No inédito deste sábado, um trecho de Cascas, de Georges Didi-Huberman, lançado recentemente pela Editora 34.
A obra traz o relato de uma visita do filósofo ao museu de Auschwitz-Birkenau, na Polônia, em junho de 2011 — do qual retorna com algumas cascas de bétulas e algumas fotos. Ele parte delas para falar sobre a memória do Holocausto e o potencial subversivo das imagens. resultado é uma reflexão ao mesmo tempo pessoal e coletiva, lírica e intelectual. O livro vem acompanhado de uma entrevista inédita que Didi-Huberman concedeu à pesquisadora Ilana Feldman.
A tradução do texto é de André Telles.
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Na Antiguidade e, depois, na Idade Média, a casca das bétulas foi utilizada como suporte de textos e desenhos. Uma tábua pintada de branco com uma caveira estampada recebe o visitante desse lugar, onde predominam a madeira, o tijolo, o cimento e o arame farpado. A partir de 1945 — desde que tal advertência deixou de significar qualquer coisa de imediato —, a pintura branca e preta descascou, como a casca de uma bétula. Mas continua bem legível, assim como é legível, junto com ela, o tempo que a desgastou. Alguns pregos originais desapareceram, foi preciso recentemente prender a tabuleta com um moderno parafuso cruciforme.
Cheguei ao complexo de Auschwitz-Birkenau num domingo de manhã, bem cedo, num horário em que a entrada ainda é livre — adjetivo estranho, pensando bem, mas que dá sentido à nossa vida de cada instante, adjetivo do qual deveríamos saber desconfiar quando o lemos em letras explícitas demais, por exemplo no ferro batido do famoso pórtico Arbeit macht frei —, [nota 1] mais precisamente, num horário em que ainda não é obrigatório fazer a visita sob a batuta de um guia. As catracas metálicas, idênticas às do metrô, ainda estavam abertas. As centenas de fones de ouvido, ainda conectadas nos consoles. O corredor “Deficientes”, ainda fechado. As tabuletas nacionais — Polski, Deutsch, Slovensky —, ainda guardadas nas prateleiras. A sala de Kino, ainda vazia.
Aqui e ali, outras tabuletas: a flechinha verde na parede depois da catraca, intimando a não desviar do sentido obrigatório, verde como a folha das bétulas, ou indicando que o caminho está “livre”. Tabuletas para administrar o tráfego humano, como tantas há, incontáveis, onipresentes. Leio ainda a palavra Vorsicht (“Atenção!”) atravessada por um raio vermelho e seguida pelas palavras Hochspannung — Lebensgefahr, isto é, “Alta tensão” e “Perigo de vida” (quer-se, naturalmente, indicar com isso perigo de morte). Hoje, porém, Vorsicht parece-me soar bem diversamente: antes como um convite a dirigir a vista (Sicht) para um “diante” (vor) do espaço, para um “antes” (vor) do tempo, até mesmo para uma causa do que vemos (como na expressão vor Hunger sterben, “morrer de fome”) — causa ou “coisa originária” (Ursache) cuja eficácia para a “coisa” dos campos não terminamos de investigar.
Outras tabuletas continuam a surgir meio que por toda parte: lápides memoriais, como dizem, ou textos escritos em branco — nos três idiomas, polonês, inglês e hebraico — destacam-se contra um fundo preto. Ou ainda, mais prosaicas, as sinalizações na forma tão familiar de “passagens proibidas”: silêncio; não circule em trajes de banho; não fume; não coma, não beba (a imagem, barrada por um traço vermelho, representando um hambúrguer ao lado de um grande copo de Coca-Cola); não use o celular; não passeie com o rádio ligado; não arraste sua mala nesse campo; não entre aqui com seu carrinho de bebê; não use flash fotográfico ou câmera no interior dos galpões; deixe o cão na entrada.
Este galpão do campo de Auschwitz foi transformado em estande comercial: vende guias, vídeos, livros com depoimentos, obras pedagógicas sobre o sistema concentracionário nazista. Vende até um gibi de segunda categoria, que parece contar a paixão entre uma prisioneira e um guarda do campo. No entanto, é um pouco cedo para nos alegrarmos completamente. Auschwitz como Lager, lugar de barbárie, sem dúvida foi transformado em lugar de cultura, Auschwitz “museu de Estado”, e assim é melhor. A questão toda está em saber de que gênero de cultura esse lugar de barbárie tornou-se o espaço público exemplar.
Parece não haver ponto em comum entre uma luta pela vida, pela sobrevivência, no contexto de um “lugar de barbárie” que foi Auschwitz como campo, e um debate sobre as formas culturais da sobrevivência, no contexto de um “lugar de cultura” que é hoje Auschwitz como museu de Estado. Mas há. É que o lugar de barbárie foi possibilitado — uma vez que foi pensado, organizado, sustentado pela energia física e espiritual de todos aqueles que nele trabalharam negando a vida de milhões de pessoas — por determinada cultura: uma cultura antropológica e filosófica (a raça, por exemplo), até mesmo uma cultura estética (o que fez com que dissessem, por exemplo, que uma arte podia ser “ariana” e outra “degenerada”) [nota 2]. A cultura, portanto, não é a cereja do bolo da história; desde sempre é um lugar de conflitos em que a própria história ganha forma e visibilidade no cerne mesmo das decisões e atos, por mais “bárbaros” ou “primitivos” que estes sejam.
Eu caminhava rente aos arames farpados quando um passarinho veio pousar perto de mim. Bem ao lado, mas: do outro lado. Tirei uma foto, sem pensar muito, provavelmente tocado pela liberdade daquele animal que driblava as cercas. A lembrança das borboletas desenhadas em 1942, no campo de Theresienstadt, por Eva Bulová, [nota 3] uma criança de doze anos que viria a morrer aqui, em Auschwitz, no início de outubro de 1944, possivelmente me veio à cabeça. Mas hoje, observando essa imagem, percebo uma coisa bem diferente: em segundo plano, corre o arame farpado eletrificado do campo, com o metal já escurecido pela ferrugem e disposto segundo uma “trama” bastante peculiar que não vemos no arame farpado do primeiro plano. A cor deste último — cinza-claro — sugere que foi instalado recentemente.
Compreender isso já me dá um aperto no coração. Significa que Auschwitz como “lugar de barbárie” (o campo) instalou os arames farpados do fundo nos anos 1940, ao passo que os do primeiro plano foram dispostos por Auschwitz como “lugar de cultura” (o museu) bem mais recentemente. Por que razão? Seria para orientar o fluxo dos visitantes, empregando o arame farpado como “cor local”? Ou para “restaurar” uma cerca degradada pelo tempo? Não sei. Mas sinto claramente que o passarinho pousou entre duas temporalidades terrivelmente disjuntas, duas gestões bem diferentes da mesma parcela de espaço e de história. Sem saber, o passarinho pousou entre a barbárie e a cultura.
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NOTAS
As notas são de autoria da pesquisadora Ilana Feldman.
Nota 1: Arbeit macht frei — literalmente, “O trabalho liberta” — era a inscrição que recebia os prisioneiros na entrada de vários campos de concentração, inclusive o de Auschwitz-Birkenau.
Nota 2: Em 19 de julho de 1937 é aberta na cidade de Munique, na Alemanha, a exposição que marca o ápice da campanha pública do regime nazista contra a arte moderna: a mostra internacional Entartete Kunst [“Arte Degenerada”]. Organizada por Adolf Ziegler, a exposição reúne cerca de 650 obras, entre pinturas, esculturas, desenhos, gravuras e livros provenientes de 32 museus alemães, consideradas artisticamente indesejáveis e moralmente prejudiciais ao povo pelo governo nacional-socialista alemão (1933-1945), liderado por Adolf Hitler.
Os nazistas classificavam como “degenerada” toda manifestação artística que insultasse o espírito alemão, fugisse aos padrões clássicos de beleza e representação naturalista (em que são valorizados a perfeição, a harmonia e o equilíbrio das figuras) ou apresentasse de modo evidente “falhas” de habilidade artístico-artesanal.
Nesse sentido, a arte moderna, com sua liberdade formal de cunho fundamentalmente antinaturalista, era considerada em sua essência “degenerada”.
Fazem parte da exposição de 1937 obras de Marc Chagall, Otto Dix, Lasar Segall, Wassily Kandinsky, Piet Mondrian, Henri Matisse, Pablo Picasso, Georges Braque, Paul Klee, Max Ernst, entre dezenas de outros artistas de algum modo vinculados ao Expressionismo alemão.
Nota 3: As borboletas de Eva Bulová (nascida em 12 de julho de 1930 na Tchecoslováquia e morta em 4 de outubro de 1944 em Auschwitz-Birkenau) fazem parte de uma coleção de 4 mil desenhos produzidos por crianças no campo de Theresienstadt, inicialmente um campo de “recolhimento e transferência” para os judeus da Boêmia-Morávia. De 1942 a 1944, 6.363 crianças menores de quinze anos foram deportadas de Theresienstadt para Auschwitz-Birkenau. Para a imensa maioria delas, esses desenhos, hoje em grande parte conservados no Museu Judaico de Praga, constituem os últimos vestígios de suas existências.