtergold) [ouro do Reno, ouro do poeta]. Caso tivesse escolhido o ouro do Peru, teria sido mais convincente. Assim, é mais honesto (nota da  autora)

SFbBox by casino froutakia