Quando Paulo Leminski foi a convidado a escrever uma coluna semanal para a Folha de Londrina, em 1989, ele sabia que estava prestes a morrer. Com o fígado necrosado, sofrendo com desmaios constantes e terríveis vômitos hemorrágicos, o poeta não cogitava parar de beber, mas voava feito kamiquase em direção ao próprio fim. Entre a primeira coluna no jornal e a sua morte, em junho de 1989, daria tempo de publicar oito textos. Oito pequenos ensaios que esbanjavam humor, vitalidade e lucidez. Mais do que isso: nesses textos finais Leminski ensaiava um vigoroso elogio do conflito, entendendo a Arte de Viver como uma pedestre Arte da Guerra. Para quem estava debilitado, à beira da morte, esse conjunto de oitos textos é, de fato, uma surpreendente afirmação da vida.
Os escritos derradeiros de Leminski foram reunidos no recém-lançado A hora da lâmina. Um livro artesanal, de baixa tiragem, impresso em tipografia e encadernado manualmente. O texto abaixo, intitulado Plano Dois, é um dos que compõem este inutensílio bélico – o primeiro livro publicado pela Grafatório Edições, selo independente baseado em Londrina-PR.
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Plano Dois
(publicado originalmente na Folha de Londrina, em 05/05/1989)
Como todos sabem (e quem não souber, não sabe o que está perdendo), minha pobre vida se rege por princípios estritamente militares.
Napoleão é meu herói e o Da Guerra, do general von Clausewitz, é meu livro de cabeceira. Nada faço sem antes consultar o manual do grande general prussiano, clássico máximo, estudo obrigatório em todo Estado-Maior do mundo inteiro.
As finalidades da guerra. Ataque. Defesa. Como atacar com inferioridade numérica. Como se defender se os víveres escasseiam. Correlação de forças. O papel da comunicação na guerra. Como conduzir com sucesso uma boa retirada (que equivale, para Clausewitz, a uma vitória).
Me pautar por tais princípios levaria um desavisado a pressupor, atabalhoadamente, que tenho uma visão agressiva e feroz da vida, já que a conduzo sob as espécies da guerra.
Seria infeliz essa conclusão.
A guerra não é apenas dor e destruição, perda e desgraça, crueldade e fim da inocência.
Guerrear é umas das coisas mais divertidas da vida. Ocasião perfeita para cada um descobrir o que vale. Exploração dos seus limites máximos. Sobretudo, oportunidade única para aprimorar a pontaria e clarear as ideias, principalmente essa ideia estúpida de que viver é paz e amor, quando todos os fatos apostam no contrário.
Junto com Clausewitz, leio sempre Sun Tzu, o grande estrategista chinês do século quinto antes de Cristo, manual de Mao Tsé-Tung durante a Grande Marcha. Leio muito também O Livro dos Cinco Anéis, de Miyamoto Musashi, o grande espadachim japonês do século 16, gordo de ensinamentos preciosos na área da estratégia e da tática.
Com eles todos, e com a prática diária, descobri essa coisa elementar, mas preciosa: a guerra só é dolorosa quando você perde. Os derrotados odeiam a guerra, que adoravam até anteontem. Os vitoriosos não têm queixas.
Meu profundo respeito pelos grandes mestres da arte da guerra exigia de mim uma contribuição, mesmo que modestamente mínima, ao quadro teórico da arte de guerrear.
Assim nasceu minha teoria do Plano Dois, que aplico em todas as ocasiões, com resultados nada desprezíveis.
Como tudo o mais na arte da guerra, a teoria do Plano Dois se baseia no bom senso e na experiência comum das pessoas.
Nisso, a arte da guerra é sempre paradoxal, misto de senso comum nunca corretamente observado e mistérios jamais suspeitados (um dos primeiros capítulos do livro de Clausewitz é sobre o papel do acaso na guerra).
Vistas assim as coisas, a arte da guerra é apenas a codificação dos modos de ser cotidianos de cada pessoa, a assunção plena do caráter bélico do ato de viver.
Claro que a guerra gira em torno de dois pólos absolutos, derrota e vitória. Mas só um idiota imaginaria que só há esses dois pólos. Há sutilezas. Às vezes, por exemplo, é preciso perder uma batalha para ganhar uma guerra. Uma derrota pode ser um bom negócio, dependendo da habilidade do general que está jogando (a tempo: a guerra, hoje, faz parte, matematicamente, da Teoria dos Jogos, departamento da matemática que lida com probabilidades, tendências e acaso).
É aí que entra minha teoria do Plano Dois.
Em suma, Plano Dois é a segunda hipótese em qualquer empreendimento.
Entre outras coisas, o Plano Dois evita psicologismos baratos, desânimos e outros fenômenos subjetivos que nada têm a ver com a verdadeira arte da guerra.
A teoria do Plano Dois é transparente e o mais imbecil dos generais é capaz de entendê-la à primeira leitura (soube que até generais da Guatemala e das Filipinas já a incluíram em seus currículos).
Exemplificando, digamos que você é traficante de cocaína paraguaio e tem meio tijolo do precioso pó. Plano Dois é você ter passagem para Miami e passaporte antes de começar a vender o corrosivo talco que faz as delícias das narinas de meio mundo, do lado de cá da Cortina de Ferro. Se você dançar, como dizem, perde o pó e o dinheiro. Mas pode recomeçar a vida nova debaixo das amenidades do sol da Flórida.
Tem uma mulher que você está muito a fim. Não deu? Plano Dois. Você procura um amigo gay e diz para ele tudo o que você tinha ensaiado dizer para ela.
A teoria avançada do Plano Dois leva o nome um pouco enigmático (o que não é enigma na guerra?) de “De duas, Uma”.
Percebo que o leitor atilado já está se perguntando: e se não der certo o Plano Dois?
Aí, ou entra o óbvio, o insólito, o inimaginável, o absurdo ou simplesmente a lógica mais elementar.
Tudo é simples.
Por exemplo, se você não gostou deste meu texto, pare agora mesmo e volte a ler o resto do jornal.
Ou ligue a TV. Ou tome banho e vá ao cinema. Ou telefone para aquela pessoa. Ou não faça nada disso. A teoria do Plano Dois é muito democrática.