Descobri que o amor é uma escolha. Respira fundo, acende o cigarro. Acho que não é bem isso que queria dizer, vou começar de novo: Descobri que viver o amor é uma escolha. Todos os dias quando acordo, escolho viver o meu amor. Viro pra parede, olho um quadro com a silhueta de um casal pintada sobre listras azuis e digo: bom dia, meu amor. Beijo o ar e sorrio. Sinto o conforto de um abraço, suspiro satisfeito e tomamos juntos o café pra um. Minha amada sempre do meu lado, eu sozinho à dois.
No começo foi assustador. Onde deveria existir uma mão, um sorriso, boa noite: nada. Antes de entrar em desespero, respirei. Chamei a saudade num canto e num papo sincero lhe perguntei suas intenções. Fiquei aliviado e até calmo, ela não queria me matar. Me garantiu que seu abraço doía, mas não machucava. A empatia foi imediata, em poucas semanas viramos íntimos. Amiga boa e generosa, me ensinou bastante. Foi com ela que aprendi a conversar com papéis, fotos, músicas... A cada play uma longa discussão: novos e velhos baianos, Ângela Ro Ro, Dylan, Pink Floyd, todos muito dispostos a ouvir minhas lamentações.
Em cada canto do quarto um bilhete. Pequenas declarações de amor retiradas de um cotidiano passado para forjar, após um oceano atlântico, um dia a dia de casal. Um “É muito bom saber que tem tu para escovar os dentes na mesma hora que eu todos os dias” pendurado no espelho faz um bem danado. Finjo que não descobri a quantidade de horas que cabem num minuto e deixo-o grudado no lavabo, indiferente à data rabiscada embaixo: setembro de dois mil e nove. Minha amiga saudade também me ensinou adorações. É preciso acender mais um cigarro. Aperto o play e começo a ouvir a mesma música pela terceira vez. So you think you can tell heaven from hell? No catecismo da saudade construí um altar sem velas para em preces silenciosas de amor evocar a amada. Transformei minha namorada numa entidade, um poltergeist simpático com lindos olhos e boca grande. Did they get you to trade yours heroes for ghosts?
A distância tem dessas coisas. Eu escolhi amar e fui obrigado a abraçar a loucura. Afinal de contas quero ser feliz numa relação mediada por uma tela fria e um teclado prateado com letras emperradas. Meu deus, como deve ter sido difícil a vida sem skype! Meu amor é fruto da pós-modernidade, não há dúvidas. Todas as noites atravesso o atlântico e chego numa sala quente e aconchegante de Olinda sem sair do hall inóspito da Residence Universitaire. Logo eu que fui sempre tão vintage, tenho agora que louvar a conexão francesa de não-sei-quantos megabytes por segundo e ainda ter paciência ao lidar com toda essa tecnologia. Ver a conexão cair mais de uma vez no meio de uma DR não é a experiência mais agradável do mundo. Did you exchange a walk on part in the war for a lead role in a cage? E não adianta rezar, os santos parecem não saber muito bem o que significa internet wifi. Para aliviar um pouco a tensão e o stress vale xingar o computador, principalmente se as pessoas ao seu lado não entendem o português, e amaldiçoar até a quinta geração os estúpidos cientistas que ainda não inventaram o teletransporte. Mas atenção, em hipótese alguma, nem nos momentos mais desesperadores, vale bater no computador. Beijar, entretanto, depende do tamanho do desespero.
Uma noite dessas, quando já não tínhamos mais notícias pra trocar, nós resolvemos escutar músicas juntos. Escolhíamos o vídeo da canção no Youtube e esperávamos carregar. No momento exato, dávamos play ao mesmo tempo. Conseguimos até cantarolar juntos as mesmas coisas. Ficamos a madrugada inteira entre o skype e o Youtube. We’re just two lost souls swimming in a fish bowl. Aquela noite foi fácil dormir. Queria fumar mais um cigarro agora, mas tenho que economizar... Tinha até parado por conta do preço, mas descobri que em determinados momentos certas economias não valem à pena. Às vezes é bem difícil pegar no sono. Nas madrugadas podemos descobrir alguns monstros embaixo da cama. What have we found? The same old fears.
Mas o pior de todos os medos não surge aterrorizante num pesadelo suado, nem desesperador num momento de tristeza. Ele vem bastante racional, num vento silencioso. Aparece logo após a sensação de bem-estar, quando percebemos que estamos, os dois, conseguindo levar nossa relação, que estamos vivos (e vivendo) apesar dos milhares de quilômetros que nos separam. Aparece como uma pulga que cochicha: estamos todos bem. Como podemos ser felizes apenas como fantasmas? Respira fundo. Acende um cigarro. Há um tempo já não tem neve na janela, é primavera. Mas hoje fez frio. É aquele medo de não ser mais tão necessário, entende?! Lá são vinte horas e vinte oito graus. Aqui é madrugada, ligo o skype. Antes mesmo de falar qualquer coisa, vejo na outra face a gravidade do mesmo medo. E vendo aqueles olhos tão assustados e tão reais, descubro que não devemos temer o impossível. A questão é que somos forçados a ficar bem, nisso não temos escolha. O que podemos escolher é continuar juntos e estamos juntos, apesar da distância. Se estamos bem é exatamente por tudo aquilo que vem antes do “apesar”. Isso já foi decidido e é repetido na prece nossa de cada dia. Juntos: os mesmos medos, as mesmas apreensões, as mesmas saudades, as mesmas lágrimas, as mesmas lembranças, os mesmos sorrisos e o mesmo desejo. How I wish, I wish you were here. Em nome do pai, do filho e do espírito santo. Amém.
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- Categoria: Inéditos