MJM ilustramar.18 cristhiano

 

Abaixo, um trecho do livro Na outra margem, o Leviatã (Lote 42), de contos. A obra será lançada em março. 

O texto abaixo é intitulado Miniatura.

 

***

 

Um piano no domingo

Ouvi o som de um piano no domingo passado. Abandonei o que fazia, fiquei imóvel: a música vinha do meu prédio, ou de algum edifício vizinho?

Concluí que o musicista, se de fato a música existia, estava nas imediações. Sempre escutei muito mais canções, em especial o rock and roll, portanto não podia julgar se aquilo que ouvia se tratava de uma boa execução. Desconfiei, contudo, de uma perda de foco na performance. As teclas eram apertadas com força demais?

Fui à janela, botei a cabeça para fora. No prédio da frente, vi uma mulher negra, baixa estatura, vestido branco, limpando uma janela. Em outro apartamento do mesmo prédio, um senhor branco, quipá em sua cabeça, mantinha, sentado em uma cadeira de rodas, o olhar na rua logo abaixo. Um andar transformado em um quadro de Portinari; o outro, em um Hopper. E nada de achar o piano.

Primeiro, julguei se tratar de algum morador do meu prédio. Depois, concluí que o pianista tocava de outro local, porém não parava de me perguntar: moro neste endereço faz alguns anos, por que nunca tinha ouvido esse piano antes? Seria uma gravação? Não pode ser.

A música me remetia a alguém calorosamente compartilhando sua arte com todos nós; ou alguém atormentado por fantasmas e demônios interiores, buscando libertação a todo custo. Pensei primeiro em uma jovem com vestido de noiva (tinha que ser assim); em seguida, em uma senhora com quase 90 anos, uma dessas velhinhas que encontramos em documentários de sobreviventes da Segunda Guerra Mundial; por fim, a pessoa executando a música voltou a ser um homem trajando cartola e paletó.

Então me lembrei de dois versos: “Soltaram os pianos na planície deserta/ Onde as sombras dos pássaros vêm beber”. Fechei a memória e voltei para a janela, senti a urgência de rever tanto a mulher esfregando o vidro da janela quanto o velho observando a rua. Havia algo que eu quase pude manipular, quem sabe uma forma de esclarecimento… Mas as janelas dos dois andares estavam cerradas e opacas. Talvez nunca tivesse havido alguém nelas? E o quarteirão voltava ao silêncio.

 

Naturae

Faustine não deixava de observar a si própria: a principal moldura para suas manhãs sempre ao sair para o trabalho, diante do espelho do elevador.

Naquele dia, porém, não enxergou a sua imagem habitual. Uma rachadura, que começara na base, ocupava boa parte da superfície. As linhas nervosas apareceram de um mesmo ponto e se afastavam umas das outras até chegarem ao topo. A impressão que teve foi a de enxergar o raio-X de uma mão monstruosa, mão das madrinhas malvadas dos contos de fadas. Alguém gentilmente tinha coberto cada rachadura com duas camadas de fita adesiva. Precauções da síndica, talvez. Uma criança, brincando, entrou com tudo, ou tropeçou, sabe lá Deus, batendo a cabeça com força no vidro? Um casal teria iniciado uma discussão e um deles metera uma cacetada no espelho? Uma mudança e algum objeto escorregara no processo de retirada, se chocando com o vidro?

Por outro lado, poderia não haver causa alguma. Ou, ao menos, uma causa que fosse visível. A rachadura teria nascido? Se nasceu, significa que, durante semanas, ou anos, um conjunto de forças, silenciosas às percepções, agiram umas contra as outras enquanto o elevador desempenhava seu diário trabalho a serviço dos moradores e visitantes do edifício Hannah. A pressão do ar, os puxões da gravidade, o peso... As leis naturais forçaram, desconjuntaram, exigiram do espelho o pagamento de um tributo, que nada mais era do que uma desistência. A cada dia, uma doação. Uma pequena descida. Até chegarmos ao estilhaço. E por que o espelho não desmoronou por completo? Por que não virou, como escreveu um poeta, um bocado de tempo atrás, “caos, massa indigesta, rude”? Complicadas equações, gráficos e vetores poderiam se materializar diante dos olhos de Faustine, dando a explicação exata.

No entanto, as portas acabavam de se abrir e o dia a empurrou em direção à cidade agitada. Até porque a rachadura pode ter surgido, e não nascido. Surgir: assim, em um piscar de olhos. Um milagre na terra, um milagre humilde, a quem ninguém, nem nossa amiga, tinha prestado atenção. Ou, o que seria mais terrível, a rachadura sempre existiu ali. Como um portão cravado na manhã, como um cão de três cabeças, um anjo exterminador; um anjo, a espada flamejante, impedindo chegadas e partidas.

 

A tua presença

Decidimos sentar em uma das esquinas da Santa Cecília, embora naquele momento já tivéssemos perdido o interesse um pelo outro. Deveria ter sido um encontro perfeito. Luana era de uma beleza morena, cacheada, ao som de “paralisa meu momento em que tudo começa”. Pernambucana, morava há anos em São Paulo com a avó. Trabalhava como produtora para agências de publicidade, galerias de arte, músicos.

Sentados, pedimos acarajés e uma Serra Malte. Comentou que acabava de ter um vislumbre do que era de fato estar em São Paulo. Insisti para que me explicasse e ela não conseguiu. Falou de um aqui, “mas não tô falando esse aqui, Lucas, não nós dois sentados numa calçada bebendo e daí pagando a conta neste bar”. Para encerrar o assunto, fez um gesto. Então a tarde abafada se expandiu, porque Luana se transformou, durante um segundo, em uma outra pessoa, uma mulher ausente. O fato mistura presente e passado. Você me pede para descrever o gesto; você me pede mais informações a respeito da mulher que Luana me obrigou a recordar. Só consigo tirar, ao acaso, peças polidas, sólidas, do baú (e elas são para mim quase tão desconhecidas quanto uma fileira de formiguinhas): um bloco de carnaval; jogos amorosos; seios pequenos e um delicioso sofrimento; uma flor de papel; cartões-postais; separação.

Luana, calada, me observava. Gotículas de suor cobriam o seu rosto. Me “observava”, acabei de dizer? Errado. Seus olhos buscavam uma presença qualquer e esta presença não estava nem em mim, nem naquela rua. Será que alguma palavra minha, ou mesmo meu corpo, também a fizeram lembrar de alguém? Ou eu estava, como é bem mais provável, apenas atrapalhando, um intruso no meio do caminho de uma investigação? Sem dizer mais nada, bebemos o resto da cerveja; o silêncio não foi constrangedor, porque não havia tempo para esse tipo de coisa. Gotas grossas começaram a cair, embora o sol estivesse à vista, maduro. Um bafo subiu das pedras e do asfalto. Duas paisagens semelhantes, duas paisagens nos mantinham aprisionados. Quando um dos dois – quem? – conseguiu pedir a conta, nos despedimos sem tropeços.

 

Trappist-1

O avental cobria sua farda. O logotipo do shopping-center na altura do peito. Uma vassoura.

Com a barriga encostada na bancada do banheiro, o faxineiro lutava contra o sono quando Lucas Motta entrou ali, após voltar de uma caminhada na Paulista com Natanael e Faustine. Quanto às conversas, o de sempre. O Ocaso do Sistema Artístico e Intelectual, a esquerda e a direita, álbuns de rock, impeachment. O mais falante foi Natanael, sem dúvidas, gesticulando muito e não perdoando a integridade moral de nenhum ser vivente, em especial dos “esquerdopatas”; Faustine discordava de forma impaciente e cortante, mas no fim tudo lhe parecia ser uma piada de mau gosto; Lucas tentava ser mais otimista em meio a tantos acontecimentos recentes. Mas não procurava opinar de fato, nem apoiar totalmente as perspectivas dos seus dois amigos; no fundo, ele gostava não só de debater ideias, mas em especial fazer malabarismos no meio delas; ele se enxergava tal qual aqueles garçons a que assistimos em reality shows, ou nas competições de festas de bairros, aqueles tipos que competem, por exemplo, em desafios de equilibrar os pratos. No seu caso, cada resto de comida era uma ideologia.

Natanael e Faustine se despediram dele e desceram a Consolação em direção ao Edifício Hannah. Lucas, por outro lado, decidiu engrandecer seu capital intelectual dentro de uma das livrarias da região. Após algumas horas, o capital não intelectual lhe agradeceu: Lucas caminhava com novos livros dentro de duas sacolas feitas de material sustentável.

Atravessou a Angélica. Caminhou por quarteirões arborizados, prédios elegantes e cachorros. Dia seco, quente, mas nuvens escuras se acumulavam no céu. Lucas decidiu entrar em um shopping center à procura de três itens civilizatórios:

a) ar-condicionado;
b) guarda-chuva;
c) sorvete.

Uma imagem, impressa na primeira página de um jornal exposto na banca de revistas da esquina do shopping, capturou a sua atenção: sete planetas, cada um de uma cor, flutuavam, posicionados em uma linha reta, em um pano de fundo escuro, que representava o espaço sideral. Na extremidade esquerda da imagem, uma bola de fogo, maior do que os planetas, brilhava. Cada um deles revelava, em meio às trevas, apenas parte de suas próprias faces.

Banheiro vazio, perfumado, iluminado. A porta de entrada dava acesso a um corredor e em ambos os lados havia um conjunto de pias e espelhos. À esquerda, uma entrada dava acesso aos mictórios e aparelhos sanitários. Os olhos do faxineiro estavam entreabertos e avermelhados; os lábios, meio tortos. Embora o seu olhar se dirigisse ao espelho, Lucas percebeu que o faxineiro não se enxergava, nem enxergava o banheiro.

Qualquer movimentação ou barulho poderiam acordá-lo. Lucas posicionou na pia, desajeitado, as sacolas com os livros. Cogitou segurar a porta do banheiro e impedir a entrada de outras pessoas, mas isso não parecia algo muito viável.

A cabeça do faxineiro pendeu bruscamente e o queixo bateu na altura do peito; acordou, desnorteado. Ao perceber que havia um cliente ali dentro, quase deu um salto. Corrigiu a postura, agarrou o cabo da vassoura e pediu desculpas.

Lucas, por sua vez, ficou constrangido. Não sabia o que dizer, não sabia ao certo o que seria certo falar. Não, tudo bem, de boa, quis lhe dizer... E quem sou eu para dizer, para ordenar, para “permitir” que aquele senhor deva ficar “de boa”? O faxineiro abriu uma torneira, molhou a mão e a esfregou na testa áspera, enxugando-a, em seguida, com rapidez. Quanto à vassoura, ainda estava firme nas mãos. Os olhos, escancarados, vermelhos, aguardavam instruções? Por fim, tirou do bolso seu melhor sorriso. Foi neste momento que o capital intelectual recém-adquirido por Lucas, malposicionado na pia, despencou pelo chão.

– Deixa eu ajudar. – Falou o faxineiro, disposto.

– Não, não, não precisa, eu que derrubei...

Mas o faxineiro já se inclinava quando Lucas dispensou seu auxílio. Interpretando a frase como uma ordem, o homem interrompeu-se e ficou de cócoras, os dedos abertos, encarando nosso amigo. Esse, por sua vez, balançou, vencido, a cabeça – e os dois recolheram os volumes.

– Ainda bem que tá tudo limpinho, limpinho. – Dizia o faxineiro, apontando para o chão – Terminei quase agora.

Ao ver a capa de um dos livros comprados – um foguete atravessando o sistema solar – não resistiu e perguntou:

– O senhor é desses que acreditam que o homem foi pra Lua? Eu não acredito! – As mãos enfatizaram sua negativa. – Viu que acharam uns planetas? Dizem que pode ter água, gelo, pode ter uns ETs... O senhor acredita? São sete planetas. É uma coisa incrível... Às vezes acredito, às vezes não. Vivo lendo essas coisas... – A última frase soou como um pedido de desculpas.

Lucas perguntou onde ficavam os planetas. Comentou a capa do jornal, que vira minutos antes. Será que dava pra chegar lá? Aquela foi a deixa. Do bolso do avental, o faxineiro tirou a mesma reportagem e a mostrou para Lucas, apontando uma frase em especial:

– Aí diz que pra chegar lá ia levar uns 700 mil anos. Pra mim, tanto faz 700 mil ou 70... – E moveu os braços como se quisesse abraçar o próprio tempo. Os espelhos do banheiro pareciam multiplicar o seu abraço infinitamente.

Livros recolhidos, Lucas agradeceu e cogitou dar uma gorjeta. O homem voltou a se encostar no balcão. Observou novamente a reportagem sobre os planetas. A trama celeste, a gigantesca estrela vermelha, a lenta dança do sistema planetário; uma luz extraterrestre que banha águas frias, que emanam um leve brilho azulado... Ouviu um rangido na porta de entrada do banheiro – Lucas tinha ido embora. Amassou a reportagem, jogou-a no lixo, conferiu a si mesmo no espelho – penteado, farda e avental em ordem.

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