A vida moderna
Sempre tenho tanto medo de perguntar a verdade
como o que foi qual doença sofreu?
quando foi eu sei quais os pêsames
conto até a postagem feliz outra notícia outra foto festa
há três ou quatro dias que partiu
será que o algoritmo mostrou
isso de dois três meses
agravou hospital família amigos
três ou quatro anos desde que o vi
a máquina me mostra fim de ano frio
mercado natalino quentão para dois uma esquina perdida
ruas londrinas fim de semana
três ou quatro dias em Londres desde então
sem tempo com pena eu soube
um amigo a janela vinte horas antes de ir embora
estava doente outra doença eu acho
tinha tantos e-mails a mandar na cabeça
sempre tenho tanto medo de saber a verdade
o lago do esquecimento
se o céu não tem fim
quem pode afirmar que
isso também não tem
se o infinito interminável
não pode ser nunca apanhado
esses dois braços erguidos
negros e decepados
descarnados pelas moscas
e pelo cupim
não podem nunca esperar
que as bocas gastas
de madeira
gritem
se estas águas opacas
só existem para subir
cravando as suas moléculas
nas raízes
para asfixiá-las
Diante
Dizem que todas as lembranças
e todas as células dos nossos corpos
couberam na cabeça de um alfinete
antes de se misturarem na luz
quando, ao redor de nós, ferro e ouro
se fundiram pela primeira vez.
Às vezes me lembro do calor,
da parte de nós que chamejava
na noite e penso na distância,
no vento que despenteia nosso
pelo na pele e levará nossa matéria
daqui. Mas ainda que seja verdade,
que de novo seremos fogo nas estrelas,
segure o que puder de mim
para nos proteger no vento
mais à frente.
Discovery Home & Health
Você acha que é uma piada, mas eu já vi
as coisas se acumularem tão facilmente:
como isso cabe tão perfeitamente sobre
aquilo, como essa conta de luz pode ser
paga e logo colocada sobre o extrato bancário
esperando para ser arquivado e a máscara
de cachorro que a Net mandou
e queria jogar fora faz tempo, como eu
coloquei esse livro aqui para dar uma... Olha só!
tem um recibo marcando o poema que queria
mandar para você, faz, sei lá,
seis meses? Pode-se empilhar papel, mas você
nunca sabe quando vai precisar de cada um
desses oito rascunhos ou esse pacote
de biscoito ou a palavra que anotei
e coloquei ao lado de alguma coisa
para não esquecer. Você acha
que é uma piada, eu sei,
mas está cada vez mais difícil abrir
a porta com tanta coisa jogada
atrás dela, a panela elétrica que acabei
não abrindo, esse nó que uma vez já foi roupa,
as lentilhas que ia cozinhar até ver
que estavam cheias de bichos, esse palimpsesto
de vida que estou conservando com xixi de gato,
a porta realmente está emperrada agora e
deixei de usar a privada como uma pessoa
normal, as paredes estão melando enquanto
ficam podres, essas notas na entrada
nunca virão à tona. Os vizinhos estão
batendo, mas eu juro que vou arquivar
essas contas assim que comprar algumas
pastas. Você acha que é uma piada,
mas nunca foi tão sério assim.
antes das primeiras tentativas de refinarmos açúcar
eu sei. você não entende mais
essa língua nem pode mais
explicar o mel das folhas no vento
ou a seiva deixada nos nossos dedos,
que talvez entendêssemos como a gota lenta
e a doçura, para sairmos com jarros
e enchê-los do alento viscoso
que o vento traz para nós.
o cheio disso agora nos escapa
enquanto vasculhamos nos armários
da memória. será que já perdemos como,
perdemos a destreza de alcançá-lo?
e mesmo que pudéssemos, dizem as vozes,
quem sabe, não acharíamos já amargo?
O Aleph
Tem uma pequena estátua
branca dentro
do meu peito,
feita de porcelana
ou de um plástico duro
e acomodada entre
cada pulmão
e o meu coração.
Você a colocou lá, dizendo
que acalmava o tempo.
E isso é o que faz,
exceto às vezes à noite
quando dá voltas
tão rápidas
que tecem e reparam
e re-emparelham cada
memória, todas as minhas
geografias e, peça por peça,
a história do mundo.