No inédito deste sábado (28), publicamos o trecho que inicia o livro De duas, uma, de Daniel Sada (foto; 1953-2011). Considerado por Roberto Bolaño um autor de obras ambiciosas, Sada cria a história de duas irmãs gêmeas que, em determinado momento, começam a se confundir uma com a outra. O autor experimenta doses certeiras de afeto e de sadismo em suas criações, num insólito texto poético que nos leva a pensar que nosso grande problema ético é a solidão.
A publicação, prevista para novembro, é da Editora Todavia, com tradução de Livia Deorsola.
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E agora, como dizer?: de duas, uma, ou duas em uma, ou o quê? As irmãs Gamal eram idênticas… Melhor dizendo, aliás, como sempre se diz: “Elas eram como duas gotas d’água”, mesma idade e estatura, mesmo corte de cabelo, e de propósito. Talvez, ainda por cima, as duas também pesassem uns sessenta quilos – passemos ao presente: ou seja, de longe: qual é qual? Uma é outra, e a outra o nega algumas vezes, certamente em segredo, já que é muito chato ter um duplo de si, quase quase um grude, mas a culpa é delas, que, com o passar dos anos, pretendem imitar uma à outra mais e mais. Os tiques, os movimentos, os gestos iguais, como se fossem espelhos que se encontram. Será que se cansam?… É possível, se bem que, se se cansassem, suas almas seriam nulas. O caso é que: pela vida afora, sua única importância tem residido em sua semelhança, esse duplo sentido que provavelmente é um.
E, procurando outro jeito, para encontrar diferenças é preciso ir aos detalhes. Constitución Gamal tem uma pinta enorme na omoplata direita, enquanto a outra, não: se chama Gloria e é a mais silenciosa, a observadora, portanto… Esse detalhe físico é fácil de ocultar: simplesmente se vestem sem deixar descoberta aquela área. Que a roupa do dia a dia: uma delas seleciona a de ambas, a cor e a estampa, basta que uma escolha logo cedo: a outra apenas aceita… Não há discussão que valha a pena, não há caprichos repentinos.
Quanto à personalidade: que uma seja discreta e a outra tagarela também se resolve: não cair em excessos é a regra. E quanto aos nomes? Esses elas trocam, que diferença faz?! Sua ocupa- ção de todos os dias: são costureiras, são tão perfeccionistas… Magras, lesmas. O que no começo era um inócuo devaneio tornou-se um ofício persistente.
Faz tempo, abriram uma oficina: aqui: em Ocampo: sobrevivem sem ostentações, convencidas de que o trabalho cotidiano é mania de feiticeiros, sendo assim, a sorte há de chegar depois de um grande esforço, a sorte é uma estrela que nenhum olho vê: deduções seguras, repensadas por ambas, oras!, seria até o caso de se falar em prosperidade, se é que suas pretensões não incluem alguma viagem que não seja pela região, conformar-se com pouco já é ganância, e saúde!, porque de vez em quando comemoram os elogios, colocam discos e dançam à noite. Embriagam-se: duas, três taças, se o dia seguinte for sábado ou domingo. Por empatia, por lógica, confeccionam as próprias roupas, para evitar cair em excentricidades que muitas vezes não ornam com o gosto delas – os tecidos que conseguem são pechinchas – e as máquinas Singer de pedal são o símbolo ativo de todas as suas invenções. Um sonho ainda por vir é que tato, visão e miolos se articulem. Também a força de suas pernas tem um significado, força que com os anos já parece desvanecer-se, pois as gêmeas: não se sentem velhuscas, mas suas caras – se não passam creme noite e dia –, vistas de perto, nota-se que estão marcadas… Apesar de seus quarenta anos, continuam se parecendo.
— Se bobear pode ser que você seja Gloria e eu, Constitución.
— Bah!, talvez isso seja conveniente para as duas partes – manifesta-se sarcástica a outra, pois não acredita no que diz.
— Isso quer dizer que a velhice por fim poderá nos safar. Do contrário, vamos ter que aprender coisas sofisticadas de maquiagem e dieta, senão vai ser difícil nos manter parecidas.
— Mas não estamos velhas, quarenta anos não é nada quando se tem fé.
— Se Deus nos fez idênticas, não acredito que, já crescidas, nos passe a perna – proclama, convincente, a que supostamente é a mais taciturna.
— Tem razão, as pessoas ainda nos confundem à distância, até de perto… Mas nem tanto, acredite.
— Isso mesmo, seremos sempre iguais, você vai ver. Não podemos nos dar já por vencidas. – Depois do dito antes: com graciosa malícia, Gloria levanta um dedo o mais alto que pode, Constitución a imita, zombeteira. Bem loucas, gostariam de saltar como duas meninotas. Mas aí, paradas frente a frente, sentem vergonha por ter falado assim; então, cabisbaixas, voltam a suas máquinas.
Esse tipo de conversa não cabe entre elas, porque aí tem história, porque sua identidade foi um duro transe, que, minuto a minuto, dia após dia, foi se amalgamando até ser um espírito unívoco e fortuito. Quase se pode dizer que as Gamal são santas: uma pureza só.
Daí seus papos terem sempre servido apenas para dar ânimo e para que concordem sobre o que devem fazer. Por isso, a gozação provocadora revelada um momento atrás é prova fidedigna de seu amargor senil, por mais que o neguem… E aqui voltamos ao passado, um passado tranquilo, até que aconteceu isto: ainda gurias, filhas únicas, sim, com seus treze anos, seus pais, passeadores contumazes, morreram em um acidente na estrada. Na ocasião, as irmãs Gamal tinham ficado sozinhas, a pedido dos pais, gerenciando a casa em Lamadrid – não era a primeira vez –, sem empregada nem vizinhos nem amigos a quem recorrer; deduz-se, portanto, os problemas da famí- lia no que se refere ao social; de modo que, em confinamento, Gloria e Constitución enfrentaram aquela clausura dividindo, alegres, os afazeres. De fato, embora pudessem, não saíam à rua para tomar sol: não precisavam – valei-me Deus! –: quanto capricho! Some-se a isso, portanto, que seus pais não tinham deixado nem sequer uns trocados, mas sim a despensa cheia o suficiente para sobreviverem por umas duas semanas.
Claro que as duas manas jamais se perguntaram a razão pela qual os pais nem brincando as levavam com eles em seus longos passeios, o certo é que para ambas o fato de estarem sozinhas sem que tivessem escolhido isso foi uma espécie de laço que lhes jogou Nosso Senhor ou o destino – ou, se preferir, o Diabo. De modo que aqueles dias foram grandes, foram de aprendizagem: uma irmandade que cresce e que dá frutos: porque inventavam jogos até que se entediavam, porque inventavam pratos, porque falavam também do que iam fazer quando fossem mais velhas. Desta vez, no começo, a prolongada ausência dos pais as deixou muito felizes, mas… Digamos assim: uma semana: bem; duas semanas: quem se importa?! Mas já na terceira: o que aconteceu?: desassossego que surge sutilmente. Na quarta semana as gêmeas se ressentiram da falta de comida e acima de tudo da falta absoluta de notícias.
Bem, sobreveio o castigo aos progenitores por deixar as filhas ao deus-dará: foram destroçados! Soledad Guadarrama, a tia de Nadadores, foi quem as encontrou, famintas-moribundas, emboladas na cama: acobertadas. Sem pensar duas vezes, foi até o comércio mais próximo de onde trouxe uns quilos de carne e alguns remédios caseiros a fim de revitalizá-las. E se fez o milagre… Depois, sem muito tato, disse-lhes a verdade:
— Seus pais morreram em uma viagem. Parece que o acidente foi horrível, porque, segundo os laudos, os corpos ficaram sem cabeça, mas ainda assim foram identificados; na parte que me toca, quero dizer coisas mais tranquilizadoras. Já deram sepultura cristã a seus pais defuntos no cemitério de Múzquiz.
— E, que mal lhe pergunte: por que foram enterrados lá? – inquiriu a falastrona.
— Hum, certamente andavam por aqueles lados. Foi a autoridade encarregada de acidentes que deu a ordem. Enterraram todos amontoados em um poço gigante, para cada um dos mutilados puseram a cruz correspondente e o nome com grandes letras brancas, de tal modo que se algum familiar chegasse reclamando o cadáver procurado, era só pôr uns homens com picaretas e pás para executar a pesada tarefa do desenterro; os próprios reclamantes identificariam o corpo no meio daquela pilha sob a terra e então em completa liberdade poderiam levá- -lo aonde bem quisessem.
— E os colocaram sem caixão? – perguntou a calada.
— Acho que sim…
Para que mais perguntas? Um silêncio espantoso se fez. Consideraram se a triste ideia de uma reclamação seria razoável, mas nem as manas, muito menos a tia, tocaram no assunto… Seria tão trabalhoso… Só o fato de ver rígidos e deteriorados aqueles seres queridos e de ter que trazê-los direto a Lamadrid travou a língua de todas. O constrangimento ficou em seus pensamentos.
Entretanto a tal omissão deliberada fez nascer nelas, naquele momento, um pico de culpa que com o tempo cresceu muitíssimo, até se tornar consciente. Porém, vamos nos situar no agora:
— Quero lhes dizer que já resolvi o que vamos fazer, e é que vocês vêm comigo a Nadadores. Vão viver na minha casa até se casarem. Terão que trabalhar no que for e procurar um noivo rápido, ou se preferirem ficar solteironas terão que guardar dinheiro suficiente para que com o tempo alcancem a independência. De seus rendimentos eu não pedirei nem um mísero centavo, deixo por conta de vocês, por isso as levo comigo, é uma forma de retribuir os grandes favores que seus pais me fizeram. Quanto a esta casa: colocaremos à venda desde hoje, de modo que: tirem suas coisas para passarmos o cadeado! Prometo que vou lhes dar o dinheiro conseguido daqui, embora eu vá ficar com uma porcentagem mínima, por ser a responsável pela venda. Então venham!