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O excerto abaixo pertence ao livro Paulo Freire: uma história de vida (Paz e Terra), que será lançado dia 11 de setembro. A obra foi escrita em 2006 por Ana Maria Araújo Freire – mais conhecida como Nita –, doutora em Educação e viúva do pedagogo. A republicação ocorre nos 20 anos de falecimento de Paulo Freire. O livro estava fora de catálogo. 

A edição vem com fotos e documentos inéditos, além de encarte com manuscritos de poemas, escritos por Paulo Freire em diferentes momentos de sua vida e algumas das fichas de cultura, centrais para o Método de Alfabetização Paulo Freire, desenhadas por Francisco Brennand.

 

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Em Paulo não havia, pois, um tempo de escrever e um tempo de ler. Havia sim um tempo de ler/escrever ou escrever/ler. É que esses atos tidos e aceitos quase sempre como separados em dois momentos distintos do ato de conhecer foram entendidos por ele como um instante único e indissociável da construção do saber. Ele não cansou de denunciar essa dicotomia que destrói o saber verdadeiro. Na sua compreensão de educação, na sua teoria do conhecimento está explícita essa unidade no alfabetizar/educar: ler a palavra lendo o mundo. Quando ele “escrevia”, ia “lendo” outros autores e relendo a si próprio da mesma maneira que ao ler a si e aos outros ia escrevendo e reescrevendo sua nova leitura do mundo. Há no ato de ler e no de escrever uma intrínseca relação dialética que torna impossível dissociarmos um do outro, reafirmo com Paulo. Enfim, o ato de ler/escrever em meu marido não foi somente um ato de comunicar ou de dialogar com as leitoras e os leitores ética, estética, pedagógica e politicamente, mas de fustigá-los/as a pensar e a engajarem-se na transformação de um mundo melhor. Foram momentos de anúncio da possibilidade de um mundo mais bonito, mais justo, mais democrático ao denunciar as injustiças de toda sorte.

O ato de ler/escrever para Paulo foi, portanto, e antes de tudo, uma tarefa política. Seus textos, por isso, são muito mais do que “molhados”, são “ensopados” da eticidade estética libertadora de rara beleza, perceptíveis para quem lê os seus escritos, porque faziam parte substantiva de sua maneira de ser, de seu comportamento diante da vida.

Ler e escrever, acredito com Paulo, não são dois momentos distintos e excludentes de criação, de procura de conhecer ou de perpetuação de alguma coisa da cultura de quem escreve ou de quem lê. O de apenas grafar no papel o que a humanidade já construiu, ou o autor está construindo no momento da escrita, para saciar a sua vontade, interesse e curiosidade com pretensões de atingir o/a leitor/a. Ler/escrever é mais complexo do que isso: é uma das mais importantes expressões da cultura que, portanto, só os humanos podem e fazem. O ler/escrever implica compreensão inteligente e sensível do mundo que surge da instância social através da capacidade pessoal do autor e do leitor. Envolve ao mesmo tempo sentimentos, emoções, desejos, sonhos, intuições e necessidades pessoais do autor ou autora a partir do que ele/ela escuta de outros e outras, do que observa do mundo, de como se insere no mundo e do que elabora advindo da sua intuição, do envolvimento do leitor e da leitora na trama do texto e, portanto, das emoções do leitor também. Tudo isso sob a tutela da razão de ambos.

Stricto sensu, ler/escrever estabelece, portanto, uma relação única e profunda entre o saber contido no texto tomado como objeto de conhecimento, que só tem sentido na relação desse objeto com os sujeitos cognoscentes, o autor e o leitor.

Ler/escrever é, pois, uma das representações que surgem da tensão subjetividade/ objetividade do mundo letrado no sentido de perpetuá-lo e fazer possível a sua evolução.

Assim, necessariamente, quem escreve está lendo o mundo para reescrevê--lo diferentemente do que ele ou ela já o faziam anteriormente, mesmo que escrevendo sobre o mesmo tema. Isso porque há em cada momento de criação um outro tempo histórico que interfere nos próprios agentes que fizeram e ou estão fazendo a história.

No ato de ler/escrever há, portanto, a junção da percepção dos fatos e das coisas, com as emoções e a inteligência do sujeito situado e datado – a leitura do mundo do autor –, que, necessariamente, passa tudo isso se assim o quiser aos leitores e leitoras quando o leem para reescreverem todos, em comunhão, o mundo.

Quem lê um livro também, necessariamente, está lendo o mundo que o autor/a leu, daí o escreveu, e aquele o lerá incorporando essa leitura do mundo à sua, modificando, acrescentando ou negando a que tinha anteriormente.

Assim, quem escreve porque leu e quem lê porque está relendo e reescrevendo o que está lendo estão interferindo no mundo. Então, terão formas novas e diferentes de ler o mundo e, portanto, de estar no mundo. Daí ter a possibilidade de estar com o mundo, de tornar-se cidadão, de transformá-lo.

Ler implica, pois, ler com atenção, com cuidado, para reconstruir o mundo do/a autor/a ao ir (re)construindo, reescrevendo o seu próprio. Seja ele o mundo afetivo ou imaginário, o mundo real ou racional do campo social objetivo. Ler, portanto, é uma das formas de reescrever o mundo, e não ir lendo mecanicamente palavras, letras e sentenças.

Os homens e as mulheres precisaram ler/escrever verdadeiramente a palavra, pois esse ato pronuncia o mundo, para irem reescrevendo o mundo continuadamente, porque sem o “ler o mundo/escrever a palavra” – quer se trate de teorias científicas, filosóficas ou pedagógicas quer de romances, contos ou poesias – não teríamos, assim, atingido o estágio civilizatório que atingimos e nem poderíamos estar ampliando-o continuamente. Por tudo isso se diz que o “livro enriquece a alma”, que “um país se constrói com homens, mulheres e livros”, que “o livro é um dos objetos do desejo de homens e mulheres”. Ou ainda, que “temos que marcar a nossa presença no mundo plantando uma árvore, tendo um filho e escrevendo um livro”.

Ler/escrever, pois, faz parte da necessidade de reproduzirmo-nos como espécie humana, como existência humana. Escrever lendo o mundo exige, conforme Paulo acentuava, jamais negar suas emoções, sentimentos, intuições, sensibilidade, ousadia para enfrentar o medo do desconhecido e assim se desafiar para criar o novo, pois ele entendia também não ser possível separar razão/emoção. Concretamente, ele escrevia com a linguagem criada no seu corpo consciente, no seu corpo inteiro, razão e emoção.

Seus textos falam do mundo real segundo sua interpretação, segundo sua leitura de mundo, assim neles estão, pois, os seus sentires e pensares mais autênticos. Nunca pensou em escrever seguindo uma “corrente de ferro” das ideias já conhecidas, ditas, escritas. O processo de escrever lendo o mundo em Paulo não era apenas o de grafar as suas ideias concebidas com os instrumentos de que mais gostava de usar, o lápis ou uma caneta hidrográfica ou esferográfica, numa folha de papel branco.

Paulo tinha a preocupação em produzir textos bonitos, do ponto de vista linguístico e ético. E que expusessem com exatidão e clareza epistemológica o seu raciocínio filosófico-político-ético de educador dos/as oprimidos/as. Seus textos também são momentos estéticos de rara beleza, perceptíveis para quem lê seus escritos. Fez filosofia com rigor e poesia. Escreveu poeticamente a Verdade com adequação, eficiência e ousadia, sem medo de errar, arriscando-se e por isso compôs uma epistemologia sobre a Vida, da Vida.

Outras vezes Paulo reescrevia alguns pontos para rever-se nos seus enganos, para explicar melhor alguma diferença, por menor que fosse, ou para extirpar ambiguidades, provando estar sempre atento em esclarecer melhor aos leitores e às leitoras o que dizia, pensava e queria. Sobre o que sonhava utopicamente.

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