O centro da cidade estava agitado. Pessoas passavam sem parar. Olhava aquela gente toda como se fossem glóbulos vermelhos. E na verdade eram. Fui andando pela rua, olhando as vitrines das lojas, vários anúncios de emprego. Vi a mulher entrando no prédio abandonado.
O meu pai havia enfrentado sérios problemas de saúde. Tinha lido num desses livros de autoajuda que as coisas aconteciam por que o destino queria que acontecessem, o engraçado era que esses autores quase sempre apareciam envolvidos em escândalos como se fossem personagens deles mesmos.
O velho começou a sorrir quando a médica entrou no quarto e disse que ele só iria ter mais algumas semanas de vida. Ele achava graça em tudo, até na própria morte. Era dado a essas brincadeiras. Nunca mais esquecerei seu sorriso.
Atravessei a rua para pegar o ônibus, tropecei, mas consegui chegar a tempo. Tudo parecia mais tranquilo. Cheguei em casa sob forte chuva, na entrada do edifício muita água escorria por baixo dos carros. Acenei para o vizinho que me olhou com uma cara estranha. Mal comecei subir a escada já ouvi os gritos da síndica cobrando a taxa do condomínio.
Olhei pela janela e vi um táxi parado em frente ao edifício. Tudo normal com o carro, a não ser por um pequeno amassado na parte de trás. Com esse trânsito louco isso era natural.
Fui dormir cedo. Não estava interessado nas bobagens do Jornal Nacional.
Acordei com batidas na porta. É da polícia, falaram lá de fora. Levantei atordoado. Em pouco tempo já estava sendo levado para a viatura.
Trinta e cinco anos de cadeia. Foi esse o veredito do juiz.
Havia saído apenas uma vez com a prostituta e não tinha sido uma noite das melhores.
O taxista falou no depoimento que eu sai correndo do prédio e esbarrei no carro.Tudo mentira do safado.
Alguém estava pagando para ele fazer toda a encenação. Acho que pagaram muito mais para o juiz, a montagem era tão real, eu mesmo estava quase acreditando.
A câmera de vigilância me mostrava atravessando a rua, entrando no prédio abandonado, e minutos depois correndo para fora dele. Onde antes havia entrado aquela mulher. Tecnologias a serviço do mal. Bem que o Padre havia falado.
As músicas que ouvia quando era criança ficaram gravadas na minha memória. As melodias que às vezes me faziam chorar, canções que falavam quase sempre de amores acabados, paixões passageiras. Uma época boa. Minha mãe com um cigarro no canto da boca. Meu pai dormindo. Um cenário que irei lembrar sempre.
Terei que ficar com essas lembranças agora. Ou melhor, juntar com outras que não sei se são minhas ou fruto de algo que colocaram na minha cabeça.
Dentro da cela lembrei do corpo. Estava coberto por um lençol. Olhei pela janela. Sorri. Um sorriso sem culpa. Vagabundo. Loucos não têm culpa.
Ney Anderson é estudante de jornalismo e publica regularmente em revistas e antologias
Janela secreta
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