Um homem nasceu para outro – se o sujeito vem tirar onda com sua cara, qual é a sua? Resolver a parada, estou certo ou estou errado? Se não for assim, o homem fica desmoralizado. Igualzinho a um rato. Então, meu velho, você não tem nem que pensar duas vezes. Tome a atitude e depois veja como é que fica. Foi assim comigo, ele riu pra mim e eu não contei conversa, puxei a faca-peixeira.
Senti a faca amoladinha topando primeiro no couro, que é a parte mais dura de se rasgar numa pessoa. Mas basta o homem ter firmeza na mão e não perder tempo pensando se deve ou não matar uma criatura. Quando a ponta da faca topa no couro grosso o negócio é ir adiante, até atravessar. Quem começa o serviço não pode parar na metade.
Depois do couro é beleza, você já sente furando as carnes moles da barriga, deslizando macia, entrando afiada. Meti a faca e no que a arrastei de volta, ela já veio trazendo o fio grosso de sangue quente, melando minha mão. E Josélio gritando ai ai ai, tenha piedade, não faça isso comigo não pelo amor de Deus. Meti outra vez e puxei , ele querendo segurar a lâmina da faca com as mãos e gritando pare, você está me matando. Ele quis segurar a minha, mas a mão dele tremeu demais, e foi me soltando, soltando, enquanto perdia as forças.
Cinco facadas.
Matar é serviço para homem fazer. Tem que saber segurar a faca, com determinação e raiva, e fazer de conta que está surdo. Nesse caso para não ficar se sensibilizando com os gritinhos do sujeito pedindo pelo amor de Deus. É preciso fazer de conta que não se está vendo o desespero nos olhos desesperados da pessoa que está morrendo. Se o homem se abestalhar e ver o branco apavorado do olho do outro, não faz mais nada.
Termina não matando. Termina sem coragem para continuar metendo uma facada depois da outra. Quando o homem dá uma facada é porque decidiu matar. Mas quando vai dar a segunda em diante já é outra decisão. É porque quer fazer o serviço bem feito.
Eu já tinha começado, iria terminar – meti a faca mais uma vez, mais outra, mais outra. E, por fim, a que lhe enfraqueceu todas as energias. O fio da lâmina entrou como se rasgasse um filé de carne de boi no açougue, de tão mole. E ele gritando, me acudam, me acudam.
Claro que ninguém chegou para acudir.
Faca foi feito para isso mesmo, para cortar. Faca boa é aquela que corta bem. E homem corajoso é aquele que tem vontade firme. Por isso que Deus é homem. Eu me senti poderoso, naquele instante, vendo Josélio sangrando, caindo de joelho nos meus pés.
No que ele caiu, segurou minhas pernas. Foi a primeira vez que tocou em minhas pernas.
Ele caiu olhando para cima, para mim, como se pedisse misericórdia. Eu em pé com a faca peixeira na mão e ele caindo nos meus pés. Sem querer, olhei pra aquela pacote caindo. Foi aí que vi os olhos perdendo o vidro, os lábios esticando de dor. Tive até uma certa pena daquele coitado. Nisso, parei. Chutei, afastando-lhe das minhas pernas.
Matei porque ele ria para mim. Foi o que eu disse.
Da primeira vez que Josélio riu pra mim, eu estava chegando ao açougue. Ele era o empregado que meu pai acabara de contratar. Eu nunca tinha visto o cara na minha vida e ele olhou pra mim, perguntou se estava tudo bem e riu, como se já me conhecesse. E me olhou de um jeito que eu fiquei sem graça, sem entender qual era a dele, mas nem dei muita importância.
Sempre fiz sucesso com as mulheres, elas se derretiam. Eu fazia questão de usar camisa regata, mostrando os músculos dos braços. Não é pra me gabar não, mas os filhinhos de papai tinham que malhar muito em academia para ficar com a minha forma. Ou tomar bomba, massa, esses carboidratos que todo mundo conhece.
Eu era – pra dizer a verdade, sou - todo grande, natural, barriga zero, peitoral malhado. Para ressaltar minhas coxas grossas, as panturrilhas que parecem de ferro, eu gostava de usar umas calças apertadas e sair para as baladas. Ainda hoje tenho um corpo de causar inveja, modéstia à parte. E nunca fui dos mais feios. Pelo contrário, sempre tive espelho em casa, então posso falar. As mulheres é que me paqueravam e eu sempre me fazia de difícil. Quer curtir com um moreninho gostoso? Vai ter que suar, era o que eu dizia, pra tirar onda.
Quando Josélio me viu novamente e riu aquele risinho que a gente ri quando vê uma pessoa muito gostosa, eu disse fala sério. Aí eu fiquei pensando: o que esse cara está querendo? Jeito de viado ele não tem, nem eu. Mas aquilo estava parecendo teste de boiolagem.
- Diga aí, meu irmão!
Ele me respondeu, sempre rindo:
-Tudobeleza!
O cara quase me come com os olhos, me olhou de cima a baixo. Pelo tom da voz dele, dizendo tudo beleza, entendi. Era isso mesmo: eu era um cara presença e ele gostou. Na moral, olhar não paga, nem estraga, então pode olhar. Eu sou forte assim por causa da herança. É o que minha mãe dizia, com orgulho, porque ela sabia o que tinha em casa:
- Puxa a seu pai.
Sempre trabalhei aqui no açougue, com meu pai. Nas horas de folga, corria para a academia. Fiquei assim, mas o DNA ajudou. Eu sou moreno, com os olhos esverdeados. Alto e forte, hoje com quase 30 anos. Se eu quisesse, vivia cheio de rapariga. E teve uma época que eu era cachorro. Mas depois casei, tinha a minha mulher. E minha mulher, na moral, é capa de revista.
Anabela chama a atenção. Loirona, gostosona, das coxas bem feitas, dessas mulheres que o cara precisa ser seguro mesmo, senão começa a dizer que é areia demais para o seu caminhão. Mulher alta, de peitos e de bunda grandes, durinhos, que qualquer homem, quando vê, diz:
- Faz isso não com painho...
Quem tem uma mulher assim, precisa de mais nada fora de casa? Na moral, se existisse um concurso de casal bonito, a gente ganhava. Fui o primeiro namorado de Anabela, tirei o cabaço dela, a gente casou. Mas sempre fui muito ciumento. Mas ela só saía comigo. Eu tinha o controle. Ela dizia que não precisava desse ciúme todo, que eu precisava confiar nela. Mas eu sei como é homem e não estava a fim de dar mole. Fala sério, um mulherão daqueles. Uma vez minha mãe disse:
- Anabela está ficando uma mulher apagada, meu filho...
Mas tinha que ser assim mesmo. Quando a gente saía junto, mesmo ela acompanhada, a macharia não tirava os olhos. Imagina ela saindo sozinha. Pô, eu ficava com ciúme, sempre acabava em briga. Chegamos a discutir algumas vezes por isso. Ela dizia que não tinha culpa de ser assim, e eu explicava que o problema é que ela chamava a atenção, que era muito atraente. E se eu pegasse um homem tirando onda, não responderia por mim.
Anabela chamava atenção daqueles homens todos. E eu?! Sim. E eu?!
Eu chamava a atenção das mulheres.
Mas ela chamava mais a atenção dos homens do que eu das mulheres.
Josélio não exagerava, apenas ria para mim todas as vezes que a gente se via. Aquele risinho doce, convidativo . Certa vez, a gente teve oportunidade de conversar e ele foi muito sincero, disse que não queria se aproximar de mim fingindo interesse em amizade. Eu respondi que não tinha preconceito, que achava aquilo tudo engraçado. Mas que não curtia essas ondas.
Com o tempo, fui sentindo firmeza no cara. A gente ficou com uma certa intimidade, mas nada para se censurar. Jamais ele deu brecha para eu falar qualquer coisa. Mas se eu usasse uma camiseta, uma bermuda curtinha, já sabia, naquele dia iria lhe deslumbrar. Só de propósito, eu deixava à mostra meus braços, minhas pernas, bem desenhadas e bronzeadas de sol. Eu sei o efeito que aquilo causava. Mesmo que aquele não fosse o meu desejo – ficar com um homem - não via problemas que ele me desejasse. Achava até engraçado que um homem pudesse me achar interessante.
Josélio fazia tudo o que eu queria. Mas não rolava nada. Mas eu mandava nele. Um dia eu levei Anabela no açougue e resolvi apresentá-la. Foi a primeira e última vez que ele a viu. Ela estava realmente bonita, o cabelo loiro, bem penteado. De calça comprida coladinha, salto alto. Parecia uma modelo. Num minuto os dois se entenderam, pareciam velhos amigos, conversavam amenidades. Josélio, todo simpático, disse que nós dois estávamos elegantes. Anabela respondeu:
- Eu não tenho problema para me arrumar. Mas ele fica dividindo o espelho comigo para se pentear...
Os dois riram. Eu não gostei. Depois, não faltou assunto. Os dois pareciam muito interessados um pelo outro. E eu fiquei escanteado, ouvindo a conversa, sem espaço. Precisavam ficar amigos? Anabela disse adorei você, vamos nos ver outras vezes. E se despediram com beijinhos. Fiquei ligado nisso. Ela conquistava todas as pessoas. Eu pensei comigo pôrra, até esse boiola?
No outro dia eu fui trabalhar, com aquilo na cabeça. Estava muito puto, mal falei com Josélio. Ele riu pra mim, nem cumprimentei. Depois, ele veio e me disse, sua mulher é maravilhosa.
- Por ela eu assumiria minha heterossexualidade.
E riu. Eu ceguei. Tirou onda ou não tirou? Meti-lhe a faca.
Coisa de homem
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