Ineditos Mai.19 June Jordan Hana Luzia

 

June Jordan foi uma poeta afro-caribenha, ensaísta, professora e ativista, nascida em Nova York em 1936. Ganhou inúmeros prêmios literários. Com sua poesia e seus ensaios, fez enormes contribuições ao pensamento feminista e LGBTQI+ contemporâneos e é frequentemente citada como fonte por escritoras como Michelle Wallace, Adrienne Rich e Alice Walker, entre outrxs. Toni Morrison falava que Jordan foi uma das poucas autoras que conseguia unir um ativismo incansável a uma escrita impecável. A autora morreu de câncer de mama em 2002.

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POEMA SOBRE OS MEUS DIREITOS

Mesmo hoje eu preciso dar uma volta e arejar
minha cabeça em relação a esse poema que é sobre porque eu não posso
sair sem trocar de roupa de sapato
a postura do meu corpo meu gênero minha identidade minha idade
meu status como mulher sozinha à noite/
sozinha na rua/ sozinha não é o problema/
o problema é que eu não posso fazer o que eu quero
fazer com meu próprio corpo porque eu tenho o gênero
errado a idade errada a pele errada e
suponha que isso não fosse aqui na cidade mas lá na praia/
ou longe no interior e eu quisesse ir
pra esses lugares sozinha pensando em Deus/ ou pensando
sobre filhos ou pensando sobre o mundo/ tudo isso
revelado pelas estrelas e pelo silêncio:
eu não poderia ir e eu não poderia pensar e eu não poderia
ficar lá
sozinha
como eu precisava estar
sozinha porque eu não posso fazer o que eu quero com meu próprio
corpo e
quem neste caralho arrumou as coisas
desta forma?
e na França eles dizem que se o cara penetrar
mas não ejacular então ele não me estuprou
mesmo se eu der uma facada nele e gritar
e implorar pro filho da puta e mesmo depois que eu esmagar
a cabeça dele com um martelo e mesmo se depois disso ele
e seus bróder me estuprarem mesmo depois disso
dizem que eu consenti e não houve
estupro porque finalmente você entende finalmente
ele me foderam porque eu estava errada eu estava
errada de novo por estar ali/ errada
por ser quem eu sou
o que é exatamente como na África do Sul
penetrando na Namíbia penetrando em
Angola e isso significa quero dizer... como você sabe se
Pretória ejacula como vai ser a evidência a
prova da monstruosa e ditatorial ejaculação na Terra Preta?
e se
depois da Namíbia e depois de Angola e depois do Zimbábue
e se depois de todos meus antepassados e antepassadas resistirem até mesmo
à autoimolação das vilas e se mesmo assim
depois disso perdermos o que os garotões vão dizer? eles vão
alegar que consenti?:
Você tá me entendendo?: nós somos as pessoas erradas
com a pele errada no continente errado e por que
caralhos as pessoas estão sendo razoáveis sobre isso?
e de acordo com o Times essa semana
lá em 1966 o Serviço Secreto Americano decidiu que eles tinham um problema
e o problema era um homem chamado Nkrumah então eles
mataram ele e antes dele teve Patrice Lumumba
e antes dele teve meu pai no campus
da universidade de elite que eu fazia e meu pai com medo
de entrar no refeitório porque ele disse que ele
estava errado a idade errada a pele errada a identidade
de gênero errada e ele estava pagando minhas mensalidades e
antes disso
era meu pai quem dizia que eu estava errada que
eu devia ter nascido menino porque ele queria um/ um
menino e que eu devia ter a pele mais clara
e que eu devia ter um cabelo mais liso e que
eu não devia ser tão paqueradora e em vez disso eu devia
ser apenas/ um menino e antes disso
era minha mãe sugerindo cirurgia plástica pro
meu nariz e aparelho pros meus dentes e me dizendo
pra deixar esses livros pra lá para deixá-los pra lá em outras
palavras
Eu estou muito ciente dos problemas do Serviço Secreto Americano
e dos problemas da África do Sul e dos problemas
das empresas petroleiras e os problemas da América
branca em geral e os problemas dos professores
e dos religiosos e da polícia e dos assistentes
sociais e em particular de Mamãe e de Papai/ eu estou muito
ciente dos problemas porque esses problemas
tornam-se
eu
Eu sou a história do estupro
Eu sou a história da rejeição de quem eu sou
Eu sou a história do aterrorizante encarceramento da
minha pessoa
Eu sou a história de ameaças espancamentos e infinitos
exércitos que são contra qualquer coisa que eu queira fazer com minha mente
e meu corpo e minha alma e
quer isso seja sobre andar de noite
ou sobre o amor que eu sinto ou
sobre a santidade da minha vagina ou
a santidade das minhas fronteiras nacionais
ou a santidade dos meus líderes ou a santidade
de cada um dos meus desejos
que eu conheço por causa do meu particular idiossincrático
inquestionavelmente solteiro e extraordinário coração
Eu fui estuprada
por-
que eu tenho tido o gênero errado a idade errada
a pele errada o nariz errado o cabelo errado a
necessidade errada o sonho errado a geografia errada
a roupa errada eu
Eu tenho sido o que estupro significa
Eu tenho sido o problema que todo mundo tenta
eliminar por penetração
forçada com ou sem evidência de secreção mas/
que esse poema seja inconfundível
ele não é consentimento – eu não dou consentimento
a minha mãe a meu pai aos meus professores
à polícia à África do Sul à periferia
ao bairro rico à empresa aérea aos vagabundos
com pau-duro nas esquinas aos tarados espiando de dentro dos
carros
Eu não estou errada: Errada não é meu nome
Meu nome é meu meu meu
e eu não posso te dizer quem fez as coisas assim nessa porra
mas eu posso te dizer que de agora em diante minha resistência
minha simples, diurna e noturna autodeterminação
pode muito bem custar a sua vida.

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