Era uma raridade ir ao médico, há cinco anos não fazia sequer um checkup. Viveu até os trinta e quatro sem precisar passar na porta de um hospital, a não ser para visitar parentes ou amigos menos afortunados. Saúde de ferro.
Tudo ia bem até uma pontada interromper a leitura. Uma dor forte, no alto e no meio do estômago, feito quando numa briga de crianças levara um soco do irmão pequeno que por haver atingido exatamente esse ponto lhe deixara alguns segundos sem fôlego e sem fala. Passou uma noite do cão, arrancada muitas vezes do sono por cólicas – daquelas que não se acanham de doer seja em que posição se fique –, rolando na cama e gemendo. Antiácido, bolsa de água quente, nada deu jeito, maldita feijoada.
Assim que amanheceu, apesar dos conselhos da colega, a quem ligou pedindo que avisasse que ia se atrasar no trabalho, para que fizesse feito ela, se tratasse com ervas – e após ouvir impaciente a receita de um chazinho infalível, que resolvia tudo e você não ficava se envenenando com essas porcarias de remédios que causavam tantos efeitos colaterais -, correu para o pronto socorro que o diabo é quem quer ter outra noite igual a essa.
Contou ao médico tudo que a incomodava, sua mãe já dizia: de padre e de médico não se guarda segredo, não se esconde nada. Abriu a boca e o coração, e o doutor nem esperou que ela falasse tudo que precisava e já a dispensou com um grito de O próximo, e uma receita na mão.
Teve de passar em meia dúzia de farmácias até algum balconista decifrar a letra do médico.
Enfim chegou no trabalho com o remédio, que já começou a tomar conforme a prescrição. As dores diminuíram mas passou a sentir um desconforto estranho na barriga. Já estava mesmo de consulta marcada com o cardiologista, em quem confiava cegamente, e assim mal não fazia empurrar dois ou três dias com a barriga - que agora estava inchada e dolorida -, chá de boldo com carqueja e muita água.
De longe vinha a voz do pai dizendo que não gostava de ir a médico, sempre acabam achando alguma coisa errada, alguma peça com defeito; as pontadas recomeçando.
Depois de outra noite em claro andando de um lado para o outro dentro de casa, foi para o cardiologista. Antes não tivesse ido, se arrependera sim. Disse ao doutor que estava com náusea, má digestão, cólicas, será que podia lhe prescrever um remédio mais forte, que o antiácido não estava fazendo efeito? Mas o médico, apesar de jovem, era dos antigos. Mediu pressão, auscultou, apertou daqui e dali e somando tudo ainda ficou entre duas possibilidades, vesícula ou estômago. Solicitou ultrassonografia e o laudo a transformou numa feliz portadora de pedras nos rins.
Lá vinha de novo a voz do pai: não te falei?
Foi encaminhada a um urologista.
A senhora bebe bastante água? Quando espirra molha as calcinhas? Quando acaba a micção ainda fica com vontade de urinar?, perguntava perguntava perguntava e mal ouvia as respostas. Vou lhe solicitar uma avaliação urodinâmica.
O diagnóstico não era conclusivo, encaminhou-a a outro especialista.
Os médicos divergiam sobre a melhor conduta, pediam sempre mais um exame, mal olhavam para os resultados, sequer mediam a pressão, quase não desviavam os olhos da ficha ou da tela do computador enquanto a atendiam. E quando ela tentava acrescentar mais algum detalhe, alguma queixa, a solicitação de um paliativo para ajudar a suportar a dor e o desconforto enquanto não se chegava a um diagnóstico definitivo, não davam a menor importância a seu incômodo. Eram apenas sintomas. Não se tratava do seu conforto, mas da sua saúde. E encerravam a questão encaminhando-a a mais um especialista, mais um exame. De um dos médicos, antes que saísse do consultório, teve vontade, só de pirraça, de levar o celular. Depois jogava na primeira lixeira que encontrasse, o tal não a olhara uma vez no rosto. Nem quando desejou boa tarde. Poderia até ter mandado alguém se consultar por ela que teria dado no mesmo.
Ela que sempre fora tranquila, tolerante e bem disposta, não foi com o melhor dos humores que continuou a peregrinação diagnóstica.
Em casa, brigava com o marido, com o filho, por qualquer coisa sem importância; no trabalho, embora de forma contida, afinal dependia do salário e do plano de saúde que a empresa lhe pagava, as farpas eram disparadas em todas as direções, da recepcionista ao chefe, às vezes apenas diante de um bom dia. Todos começaram a tratá-la de forma condescendente e temerosa, e isso a irritava ainda mais.
Passou um mês e lá estava ela em mais uma clínica e em frente a uma nova recepcionista.
Qual é seu plano de saúde?, ela começou a chorar. Mas eu já disse três vezes, teria ouvido na primeira não estivesse namorando no telefone.
E a moça olhava assustada feito quem estivesse diante de uma louca perigosa, melhor não contrariar.
Senhora, não fique nervosa. Se acalme, me dê a carteirinha do convênio, e pode sentar. Sente e aguarde, que eu chamo, com certeza, assim que a ficha estiver preenchida.
E ia conduzindo ela até a cadeira mais distante lá no fundo da sala onde quase não havia iluminação. Precisava voltar ao balcão, muito movimento, tivesse um pouco de paciência, aceitava um café um copo d’água?
Não se incomodasse ela estava bem, se precisasse chamava, podia continuar a preencher sua ficha, ela aguardava.
A espera, como sempre, foi longa. Lembrava do dito do pai. Imaginava se vivo fosse o que retrucaria. Hoje os tempos são outros. Antigamente os médicos liam melhor os pacientes: auscultavam, tomavam o pulso, pediam pra falar trinta e três, puxavam conversa, e só isso já devia ajudar a gente a ficar melhor, não? Sempre discuti com o senhor: que ignorância achar que conversa resolve nada, em tempos de laboratórios e equipamentos sofisticados. Mas por que será que agora, mesmo com tais e tantos recursos, custam assim a chegar aos finalmente, diagnosticar e medicar com acerto um distúrbio de saúde?
Dona Sílvia, consultório quatro.
Foi para a sala do médico, que a recebeu com ar meio enfadado, e após medir a pressão e auscultar começou a repetir a série de perguntas já tantas vezes ouvidas que já tinha as respostas na ponta da língua, respostas também enfadadas, a perguntas que a essa altura lhe pareciam desnecessárias, como aquelas que lhe faziam os atendentes do provedor de internet, com jeito de especialistas, mas apenas para encobrir o fato de não saberem ou não quererem dizer qual seria de fato o problema, e que pretendiam passar a impressão de que iam resolver tudo, que estavam com tudo sob controle, bastava que ela respondesse as perguntas padrão, procedimento igual para todos os assinantes, em todas as circunstâncias. Era a mesma sensação que tinha diante dos médicos. Assim como os atendentes, usavam um tom que não admitia contestação, não importava que você, como usuário experiente, já soubesse que algumas opções estavam descartadas; os médicos também não confiavam no seu conhecimento do próprio corpo, do qual era usuária há trinta e quatro anos. Muniu-se do pouco de paciência que lhe restava e resignadamente respondeu mais uma vez a cada uma das perguntas que já conhecia de cor.
Contava ela isso tudo na fila do supermercado, que não andava, e não reclamava da demora pois não queria deixar de relatar nenhum detalhe para que eu visse como ela tinha razão.
Acabara se operando de emergência de uma úlcera no duodeno, isso mesmo. Uma úlcera que perfurou e que havia driblado todos os médicos e exames.
Perguntei pelo cálculo e ela fez cara de pra você ver, quando respondeu que esse não tinha mais sido detectado.
Foi expelido naturalmente?
Quem sabe?, respondeu dando de ombros. Mas eu queria saber com quem ficara magoada de verdade porque nele ela confiava de fato e a traiu?, pois foi com o cardiologista, que ao invés de prescrever um antiácido mais forte como ela havia pedido cismou de descobrir o que causava os sintomas, também dando pouca importância ao seu sofrimento, e lhe deixando sem alternativa a não ser tomar providências, afinal não era maluca.
Minha amiga pagou a conta e ao se despedir me confidenciou, ao pé do ouvido, que da próxima vez que sentisse uma cólica ia tomar um antiácido e um analgésico, e fugir dos médicos.
Que seu pai é quem tinha razão.
Gerusa Leal é contista e poeta com prêmio da Academia Pernambucana de Letras com Versilencios
Trinta e três
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