Abaixo, um trecho de Bagageiro (José Olympio), ficção de Marcelino Freire lançada hoje (29) em Teresina. Na segunda-feira (1°), o lançamento ocorre em São Paulo.
São textos entre o conto e o ensaio por meio dos quais o autor revisita não a sua bagagem literária, mas o seu "bagageiro" literário. A palavra denomina o lugar na bicicletas onde se carregam pessoas ou objetos. Ao falar em "bagageiro", Marcelino alude à miscelânea de influências que marca sua atuação como produtor e escritor.
É o primeiro livro do autor em cinco anos.
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ENSAIOS DE FICÇÃO
Clarice Lispector não era boa em título. Pedia conselho para Fernando Sabino. Uma vez ela quis chamar um novo romance de A veia no pulso. Sabino a fez desistir. Vão pensar que é aveia. Ela também, secretamente, consultou João Cabral. Ele adorou o A veia. E ainda, em carta, perguntou: quem foi o errado, Clarice, o idiota que falou isto para você?
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Este meu livro parará em uma estante de ensaios. Pensarão que eu penso.
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Quem usa o verbo pensar não pensa.
O escritor escreve para adivinhar o pensamento das pessoas.
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Pensamento das pessoas não é redundância?
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Os bichos pensam melhor quando não estão pensando.
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Clarice acabou dando ao romance o título A maçã no escuro.
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Hoje todo mundo quer ter ração.
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O primeiro ensaio deste livro é sobre poesia. Podem colocar este livro em uma estante de poesias. Se houver.
Cadê o Manoel de Barros que estava aqui?
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Se ele não está, eu também não estou.
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Liguei para Manoel de Barros para dar os parabéns pelos 50 mil reais que ele ganhou. Não havia prêmios, à época, com essa quantia toda. O livro sobre nada foi o vencedor. Eu disse, ao telefone: Manoel, escrever sobre nada e ganhar isso tudo. E ele riu. E me falou: minha poesia não gosta de dinheiro, mas o poeta gosta. Manoel era todo prosa.
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ABRO RABO
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Tenho a ideia de convidar escritores com cinquenta anos. Para uma antologia pornográfica chamada Cinquentões de cinza.
Tente escrever um conto erótico sem usar carícias, arrepios, intensamente, loucamente, falo ereto, peitos intumescidos.
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Eu já fiquei de pau duro lendo a Bíblia.
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Adoro criar epígrafes para meus livros.
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“Prefiro a solidão dos ensaios.”
I. M. Moskvín, ator russo.
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Ninguém vai procurar no Google para saber se Moskvín existiu.
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Mas que ele em algum momento falou isto, ah, ele falou.
A solidão dos ensaios teria sido um bom título para este livro.
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O público estraga os ensaios.
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Poesia ruim é aquela que fica esperando o leitor chegar.
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Aberto está o inferno é o título de um livro do saudoso contista sergipano Antônio Carlos Viana, colhido na obra de Franz Kafka.
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Quando chegamos a um conto, aberto está o inferno. Quando saímos de um conto, aberto está o inferno.
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Adeus ao Diabo.
Um conto termina quando um outro conto está começando.
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Um romanasce.
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Se você não sabe o que está escrevendo, não venha perguntar para mim.
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Só escreva com palavras que você consiga vestir. E sair com elas à rua.
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Eu não saio com um pretérito-mais-que-perfeito pendurado no pescoço.
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Arara é o único pretérito-mais-que-perfeito que eu uso. Mesmo assim porque é substantivo.
> Marcelino Freire é escritor e produtor cultural, autor de Nossos ossos