O texto abaixo é um excerto do livro Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI, de Pierre Dardot e Christian Laval. Foi lançado pela Boitempo Editorial no Seminário 1917: o ano que abalou o mundo, ocorrido em fins de setembro. A tradução é de Mariana Echalar.
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O futuro parece bloqueado. Vivemos esse estranho momento, desesperador e preocupante, em que nada parece possível. A causa disso não é mistério e não decorre da eternidade do capitalismo, mas do fato de que este ainda não tem forças contrárias suficientes diante de si. O capitalismo continua a desenvolver sua lógica implacável, mesmo demonstrando dia após dia uma temível incapacidade de dar a mínima solução às crises e aos desastres que ele próprio engendra. Parece até estender seu domínio sobre a sociedade à medida que desfia suas consequências. Burocracia pública, partidos de “democracia representativa” e especialistas estão cada vez mais presos a camisas de força teóricas e dispositivos práticos dos quais não conseguem se libertar. A ruína do que constituiu a alternativa socialista desde meados do século XIX, e permitiu conter ou corrigir alguns dos efeitos mais destruidores do capitalismo, faz crescer o sentimento de que a ação política efetiva é impossível ou impotente. Falência do Estado comunista, guinada neoliberal do que nem mesmo merece mais o nome “social-democracia”, desvio soberanista de boa parte da esquerda ocidental, enfraquecimento do salariado organizado, aumento do ódio xenofóbico e do nacionalismo, todos esses são elementos que nos levam a perguntar se existem ainda forças sociais, modelos alternativos, modos de organização e conceitos que deem esperança de um além do capitalismo.
A TRAGÉDIA DO NÃO COMUM
No entanto, a situação que se impõe à humanidade é cada vez mais intolerável. O verdadeiro “espírito do capitalismo” nunca foi tão bem-descrito como pela frase atribuída a Luís XV: “Depois de mim, o dilúvio” [nota 1]. O capitalismo, produzindo as condições de sua expansão sobre bases cada vez mais amplas, está destruindo as condições de vida no planeta e conduzindo à destruição do homem pelo homem [nota 2]. A pressão do capitalismo, porém, foi mais ou menos canalizada por políticas redistributivas e sociais após a Segunda Guerra Mundial, evitando assim, acreditava-se, o retorno dos desastres sociais, políticos e militares produzidos por ele desde o século XIX. Nos anos 1980, o neoliberalismo, com o auxílio de todo o arsenal das políticas públicas, impôs uma via diferente, estendendo a lógica da concorrência a toda a sociedade.
Disso resultou um novo sistema de normas que se apropria das atividades de trabalho, dos comportamentos e das próprias mentes. Esse novo sistema estabelece uma concorrência generalizada, regula a relação do indivíduo consigo mesmo e com os outros segundo a lógica da superação e do desempenho infinito. Essa norma da concorrência não nasce espontaneamente em cada um de nós como produto natural do cérebro: não é biológica, é efeito de uma política deliberada. Com o auxílio diligente do Estado, a acumulação ilimitada do capital comanda de maneira cada vez mais imperativa e veloz a transformação das sociedades, das relações sociais e da subjetividade. Estamos na época do cosmocapitalismo, no qual, muito além da esfera do trabalho, as instituições, as atividades, os tempos de vida são submetidos a uma lógica normativa geral que os remodela e reorienta conforme os ritmos e objetivos da acumulação do capital. É esse sistema de normas que hoje alimenta a guerra econômica generalizada, que sustenta o poder da finança de mercado, que gera as desigualdades crescentes e a vulnerabilidade social da maioria, e acelera nossa saída da democracia [nota 3].
É também essa lógica normativa que está precipitando a crise ambiental. No capitalismo neoliberal, cada um de nós se torna um “inimigo da natureza”, segundo a formulação de Joel Kovel [nota 4]. Há anos o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e o Painel Intergovernamental sobre as Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) vêm produzindo relatórios e mais relatórios que apresentam o aquecimento global como o problema mais importante e mais urgente que a humanidade já enfrentou [nota 5]. As populações mais pobres serão as primeiras a sofrer as consequências funestas do aquecimento global, e, a partir de meados do século XXI, todas as gerações nascidas daqui até lá padecerão com as alterações climáticas. Num livro de grande lucidez, Les guerres du climat, Harald Welzer afirma que “o aquecimento climático agrava as desigualdades globais entre condições de vida e sobrevivência, porque atinge as sociedades de maneiras muito diversas”, e prevê que o século XXI verá “não somente tensões envolvendo o direito à água e ao cultivo, mas verdadeiras guerras pelos recursos naturais” [nota 6].
A crise ambiental não é a única a afetar o destino das populações do globo, e há certo perigo em achar que apenas a emergência climática exige mobilização geral, enquanto empresas, classes dominantes e Estados continuam brigando para tomar para si o máximo de poder, riqueza e prestígio, as usual, como se não tivessem nada a ver com isso. Mas essa crise, talvez mais do que as outras, mostra bem os impasses com que nos defrontamos. O mundo não ficará protegido com a implantação de uma espécie de reserva de “bens comuns naturais” (terra, água, ar, florestas etc.) “milagrosamente” preservados da expansão indefinida do capitalismo. Todas as atividades e todas as regiões interagem. Logo, não é tanto uma questão de proteger “bens” fundamentais para a sobrevivência humana, mas de mudar profundamente a economia e a sociedade, derrubando o sistema de normas que está ameaçando de maneira direta a humanidade e a natureza. É exatamente isso que entenderam todas as pessoas para as quais a ecologia política consequente só pode ser um anticapitalismo radical [nota 7]. Pois qual seria o motivo de o desastre anunciado pelas autoridades científicas não provocar a mobilização que se poderia esperar, com exceção de uma minoria? O diagnóstico de gravidade extrema dado pelo PNUD, pelo IPCC e por inúmeras instituições na atualidade suscita a questão das condições para uma ação coletiva capaz de responder à urgência climática. Nem as empresas nem os Estados dão respostas que permitam fazer frente aos processos em andamento. Os fracassos repetidos das cúpulas sobre as mudanças climáticas apenas ressaltam o confinamento dos dirigentes econômicos e políticos à lógica da competição mundial. A ideia de um destino comum da humanidade não conseguiu se impor ainda, as vias da indispensável cooperação permanecem bloqueadas. Na realidade, vivemos a tragédia do não comum.
Essa tragédia não vem do fato de a humanidade ignorar o que a espera, mas de ser dominada por grupos econômicos, classes sociais e castas políticas que, sem abrir mão de nenhum de seus poderes e privilégios, querem prolongar o exercício da dominação por meio da manutenção da guerra econômica, da chantagem do desemprego, do medo dos estrangeiros. O impasse em que nos encontramos é testemunha do desarmamento político das sociedades. Ao mesmo tempo que pagamos o preço da ilimitação capitalista, somos atormentados pelo enfraquecimento considerável da “democracia”, isto é, dos meios que, apesar de raros e limitados, possibilitavam conter a lógica econômica dominante, conservar espaços vitais não mercantis, apoiar instituições regidas por princípios que não fossem os do lucro, corrigir ou atenuar os efeitos da “lei da concorrência mundial”. Os “dirigentes políticos” que se sucedem ao sabor das alternâncias perderam em grande parte a liberdade de ação perante os poderes econômicos que eles próprios estimularam e reforçaram. O aumento do nacionalismo, da xenofobia, da paranoia por segurança é consequência direta dessa subordinação do Estado, cuja principal função hoje é dobrar a sociedade às exigências do mercado mundial.
É ilusório esperar que o Estado nacional proteja a população dos mercados financeiros, das deslocalizações e da degradação do clima. Os movimentos sociais das últimas décadas tentaram salvar o que podiam em serviços públicos, proteção social e direito ao trabalho. Contudo, nota-se que o âmbito nacional e a alavanca estatal são insuficientes ou inadequados para enfrentar os retrocessos sociais e os riscos ambientais. Nota-se, sobretudo, que o Estado muda de forma e função, à medida que se acentua a competição capitalista mundial, e seu objetivo é menos administrar a população para melhorar seu bem-estar do que lhe impor a dura lei da globalização. Na realidade, se hoje a questão do comum é tão importante, isso se dá porque ele anula brutalmente as crenças e as esperanças progressistas depositadas no Estado. Está claro que não se trata de fazer eco à condenação neoliberal das intervenções sociais, culturais ou educacionais do Estado, mas de resgatá-las de seus limites burocráticos e submetê-las à atividade social e à participação política da maioria.
Notas
[nota 1]: Ver Michael Löwy, Écosocialisme, l’alternative radicale à la catastrophe écologique capitaliste (Paris, Mille et une Nuits, 2011).
[nota 2]: Isabelle Stengers, Au temps des catastrophes: résister à la barbarie qui vient (Paris, Les Empêcheurs de Penser en Rond/La Découverte, 2009) [ed. bras.: No tempo das catástrofes, trad. Eloisa Araújo, São Paulo, Cosac Naify, 2015)].
[nota 3]: Remetemos o leitor a um de nossos livros anteriores, La nouvelle raison du monde: essai sur la société néolibéral (Paris, La Découverte, 2010) [ed. bras.: A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal, trad. Mariana Echalar, São Paulo, Boitempo, 2016].
[nota 4]: Joel Kovel, The enemy of nature: the end of capitalism or the end of the world? (Nova York, Zed, 2002).
[nota 5]: PNUD, Rapport mondial sur le développement humain 2007/2008. La Lutte contre le changement climatique: un impératif de solidarité humaine dans un monde divisé (Paris, La Découverte, 2007) [ed. port.: Relatório de desenvolvimento humano 2007/2008: combater a mudança do clima: solidariedade human a em um mundo dividido, trad. Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento, Coimbra, Almedina, 2007].
[nota 6]: Harald Welzer, Les guerres du climat: pourquoi on tue au XXI siècle (Paris, Gallimard, 2009), p. 13 [ed. bras.: Guerras climáticas: por que mataremos e seremos mortos no século XXI, trad. William Lagos, São Paulo, Geração, 2010].
[nota 7]: Ver John Bellamy Foster, “Ecology against Capitalism”, Monthly Review, v. 53, n. 5, out. 2001.