CONTEXTO
Literatura versus nacionalidade definitivamente não parece ser uma questão relevante para a literatura. Talvez seja para as nações, a depender do grau de notoriedade que um autor atinge. O lugar de onde se fala é, sim, relevante, mesmo que esse lugar seja um lugar nenhum, um reduto objetivamente inexistente em uma geografia não especificada, mas ainda assim marcado como ausência. A língua que se escolhe para escrever, ou em que, sem escolha, se escreve, também é relevante, pois é com a tradição da literatura daquele idioma que cada obra dialogará. Não exclusivamente, é claro.
Pois bem, a literatura alemã – ou literatura de língua alemã, como prefiro diferenciar, por não estar vinculada a apenas um território –, já havia recebido muitas e marcantes influências externas ao longo dos séculos, através de traduções e influências da literatura da antiguidade, das literaturas de língua inglesa, francesa e italiana, para mencionar as mais evidentes. Mas a Segunda Guerra Mundial deixaria outras marcas até hoje perceptíveis na literatura de língua alemã, por ter sido a causa de um processo acentuado de internacionalização dessa literatura. E uma internacionalização que ocorreu de várias formas, de dentro para fora e de fora para dentro.
Menciono aqui apenas dois fenômenos. Em primeiro lugar, o exílio de autores de língua alemã, principalmente alemães e austríacos, fazendo com que boa parte da produção literária a partir do início da década de 1930 fosse interrompida ou ficasse espalhada por diversos países, sem publicação ou, inclusive, escrita em outras línguas. Vários autores passaram a escrever na língua do seu país de exílio ou sob novas óticas adquiridas na sua experiência no estrangeiro.
O segundo fenômeno a que me refiro teria início na Alemanha da década de 1950, quando o país passava por um processo de reconstrução após a destruição causada pela Segunda Guerra. Data dessa época a chegada maciça (chamados pelo governo alemão através de acordos bilaterais com os respectivos países) de trabalhadores italianos, espanhóis, gregos, turcos, iugoslavos e portugueses, os chamados Gastarbeiter – normalmente traduzido como “trabalhador convidado”, mas que também pode ser “trabalhador-hóspede”, ou seja, que teria um período de permanência definido. O escritor suíço Max Frisch resumiu muito bem: “– Chamamos mão de obra, vieram seres humanos”. E alguns desses seres humanos passaram a escrever literatura em língua alemã. Salve!
A história dessa literatura “intercultural” é riquíssima, e o perfil de seus autores é diverso. Simplificando muito, pode-se dizer que, inicialmente, eram trabalhadores que escreviam, depois refugiados políticos e econômicos, os filhos dos primeiros, os filhos dos segundos, representantes de outras ondas migratórias – como, por exemplo a que ocorreu durante a guerra civil iugoslava, nos anos 1990 – e, finalmente, os filhos da globalização. Os temas evoluíram de questionamentos sobre o desterro, sobre diferenças culturais e dificuldades de adaptação à nova cultura até a busca de uma identidade. A denominação dessa literatura também gerou controvérsias ao longo dessas décadas, tendo sido chamada de Gastarbeiterliteratur, literatura dos trabalhadores-hóspedes, Migrantenliteratur, literatura de imigrantes, passando por “literatura multicultural”, “literatura intercultural” etc. Em comum, esses autores têm a experiência de vida em duas culturas e duas línguas diversas e a consequente liberdade das tradições socioculturais e da tradição literária dos dois países em questão. Independentemente da denominação controversa, porém, o final é feliz. Muito feliz, aliás: Herta Müller, uma escritora romena de expressão alemã, recebeu o prêmio Nobel de literatura em 2009, caso queiramos medir o “final feliz” através do enorme sucesso institucional que um prêmio Nobel representa.
Diria, entretanto, que, felizmente, não há um final. Muitos notáveis representantes da literatura contemporânea de expressão alemã não cresceram falando alemão. Aglaja Veteranyi – lê-se “Agláia Veterâni” – foi uma dessas autoras.
Hoje, no mesmo grupo, também estão a ucraniana Katja Petrowskaja e o escritor Saša Stanišić, da Bósnia, para mencionar apenas dois autores que surgiram recentemente no cenário literário de língua alemã e que já estão traduzidos para o português.
ESCRITA
Em seus poemas, ou mininarrativas, como ela os chamava, Aglaja nos apresenta personagens anônimos, que ela chama simplesmente de “a mulher”, “o homem”, “a mãe”, “a menina”. Porém, ao contrário do que a denominação possa sugerir, esses personagens não são caricaturas. Não há muita interação entre eles, é verdade. Eles existem na vida uns dos outros como função, às vezes como mágoa, sem encontros reais. A família aparece destruída, dilacerada. Cada ser permanece um solitário, com sua desorientação e dores, invisível para os outros e para a sociedade. Mas ainda assim há alguma devoção e delicadeza nas relações, embora a melancolia, por vezes quase uma morbidez, esteja sempre presente. É como se a solidão fosse tão grande, que tornasse necessário inventar um objeto de amor e dedicação. E nesse esforço por afeto, por uma vida normal – levar as compotas e as roupas da estação que termina para o porão, preparar uma canja, cantar para o filho dormir e olhar a lua – reside a humanidade e a beleza desses cenários.
Um certo tom de fábula aparece através da sintaxe e do uso de imagens, como meninas que envelhecem e fatos que aconteceram em tempos muito remotos. Há sonhos que não se realizam, mas há sonhos. E, no meio da desesperança, há um tom de esperança nas pequenas janelas – varandas – de onde se vê a lua e onde ela cria uma poeticidade triste, mas bela. Aglaja não se utiliza desses personagens, não se distancia deles. E essa empatia, esse afeto da autora acompanham e conduzem o leitor através dessa poesia um tanto estranha, declaradamente influenciada pela literatura do absurdo.
Embora a casa e partes dela sempre apareçam nos poemas, não há um lugar para a existência dessas pessoas. E quase não há aconchego. Os personagens transitam por lugares inóspitos, constituídos de elementos básicos, em que há sempre algo provisório, uma mala ou algo a ser salvo. É na própria fantasia e no próprio desamparo que esses personagens vivem e nutrem alguma esperança.
A linguagem é simples, as frases são curtas. Ela usa expressões idiomáticas levemente alteradas. A concisão da linguagem é como se fosse um inventário do que resta na vida dessas pessoas. Para a escassez de possibilidades, para a esterilidade do mundo, resta um mundo interior, resta um certo humor que o absurdo pode causar. Uma linguagem quase infantil, mas densa, sem permitir que o leitor se distancie. E quase sempre dói. Mas há uma lua que aguarda e dança. E ela dança para nós.
VIDA
Aglaja Veteranyi, nascida em Bucareste, na Romênia em 1962, tornou-se nos anos 1990 um dos expoentes de uma literatura jovem e irreverente de língua alemã e teve seus prosa-poemas largamente publicados em antologias e revistas literárias. Como muitos autores da chamada literatura intercultural, Aglaja teve uma biografia bastante incomum: ela nasceu em uma família de artistas de circo. Seu pai era o palhaço Tandarica – que sonhava ser diretor de cinema e fazia filmes nas horas vagas. Sua mãe era a “mulher dos cabelos de aço”, a acrobata que ficava pendurada pelos cabelos na cúpula do circo fazendo piruetas. Em 1967, a família fugiu da ditadura de Nicolae Ceaucescu, e Aglaja passou a infância viajando pelo mundo com o circo, morando em trailers e, mais tarde, se apresentando – ela mesma – com o circo pela Europa, África e América Latina. O que poderia parecer leve e lúdico, revela-se cruel e implacável. O desterro e o desamparo ficariam profundamente impressos em sua alma e na de seus personagens.
A partir dos 15 anos, Aglaja passa a viver em um internato na Suíça, onde adquire a sua “língua-madrasta”, o alemão. Mais tarde, em Zurique, forma-se em teatro, trabalha como atriz, diretora e professora de artes dramáticas. Escreve peças e, durante 11anos, dirige uma importante escola de teatro na Suíça. Muito ativa no meio cultural, ela funda em 1993 um grupo de literatura experimental chamado Die Wortpumpe (em português: “A Bomba de Palavras”. Não o artefato explosivo, mas daquelas bombas de ar ou de água) e, em 1996, o grupo de teatro Die Engelmaschine (A Máquina de Anjos).
Em 1999, lança o seu primeiro romance (Warum das kind in der polenta kocht, - Por que a criança cozinha na polenta, São Paulo: DBA, 2004) e único livro que ela lançaria em vida. Esse livro recebeu vários prêmios literários na Suíça e na Alemanha, transformando-se em sucesso de público e de crítica. Sua linguagem, aparentemente lúdica e ingênua, contrasta com um olhar rigoroso, que procura revelar o absurdo e as contradições do cotidiano. Aglaja citava Beckett e Ionesco como autores que a inspiraram. E, pessoalmente, ela me disse ter sido influenciada e encorajada também por Herta Müller.
O romance foi adaptado por ela própria para o teatro e traduzido para várias línguas. No Brasil, a versão portuguesa também recebeu adaptação e montagem para o teatro, pela Companhia Mungunzá de Teatro, de São Paulo, e a peça recebeu vários prêmios. Um segundo romance e uma reunião de seus poemas estavam prontos, quando Aglaja, em meio a uma crise emocional – provavelmente causada por um sério problema de saúde – decidiu por fim à própria vida, em 3 de fevereiro de 2002, aos 39 anos de idade.
POEMAS TRADUZIDOS
A Canção
1
Ele canta. Sua canção é de mel.
Você mora aqui, diz a mulher.
E você é minha mulher, diz o homem. Minha mulher.
Minha mulher.
No jardim cresce a árvore
Da árvore crescem maçãs.
Crescem peras.
Crescem cerejas.
Estamos na estação certa, diz a mulher.
Agora vou levar os vestidos para o porão. Agora vou levar o vidro de compota para o porão. Agora vou levar o verão para o porão.
A escada para o porão tem 10 anos de comprimento. No caminho, a mulher precisa cortar as unhas. Seu cabelo caído, ela põe em uma caixa debaixo da escada. Do seu cabelo, ela vai fazer um travesseiro para ele. Um travesseiro de inverno. Que continua a crescer.
2
Meu cabelo é longo, diz a mulher. Eu o penteei.
Dei-lhe gema de ovo. O cabelo comeu o ovo.
Agora trago a neve, diz a mulher.
Ela chama o homem. Ela o chama com uma voz longa.
O homem põe o gato de 40 anos na mala. Ele pega pão e salsicha. Uma garrafa de vinho. A camisa recém-lavada e o terno de domingo.
O homem espera até que a sombra das árvores tenha ido embora.
3
O pé direito do homem vai devagar.
A cada par de passos ele deposita a mala no chão e se reergue
No olho do homem cai um corvo.
A mulher canta.
Na canção há uma paisagem. Branca.
Por que eu não sou anjo
Um anjo vestiu-se de anjo e permaneceu irreconhecível.
Um outro caiu do céu e despedaçou-se.
Um anjo estrangeiro tornou-se crente e afogou-se na banheira.
No céu, os anjos mortos são empalhados e pendurados na parede.
Eu prefiro permanecer imortal...
Stursa Bulandra
Na verdade, ela ainda vive e sofre de obsessão. Dia desses, mandou trancafiar seus admiradores num armário e afogá-los no poço.
A atriz Stursa Bulandra tinha tão pouco talento, que, durante as suas cenas, até as cadeiras do teatro adormeciam. Suas pernas criaram varizes, e aí ela se matou.
Na verdade, ela se casou, teve filhos, ficou roliça e satisfeita e cheirava sempre à torta de maçã. Um dia ela perdeu a memória e esqueceu-se de acordar.
Verdade verdadeira é só que ela se chamava Stursa Bulandra e que não tinha nenhum talento e que preferia papéis trágicos, de saias longas, por causa das varizes.
E quando ficou velha, bem velha, fingia-se de jovem e parecia uma menina. No asilo, ficava sentada o dia inteiro em frente a um pequeno espelho, penteando-se. Duas vezes ao dia, davam-lhe um comprimido. E, certo dia, ela simplesmente parou de se pentear.
E ainda viveu por muito tempo.
A Varanda
A menina envelheceu, cresce-lhe um caixão
no ventre.
Os seios caem sobre a mesa.
Os amantes já estão mortos há tanto tempo, que todos se chamam Robert.
Antes de dormir a menina dirige-se à varanda.
Lá aguarda a sombra. Lá aguarda a lua.
A lua brota.
Brotar é uma canção.
As gotas de pétalas da lua caem sobre os pés da menina.
A lua dança, diz a menina. Ela dança para nós.
Mãe
Uma vez uma mãe. Disse para o braço: Filho.
Cortou o próprio braço.
Foi à cozinha e preparou para o braço canja
de galinha. Dizia: Filhinho. Come tudo! A mamãe fez
muita sopa. Isso! Isso!
Depois da comida ela pôs o braço na cama. Cobriu-
o. Cantou o braço até o sono.
1 Cartão-postal
A filha
come as velas de aniversário
não
A mãe
Você é como seu pai!
O pai
fica 20 anos fora
envia depois de 20 anos
1 cartão postal
telefona depois de 20 anos
1 vez
canta para a filha depois de 20 anos
1 canção infantil
A filha
envia para a mulher do pai
1 a 2 saudações
Depois de 20 anos
o pai volta
e morre
1 vez
Rosmarie
Meu tio A Viagem tem uma mala cheia de vozes. E uma mulher e um cão. E o cão se chama Rosmarie. E a tia tem outro nome. E o tio se chama A Viagem, embora nunca tenha estado no exterior. Ele passa diariamente 8 horas em seu quarto; ninguém sabe o que ele faz lá dentro. Quando alguém lhe pergunta, ele diz: eu me imagino sentado no quarto. À noite, ele vai ao restaurante italiano da esquina e come lesmas com limão.
Mas lesma nem é comida italiana, diz a sua mulher.
E o tio diz: e daí?
Após a grapa ele retorna e vê o dia na televisão.
Depois anda pela casa e faz uma cara.
Até hoje ninguém viu a mala cheia de vozes. E o tio conta cada vez uma história diferente: quando estou no quarto e me imagino sentado no quarto, tiro uma voz de dentro da mala e mando-a calar-se. As vozes na mala são como macacos, mal saem e já sobem pelas cortinas ou arrastam-se sob o tapete ou entram pelas pernas das minhas calças.
Então a tia vai para a cozinha e bebe vinho branco. O copo metade vazio ela sempre recoloca no armário. Frequentemente retorna à cozinha, e todas as vezes ouve-se ela abrir e fechar a porta do armário. À noite, os seus olhos estão boiando em vinho branco. E enquanto o tio A Viagem escuta o silêncio da sua mala de vozes, escuta-se a tia soluçando no banheiro.
No dia seguinte, o tio conta que, no sonho, ele morava em um refrigerador.
E a tia diz nada em voz alta.
E às vezes ela se enfia na cama em pleno dia.
E o tio sai para a rua em plena noite.
E a tia vai à igreja e acende uma vela.
E o tio conta ao vizinho que tem negócios no exterior, que se tornou criador de minhocas.
E a tia sorri.
E o tio pendura uma tabuleta na porta:
HOJE FECHADO
E o pior desta história é que ninguém se importa com o cãozinho Rosmarie.
A Casa
Um estrangeiro nato perdeu os seus sapatos. Ele os tinha esquecido em sua casa e jogado a casa em um rio. Ou será que a própria casa tinha se jogado no rio?
O estrangeiro nato foi de rio em rio.
Certa vez ele encontrou um velho debaixo d’água com uma tabuleta pendurada no pescoço: AQUI CÉU.
O estrangeiro perguntou: Como assim, céu?
O velho encolheu os ombros e apontou para a tabuleta.
A casa voltou a aparecer, mas em um lugar completamente diferente.
E, provavelmente, era outra casa, pois ela não se recordava mais dos sapatos do estrangeiro.
Mais tarde, a casa perdeu sua porta.
***
O Pernambuco agradece à Random House a cessão de 3 poemas: A casa, (em Aglaja Veteranyi, Warum das Kind in der Polenta kocht; 1999, Deutsche Verlags-Anstalt, München, in der Verlagsgruppe Random House GmBH), Stursa Bulandra e Rosmarie (em Aglaja Veteranyi, Vom geraumten Meer, den gemienten Socken und Frau Butter; 2004, Deutsche Verlags-Anstalt, München, in der Verlagsgruppe Random House GmBH).
O poema A casa faz parte do livro Por que a criança cozinha na polenta (São Paulo: DBA, 2004). Os poemas Stursa Bulandra e Rosmarie foram publicados na finada revista Inimigo Rumor (nº17, 2005). Os demais são inéditos.