Nos inéditos deste sábado (18), um trecho da nova tradução de O mestre e Margarida, de Mikhail Bulgákov (1891-1940), recentemente publicada pela Editora 34. O romance, um dos mais influentes da literatura ocidental recente, conta as peripécias de Satã e seu séquito em Moscou.
A tradução é de Irineu Franco Perpétuo.
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Na hora quente do pôr do sol primaveril, apareceram no lago do Patriarca dois cidadãos. O primeiro deles, de cerca de quarenta anos, vestindo um traje cinza de verão, era de baixa estatura, cabelos escuros, bem fornido, segurava na mão o respeitável chapéu similar a um pirojok [nota 1], e seu rosto bem barbeado era adornado com óculos de armação preta de tartaruga de tamanho sobrenatural. O segundo, um jovem de ombros largos, ruivo, desgrenhado, de boné xadrez inclinado para trás, estava de camisa de caubói, calças brancas amarrotadas e sapatos esportivos pretos.
O primeiro não era outro senão Mikhail Aleksándrovitch Berlioz, editor de uma revista grossa de artes e presidente do conselho de uma das maiores associações literárias de Moscou, que tinha o nome de Massolit [nota 2], enquanto seu jovem companheiro de jornada era o poeta Ivan Nikoláievitch Ponyriov, que escrevia sob o pseudônimo de Bezdômny [nota 3].
Ao chegar à sombra de uma tília verde, a primeira coisa que os escritores fizeram foi se lançar para um quiosque multicolorido com a inscrição “Cerveja e refrescos”.
Sim, deve-se notar a primeira estranheza desse terrível entardecer de maio. Não apenas no quiosque, como em toda a alameda paralela à rua Málaia Brônnaia, não havia pessoa alguma. Naquela hora em que, aparentemente, não se tinha forças nem para respirar, em que o sol que abrasara Moscou desabava na névoa seca para além do Anel Sadôvoie [nota 4], ninguém viera para debaixo da tília, ninguém se sentara no banco, a alameda estava deserta.
— Dê-me narzan [nota 5] — pediu Berlioz.
— Não tem narzan — respondeu a mulher do quiosque, ofendendo-se por algum motivo.
— Tem cerveja? — indagou Bezdômny, com voz roufenha.
— Vão trazer cerveja à noite — respondeu a mulher.
— O que tem? — perguntou Berlioz.
— Refresco de damasco, só que está quente — disse a mulher.
— Bem, manda, manda, manda!
O refresco produziu uma espuma amarela abundante, e o ar ficou com cheiro de barbearia. Ao beber, os literatos logo começaram a soluçar, pagaram e se sentaram em um banco de frente para o lago e de costas para a Brônnaia.
Daí ocorreu a segunda estranheza, referente apenas a Berlioz. De súbito parou de soluçar, seu coração deu uma pontada, afundou por um instante e depois regressou, só que com uma agulha cega cravada nele. Além disso, Berlioz foi tomado por um medo infundado, porém tão forte que teve vontade de imediatamente sair correndo do lago do Patriarca, sem olhar para trás. Berlioz fitou ao redor, angustiado, sem entender o que o assustava. Ficou pálido, enxugou a testa com um lenço, pensando: “O que é que eu tenho? Isso nunca me aconteceu... o coração falhar... estou esgotado. Talvez esteja na hora de mandar tudo para o diabo e ir para Kislovodsk...”.
E daí o ar tórrido se condensou na frente dele, urdindo um cidadão diáfano de aspecto estranhíssimo. Um quepe de jóquei na cabecinha pequena, um paletozinho xadrez apertado e aéreo... o cidadão media uma braça de altura, porém tinha ombros estreitos, era incrivelmente magro e sua fisionomia, peço notar, era de escárnio.
A vida de Berlioz transcorrera de modo que ele não estava habituado a aparições raras. Ficando ainda mais pálido, arregalou os olhos e pensou, perturbado: “Não pode ser!”.
Porém, infelizmente, era, e o cidadão comprido, através do qual dava para ver, oscilava na sua frente para a esquerda e para a direita, sem tocar no chão.
Daí Berlioz foi tomado por tamanho pavor que fechou os olhos. Ao abri-los, viu que tudo tinha acabado, a miragem se dissolvera, o homem de xadrez desaparecera e, concomitantemente, a agulha cega largara seu coração.
— Ave, que diabo! — exclamou o editor. — Sabe, Ivan, agora mesmo quase tive um ataque por causa do calor! Houve até algo como uma alucinação — tentava rir, mas em seu coração ainda palpitava o alarme, e as mãos tremiam.
Acalmou-se gradualmente, contudo, abanou-se com o lenço e, dizendo com bastante ânimo: — Pois bem, então... — retomou o discurso interrompido pelo refresco.
Esse discurso era, como se soube em seguida, a respeito de Jesus Cristo. O caso era que o editor encomendara ao poeta, para o número seguinte da revista, um grande poema antirreligioso. Ivan Nikoláievitch redigira o poema, e em bem pouco tempo. Porém, o editor infelizmente não ficara nada satisfeito com ele. Bezdômny retratara o personagem principal de seu poema, ou seja, Jesus, com cores muito negras e, mesmo assim, na opinião do editor, o poema teria que ser reescrito por inteiro. E eis que agora o editor dava ao poeta algo como uma palestra sobre Jesus, para sublinhar seu principal erro. Difícil dizer o que exatamente traíra Ivan Nikoláievitch — se a força de representação de seu talento ou o total desconhecimento da questão sobre a qual escrevera —, porém seu Jesus saíra, então, completamente vivo, um Jesus que outrora existira, apesar de, na verdade, ser provido de todos os traços negativos de Jesus. Berlioz queria demonstrar ao poeta que o principal não era como Jesus tinha sido, mau ou bom, mas sim que esse Jesus, como indivíduo, jamais existira, e que todas as narrativas a seu respeito eram simplesmente invencionices, o mais corriqueiro dos mitos.
Vale assinalar que o editor era um homem lido, recorrendo em sua fala, com muita habilidade, a antigos historiadores como, por exemplo, o célebre Fílon de Alexandria e Flávio Josefo, de educação brilhante, que jamais haviam mencionando palavra acerca da existência de Jesus. Revelando sólida erudição, Mikhail Aleksándrovitch informou o poeta, entre outras coisas, de que aquela passagem falando da execução de Jesus no livro XV, capítulo 44 dos célebres Anais, de Tácito, não era nada senão uma interpolação tardia e falsa.
O poeta, para o qual todas as informações do editor constituíam novidade, ouvia Mikhail Aleksándrovitch com atenção, pousando nele os ativos olhos verdes, para apenas soluçar de vez em quando, e amaldiçoar aos sussurros o refresco de damasco.
— Não há uma única religião oriental — dizia Berlioz — na qual, como regra, uma virgem imaculada não dê à luz um deus. E os cristãos, sem inventar nada de novo, criaram exatamente dessa forma o seu Jesus, o qual, na verdade, jamais esteve entre os vivos. E a ênfase principal deve ser feita exatamente aí...
A voz aguda de tenor de Berlioz propagava-se pela alameda deserta, e, à medida que Mikhail Aleksándrovitch se embrenhava em um labirinto no qual apenas uma pessoa muito erudita podia se embrenhar sem o risco de quebrar o pescoço, o poeta se inteirava de forma cada vez mais interessante e proveitosa do egípcio Osíris, deus benfazejo e filho do Céu e da Terra, do deus fenício Tamuz, de Marduque, e até do menos conhecido e terrível deus Vitzliputzli, que fora bastante reverenciado outrora pelos astecas no México.
E eis que justo na hora em que Mikhail Aleksándrovitch contava ao poeta como os astecas moldavam em massa a figura de Vitzliputzli, apareceu a primeira pessoa na alameda.
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NOTAS
Todas as notas são do tradutor.
[nota 1]: Pãozinho recheado que pode ser assado ou frito.
[nota 2]: Acrônimo fictício.
[nota 3]: Bezdomny significa "sem-teto" em russo.
[nota 4]: Avenida circular no centro de Moscou.
[nota 5]: Água mineral de Kislovodsk, região do Cáucaso.