O texto abaixo pertence à abertura do livro Contra as eleições, lançado pela Editora Âyiné.
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Há algo estranho com a democracia: todos parecem desejá-la, mas ninguém acredita mais nela. Como mostram as estatísticas internacionais, cada vez mais pessoas a defendem. A World Values Survey, programa de pesquisas internacional de grande envergadura, entrevistou mais de 73 mil pessoas de 57 países, o que representa cerca de 85% da população mundial. Perguntados se a democracia é um bom sistema de governo, 91,6% dos entrevistados responderam que sim [nota 1]. Jamais havia existido tamanha parcela da população mundial favorável à democracia.
É espetacular tal entusiasmo, sobretudo se lembrarmos que, cerca de 70 anos atrás, a democracia era algo desprezado. Ao final da Segunda Guerra Mundial, por culpa do fascismo, do comunismo e do colonialismo, existiam apenas 12 países democráticos [nota 2]. Aos poucos o número foi aumentando. Em 1972, eram 44 nações [nota 3]. Chegou a 72 em 1993. Hoje são 117 democracias com eleições livres de um total de 195 países. Noventa deles têm democracias consideradas reais. Jamais na história da humanidade existiram tantas democracias e jamais ela teve tantos partidários como hoje [nota 4].
Entretanto, o entusiasmo diminuiu. A mesma World Values Survey revelou que, em todo mundo, o número de pessoas que defende líderes fortes “que não se importam com eleições parlamentares” aumentou consideravelmente nos últimos 10 anos, assim como a falta de confiança nos parlamentos, nos governos e nos partidos políticos atingiu números alarmantemente baixos [nota 5]. Constata-se que a ideia de democracia agrada as pessoas, mas sua aplicação na prática não convence, ao menos como tem sido praticada hoje.
Essa queda de confiança é, em parte, culpa das democracias jovens. Vinte anos depois da queda do Muro de Berlim, a desilusão é bastante grande em muitos países do antigo bloco oriental. A Primavera Árabe parece estar bem longe de desabrochar em um verão democrático. Mesmo nos países onde há eleições (Tunísia, Egito) são muitos os que descobrem a face negra do novo sistema. Constatação amarga: as pessoas que têm o primeiro contato com a democracia logo percebem que na prática a teoria é outra, sobretudo se a democratização do país é acompanhada pela violência, pela corrupção e pela recessão econômica.
Mas essa não é a única explicação. Mesmo as democracias mais sólidas são confrontadas, cada vez mais, com sinais contraditórios de atração e rejeição. Em nenhum lugar, o paradoxo é tão impressionante como na Europa. Ainda que a ideia de democracia tenha raízes históricas e possua larga sustentação, a confiança nas instituições democráticas diminuiu a olhos nus. No outono de 2012, o Eurobarômetro, órgão oficial de pesquisa da União Europeia, constatou que somente 33% dos europeus confiam na União Europeia. (Em 2004 a confiança era de 50%!) A confiança nos parlamentos nacionais e nos governos é ainda mais baixa, chegando, respectivamente, a 28% e 27% [nota 6]. São os números mais baixos dos últimos anos. Atualmente, de 2/3 a 3/4 das pessoas desconfiam do próprio ecossistema político. E, mesmo que o ceticismo seja a base de uma cidadania crítica, é legítimo se perguntar o quanto essas proporções podem crescer e a partir de qual patamar uma desconfiança sadia pode se transformar em real aversão.
Números recentes dão uma boa ideia do tamanho dessa desconfiança em toda a Europa. Eles não se aplicam apenas às instituições políticas propriamente ditas, mas também a outros setores públicos, como o correio, o sistema de saúde e o transporte. A confiança política não é nada mais do que um reflexo do ambiente em que se vive. Mas, além das instituições democráticas, quem obviamente mais sofre com a crise de confiança são os partidos políticos (receberam nota 3,9 dos cidadãos da União Europeia, de um máximo de 10), seguidos pelos governos (4), os Parlamentos (4,2) e a imprensa (4,3) [nota 7].
A desconfiança é recíproca. O pesquisador neerlandês, Peter Kanne, recentemente apresentou números interessantes sobre a visão que os representantes dos partidos no parlamento dos Países Baixos, em Haia, têm da sociedade neerlandesa. Cerca de 87% dos membros da elite governamental dos Países Baixos descrevem-se, eles mesmos, como inovadores, respeitadores da liberdade e orientados para o exterior, mas 89% deles acham que a população é tradicional, nacionalista e conservadora [nota 8]. Os políticos, em sua grande maioria, tendem a considerar que os cidadãos têm valores diferentes dos seus, menos elevados do que os seus, evidentemente. Não há motivo algum para pensar que esses números sejam muito diferentes fora da Europa.
Voltando ao cidadão. A palavra utilizada para explicar essa desconfiança é “apatia”. A individualização e o consumismo teriam minado de tal modo o espírito crítico dos cidadãos, que sua crença na democracia foi transformada em tibieza. Hoje, no melhor dos casos, há uma indiferença morosa, e logo se quer mudar de assunto quando surge algum argumento político. O cidadão “desliga”, como dizem por aí. Mas as coisas não são bem assim. É verdade que muitas pessoas têm interesse limitado na política, mas sempre foram um contingente substancial. Não se pode falar em diminuição do interesse nos últimos tempos. Estudos mostram que, ao contrário do que se pensa, é maior o interesse na política hoje do que no passado: fala-se mais de política hoje com os amigos, a família e os colegas do que antes [nota 9].
Não é questão de apatia então. Será que estamos mais tranquilos? Não é esse o ponto. Uma época em que o interesse pela política cresce enquanto a confiança na política diminui tem claramente um caráter explosivo. Alarga-se cada vez mais o buraco entre o que pensa o cidadão e o que ele vê o político fazer, entre aquilo que julga indispensável ser feito enquanto cidadão e aquilo que, segundo ele, o Estado não faz. O resultado é a frustração. Qual pode ser a consequência para a estabilidade de um país quando cada vez mais cidadãos acompanham com paixão as ações dos detentores do poder, em quem têm cada vez menos confiança? Quantos olhares desconfiados pode suportar um sistema? E são apenas olhares desconfiados de uma época em que cada um pode exprimir e compartilhar seus sentimentos na internet?
Vivemos em um mundo completamente diferente daquele dos anos 1960. Naquele tempo, um camponês podia ser totalmente apático politicamente e, ao mesmo tempo, ter uma confiança absoluta na política [nota 10]. Os camponeses, em grande parte da Europa ocidental, como mostraram estudos sociológicos, eram confiantes. Essa era a divisa: apatia e confiança. Agora é outra: entusiasmo e desconfiança. Tempos conturbados.
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Democracia, aristocracia, oligarquia, ditadura, despotismo, totalitarismo, absolutismo, anarquia. Todo sistema político deve encontrar o equilíbrio entre dois critérios fundamentais: eficiência e legitimidade. Eficiência em resposta à pergunta: quanto tempo o governo precisa para encontrar as soluções para os problemas que se apresentam? Legitimidade em resposta à pergunta: em que medida os cidadãos estão de acordo com as soluções propostas? Eficiência tem a ver com a capacidade de realização; legitimidade, com o apoio dos cidadãos às ações públicas. Esses dois critérios são, em geral, inversamente proporcionais: a ditadura é indubitavelmente a forma mais eficaz de governo (a decisão cabe a uma única pessoa), mas muito raramente é legitimada por muito tempo. Por outro lado, em um país onde as decisões são debatidas pelos habitantes, tem apelo popular, mas seguramente pouca capacidade de realização.
Democracia é a menos pior das formas de governo justamente porque ele procura satisfazer os dois critérios. Toda democracia busca um equilíbrio saudável entre legitimidade e eficiência. Uma hora se critica um lado, outra hora, o outro. O equilíbrio do sistema é como o de um marinheiro em um navio, que deve distribuir o peso entre as duas pernas segundo a agitação do mar. As democracias ocidentais de hoje, entretanto, enfrentam simultaneamente crises de legitimidade e de eficiência. É uma situação de exceção. O mar não está agitado, é uma tempestade. Para entender, devemos analisar os números, que raramente aparecem nas manchetes. Se olharmos com lupa os dados de cada pesquisa de opinião e de cada resultado de eleição, perdemos de vista as grandes correntes marítimas e as variações climáticas.
NOTAS
As notas abaixo foram reproduzidas da obra na íntegra.
[nota 1]: http://www.wvsevsdb.com/wvs/WVSAnalizeQuestion.jsp
[nota 2]: Eric Hobsbawm, Age of extremes: the short twentieth century, 1914-1991. Londres, 1995, p. 112.
[nota 3]: Freedom House, Freedom in the World 2013: democratic breakthroughs in the balance. Londres, 2013, pp. 28-9.
[nota 4]: Ronald Inglehart, “How solid is mass support for democracy — and how can we measure it?”. PSOnline, www.apsanet.org, jan. 2003, pp. 51-7
[nota 5]: Entre 1999 e 2000, 33% dos entrevistados acreditavam que lideres fortes não deveriam levar em conta as eleições parlamentares; o número cresceu para 38,1% entre 2005 e 2008. Com relação à confiança no governo, entre 2005 e 2008, 52,4% dos entrevistados tinham nenhuma ou pouca confiança no governo, 60,3% no Parlamento e 72,8% nos partidos políticos. Ver www.wvsevsdb. com/wvs/WVSAnalizeQuestion.jsp.
[nota 6]: Eurobarômetro, Standard Eurobarometer 78: First Results, out. 2012, p. 14. http://ec.europa.eu/public_opinion/archives/eb/ eb78/eb78_first_en.pdf
[nota 7]: http://www.eurofound.europa.eu/surveys/smt/3eqls/index. EF.php. Os números relativos a imprensa, Parlamento e governo são de 2012, e o dos partidos é de 2007.
[nota 8]: Peter Kanne, Gedoogdemocratie: Heeft stemmen eigenlijk wel zin? Amsterdam, 2011, p. 83.
[nota 9]: Koen Abts, Marc Swyngedouw e Dirk Jacobs, “Politieke betrokkenheid en institutioneel wantrouwen. De spiraal van het wantrouwen doorbroken?”, em Koen Abts et al., Nieuwe tijden, nieuwe mensen: Belgen over arbeid, gezin, ethiek, religie en politiek. Lovaina, 2011, pp. 173-214.
[nota 10]: Luc Huyse, De niet-aanwezige staatsburger. Antuérpia, 1969, pp. 154-7.