Moby Dick autoria.desconhecida inedito set17


No inédito deste sábado, um brevíssimo trecho de O cânone americano: o espírito criativo e a grande literatura, de Harold Bloom, recém-lançado pela Editora Objetiva. A tradução é de Denise Bottmann.

Nele, Bloom – ele mesmo um crítico literário canônico – elege aqueles que seriam os 12 pilares da literatura dos Estados Unidos: Ralph Waldo Emerson, Emily Dickinson, Nathaniel Hawthorne, Henry James, Mark Twain, Robert Frost, William Faulkner, Hart Crane, Walt Whitman e Herman Melville (autor de Moby Dick, na ilustração acima). Os dois últimos são os alvos do excerto abaixo publicado.

O crítico sabe que inúmeros outros nomes poderiam entrar na lista (Poe, William Carlos Williams, Marianne Moore, Willa Cather etc). Mas defende que os 12 escolhidos são os que melhor representam o “Sublime Americano”, que seria o conjunto de autores cujas obras “transcendem o humano” daquela literatura.


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Nossos dois autores mais ambiciosos e sublimes continuam a ser Walt Whitman e Herman Melville. Whitman cria a partir da vigorosa pressão de si mesmo; Melville se abebera profundamente na força vulcânica de William Shakespeare.

O Shakespeare americano, nesses últimos dois séculos, tem sido uma grande obsessão, numa relação mais ágil e mais viva do que o predomínio cultural do bardo na Grã-Bretanha. Emerson observou que o texto da vida moderna foi criado pelo autor de Hamlet. Moby Dick, bíblico e shakespeariano, baseia-se na fusão de facetas de Macbeth e de Lear em Ahab. A consciência, que em Emily Dickinson, Henry James e William Faulkner é uma provação, em Melville possui a mesma qualidade daquela aventura ao interior do eu que constitui o solilóquio shakespeariano.

Charles Olson, poeta e visionário, foi o primeiro a estudar a influência de Shakespeare em Moby Dick. Outros deram continuidade e ampliaram suas descobertas, e ainda há mais coisas a serem vistas; Macbeth, Rei Lear, Antônio e Cleópatra e, acima de tudo, Hamlet reverberam em toda a odisseia de Ahab. Moby Dick é uma tragédia de vingança? Apenas tanto quanto Hamlet: ou seja, de maneira nenhuma. O príncipe Hamlet rejeita a peça de Shakespeare e escreve sua própria obra. Ahab aceita o épico de Herman Melville? O grande capitão compõe seu destino, e não temos como saber quais eram as intenções de seu enigmático criador, assim como não captamos as intenções de Shakespeare.

Li Moby Dick pela primeira vez no início do verão de 1940, antes de completar dez anos. Todas as minhas simpatias ficaram com o capitão Ahab, em certa medida porque o Livro de Jó e os respectivos desenhos de William Blake estavam profundamente gravados em mim. Mais de sete décadas depois, continuo a dar aulas todos os anos sobre o livro, e minha avaliação ainda é a mesma. Ahab é o herói, tal como o Satã de Milton em Paradise Lost ou como Macbeth. Podemos dizer que todos eles são heróis-vilões, mas, se for por isso, Hamlet também o é. Sinto certo cansaço diante dos acadêmicos que deblateram contra Ahab, o qual é grandioso em seu heroísmo. O que eles queriam, que Ahab fosse caçar mais baleias? Seu objeto de perseguição é o Leviatã de Jó, uma caça representando a tirania santificada da natureza, de Jeová, sobre o homem.

Moby Dick é um pesadelo ecológico; nós também. A causa que Melville abraça não é salvar as baleias, mas bater no sol se ele o insultar e, atravessando a máscara de papelão de todos os objetos visíveis, bater em Deus, que nos degradou. Ahab passou pelo maniqueísmo parse e chegou a um gnosticismo americano, mais ou menos antinomiano. Sim, Ahab é um ditador que afoga toda a sua tripulação junto com ele, exceto Ismael. Mas o que vocês queriam? O Leviatã de Jeová não pode ser derrotado. Ahab deveria se render a Starbuck, que lhe diz estar apenas tentando se vingar de um animal irracional? O capitão prometeico deveria sentir horror de si mesmo e se arrepender entre pó e cinzas? Então escrevam sua própria história, mas não será a de Melville.

O juízo moral, despropositado em Moby Dick e em Shakespeare, faria dr. Samuel Johnson achar Ahab intolerável e abandonar a leitura depois de uma ou duas páginas. Desde aquela que é a melhor frase de abertura da literatura, a Baleia Branca ruma implacável para um desfecho heroico. Tirando Starbuck e Pip, os tripulantes do Pequod votam a favor de sua prodigiosa catástrofe. Ahab está possuído, mas eles também (inclusive Ismael). Como figura de liderança, o capitão tem seu arquétipo em Andrew Jackson [nota 1], que, para Melville e outros mais, representava o autêntico herói americano, uma apoteose da política de um indivíduo que caracteriza o Sonho Americano. De origem humilde, Jackson chegou ao ápice do poder e deu maior clareza ao que, ainda hoje, é o nacionalismo americano.

Negar grandeza a Ahab é um erro estético crasso: ele pertence, em certo registro, à mesma linhagem de Aquiles, Ulisses e rei Davi, e, em outro registro, à de Dom Quixote, Hamlet e o Prometeu alto romântico de Goethe e Shelley. Chamemos a primeira modalidade de heroísmo transcendente e a segunda de persistência de visão. Ambas são contrárias à natureza e protestam contra nossa mortalidade. O herói épico nunca se rende nem se submete.

Tal misteriosa persistência é um perigo para todos nós. Não queremos cavalgar loucamente com Dom Quixote, nem conspirar e contraconspirar com Hamlet na envenenada Elsinore, nem servir no Pequod sob Ahab, o profeta do desastre. Mas onde, a não ser em Cervantes, Shakespeare ou Melville, o leitor poderá melhor viver o sublime? Apenas aquele que se denominava “Walt Whitman, um americano, um dos rudes, um cosmo” [Walt Whitman, an American, one of the roughs, a kosmos] [nota 2] pode comparar-se ao capitão Ahab nos Estados Unidos. Ahab e Whitman são nossos Grandes Originais, nossa contribuição àquela dúzia ou dúzia e meia em que se incluem Falstaff [nota 3] e Sancho Pança, Hamlet e Dom Quixote, Pickwick [nota 4] e Becky Sharp [nota 5].

 

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As notas abaixo são de autoria do Suplemento Pernambuco.

[nota 1]: Jackson (1767-1845) foi o sétimo presidente dos Estados Unidos (1829-1837).

[nota 2]: Em tradução livre: “Walt Whitman, um Americano, um dos durões, um cosmo”.

[nota 3]: John Falstaff é um personagem que aparece em três peças de Shakespeare de formas diferentes (de companheiro de príncipes a um polígamo bufão).

[nota 4]: O sr. Pickwick lidera o grupo de estudos do Clube Pickwick do livro The posthumous papers of the Pickwick Club, de Charles Dickens.

[nota 5]: Protagonista de Vanity fair (1847-1848), romance de William Makepeace Thackeray (1811-1863).

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