Este texto é uma reprodução parcial do capítulo “A representação galhofeira”, presente em No calor da hora: a Guerra de Canudos nos jornais (4ª expedição), de Walnice Nogueira Galvão. No calor da hora é o 5º livro do selo Suplemento Pernambuco de literatura e será lançado na Flip 2019, que ocorre de 10 a 14 de julho. Você pode comprar o livro clicando aqui.
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Por sinistro que pareça, a Guerra de Canudos foi motivo para a produção de farta cópia de material jornalístico no estilo da galhofa. Que foi, imediatamente, pretexto para sátira política, é evidente. Seja como menção de passagem, seja como tema central de certos textos, a representação satírica da guerra — de episódios ou personagens dela, ou ainda de incidentes a ela ligados indiretamente —, além de abundante, é extremamente reveladora de algumas tendências de manipulação da opinião.
Não nos esqueçamos de que então o país vivia com intensidade o processo da consolidação nacional. Afora todo o esforço unificador do Império, ainda há pouco a novíssima República enfrentara, e reprimira a ferro e fogo, pelo menos duas grandes tentativas de rebelião. Foram elas a Revolução Federalista no Rio Grande do Sul que, começando em 1893, durara pouco mais de dois anos, tendo-se iniciado durante o governo Floriano, mas estendendo-se até o governo Prudente de Morais; e a Revolta da Armada, sob as ordens de Custódio de Melo, também a partir de 1893.
Experiências recentes mostravam que a nação atravessava uma época agitada, em que se repetiam os atentados políticos, eram frequentes os ensaios rebeldes, abortados ou não, de grupos variados, ao que se deve acrescentar o fantasma assustador da possibilidade de uma restauração monárquica. A derrota, surpreendente e escandalosa, da Expedição Moreira César, que nada mais era — embora o fosse em ponto maior — do que uma das muitas que praticamente a cada dia partiam para todos os cantos do país a fim de extinguir qualquer suposta ameaça à ordem constituída, foi motivo para que o fantasma viesse à tona e a insegurança do jovem regime da ainda mal unificada nação se manifestasse. Dentre as muitas missas e cerimônias religiosas que aparecem anunciadas nos jornais pelas almas dos soldados mortos nessa expedição, seleciono esta que mostra bem tal fantasma, publicada na página de anúncios da edição de 3 de abril de 1897 da Gazeta de Notícias, do Rio:
O partido republicano autonomista manda celebrar, às 10 horas de hoje, na matriz desta cidade, uma missa com Libera-me, pelo repouso eterno dos heroicos defensores da República, vítimas dos assalariados monarquistas; para esse ato convida todos os que sabem prezar o amor da Pátria.
A assimilação é imediatamente feita, do mesmo modo, entre os revoltosos maragatos [nota 1] do Rio Grande do Sul, há pouco pacificado, e os novos inimigos. A 28 de julho de 1897, O País, do Rio, publica esta quadrinha, assinada por Gavroche, que põe em circulação uma palavra que terá longa vida e grande êxito:
MARAGUNÇO
Como são termos sinônimos
O maragato e o jagunço,
Reúnam-se os dois vocábulos
E diga-se maragunço.
Ainda no mesmo mês, começam a surgir na Folha da Tarde, do Rio, uns versinhos políticos (os primeiros saem na edição do dia 30) assinados por Maragunço, nos quais o substantivo comum acima proposto passa já a ser pseudônimo. E data de 1897 o título de um novo jornal O Maragunço, que se encontra nas listas levantadas por Gondim da Fonseca. [nota 2]
O recrutamento forçado para a nova e grande expedição que se prepara torna-se notícia corrente, na medida dos abusos que pratica contra a liberdade individual; o tom satírico que aparece na matéria publicada pelo República, do Rio, na edição de 18 de julho de 1897, já é dado por seu título construído em paradoxo: Presos para voluntários. Versos zombeteiros surgem, como estes, que vêm à luz na Folha da Tarde, do Rio, a 17 de julho de 1897, na primeira página, assinados por Arco-Íris:
Eu ando desconfiado,
Olhar baixo, lábios mudos,
Com medo de ser pegado
Para o açougue de Canudos!
[...]
O melhor texto satírico que encontrei sobre as condições em que se fazia o recrutamento para a quarta expedição contra Canudos é uma pequena peça, publicada integralmente no rodapé da primeira página do jornal A Bahia, de Salvador, datado de 12 de setembro de 1897. Nessa peça ocorre uma complicação notável no vocábulo maragunço, previamente referido, que agora aparece como nome de uma personagem, Maragabirigunço, entrando na composição da palavra mais um dissidente político, o biriba [nota 3], afora os anteriores maragato e jagunço. Maragabirigunço, em sua única intervenção no drama, levanta-se como uma espécie de espantalho que, longe de ser um inconformista, é, ao contrário, o representante do regime vigente que esmaga toda oposição. Ele é o bicho-papão que devora indiferentemente maragatos, biribas, jagunços e desprotegidos da sorte, através do recrutamento forçado.
A alta qualidade dramática do texto autoriza algum exagero na opinião de que ele pode ser filiado a uma linha evolutiva da dramaturgia brasileira, aquela à qual pertencem Qorpo-Santo, Oswald de Andrade e em parte Plínio Marcos. O impacto da irreverência e da verve, a movimentação cênica paroxística, os quiproquós e jogos verbais, as dramatis personae falando em nome de grupos sociais, dão a um tempo a filiação da peça e sua encenável modernidade.
A pecinha se passa na Baía de Guanabara, onde encalha a barca do trajeto Rio — Niterói e um rebocador se esforça por desencalhá-la; nesse entretempo, os passageiros dão seus palpites sobre o incidente. Presentes no cenário, os restos do navio Sete de Setembro, lembrança da Revolta da Armada, que tivera seus principais episódios naquela mesma baía. A personagem central é o Popular, que apanha de todos os lados e termina recrutado à força para lutar em Canudos; outra, que com ele dialoga, é o Marinheiro, admirador de Custódio de Melo. Por causa deste último, os dois se empenham numa discussão, que faz o Marinheiro dar ao Popular o epíteto pejorativo de perrefe (alusão ao Partido Republicano Federal, então com maioria no Congresso) e receber de volta o de biriba. Nas cenas coletivas, os passageiros da barca se expressam a respeito do encalhe e desencalhe com referências aos assuntos do momento — a dívida flutuante, os cortes orçamentários, o câmbio sem estabilidade, a política de avanços e recuos do Presidente Prudente de Morais; são todos discordes, só concordam finalmente em depor o comandante da barca e o mestre-arrais do rebocador. Apenas o Popular está, desde o começo, preocupado com a Guerra de Canudos e com medo de ser recrutado; e, de fato, o Maragabirigunço agarra-o e ele para lá vai, sempre protestando.
O texto é o que segue:
CANUDOS
I
(Cais do Rio de Janeiro. À direita, a ponte das barcas de Niterói.
Ao fundo veem-se as ruínas do couraçado Sete de Setembro,
encalhado durante a revolta)
POPULAR
— É um zunzum que ensurdece,
Um vaivém que nos põe mudos,
Desde que o dia amanhece
Até que acaba: — Canudos!
Batalhões, balas e peças,
Lanças, obuzes, escudos,
Moções, discursos, promessas,
Para arrasarem Canudos.
O câmbio todo se agacha;
Sobe o preço: dois testudos!
Logo uma casa se racha
Como as casas de Canudos.
Correspondências que abalam,
Repórteres mais linguarudos
Que a tal ave de que falam
que falava de Canudos [nota 4].
(Passando os olhos por um jornal que compra a um garoto)
— Se qualquer jornal esmiunço
Em tipos pantafaçudos,
Só isto: — jegues [nota 5], jagunços,
Canets, caatingas, Canudos…
(Ouvindo o apito na barca de Niterói)
— Que ideia! Numa me encasco,
Vou pra terra dos Cascudos…
Se mos derem também casco,
Como se casca em Canudos.
(Entrando na barca)
— Mas… ai! que vejo! Quem arca
Com estes tempos bicudos?
Até nos bancos da barca…
UM PASSAGEIRO
— São salva-vidas…
POPULAR
— Canudos!
O PASSAGEIRO
— É para se houver naufrágio
Sem perder tempo em estudos
Todos…
POPULAR
— Todos?! (à parte) — Que presságio!
O PASSAGEIRO
— Se agarrarem…
POPULAR (motejando)
— Nos Canudos?…
[...]
NOTAS
[nota 1]: Maragato era o rebelde gaúcho, partidário da Revolução Federalista naquele estado.
[nota 2]: Fonseca, Gondim da. Biografia do jornalismo carioca (1808-1908). Rio de Janeiro: Quaresma Editora, 1941, p. 389.
[nota 3]: Apelido popular do Presidente Prudente de Morais, por extensão aplicado aos seus adeptos. Cabe lembrar que o grupo de apoio ao Presidente estava então em minoria, sendo os jacobinos ou republicanos exaltados a maioria; por isso, no momento, o biriba estava por baixo. Data também de 1897 um jornal com esse nome; cf. Fonseca, 1941, p. 388.
[nota 4]: Alusão a uma reportagem de Manuel Benício para o Jornal do Comércio, em que se conta que, no meio do tiroteio em Canudos, ouvia-se um papagaio que gritava: “Me salve que eu não sou jagunço!” A informação fez sucesso e foi muito glosada.
[nota 5]: No jornal: jegos.