O fragmento abaixo é a abertura do livro Y por mirarlo todo, nada veía (E por olhar tudo, nada via), da escritora mexicana Margo Glantz. Trata-se de uma narrativa fragmentária, política e conceitual, em que a autora realiza uma colagem a partir de um procedimento tão original quanto simples: juntar imagens, dados e reflexões, de tipos muito diversos, como quem “passeia” pelas redes sociais, tentando compreender nosso mundo atual no meio do caos desierarquizado de informações. O título é um verso do poema Primero sueño, de Sor Juana Inés de la Cruz. Glantz explica em entrevista: “Por isso o livro se intitula Y por mirarlo todo, nada veía: Sor Juana sonha que contempla o universo e há tantas coisas que se amontoam diante de seu olhar, que ela não sabe discernir; ela muda de método, para ver se consegue entender algo, mas acaba não entendendo nada, porque acorda”. No Brasil, a obra está prevista para ser lançada em maio deste ano pela Relicário Edições.
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Ao ler as notícias como decidir o que é mais importante? Que no dia 31 de janeiro de 2018 aparecesse no céu uma enorme Lua azul, ensanguentada; que ao conhecer Felice, sua futura noiva, Kafka escrevesse em seu Diário: Um rosto vazio que levava abertamente seu vazio; que o axolote mexicano seja o único animal capaz de regenerar extremidades, órgãos e tecido; que a Cidade do Cabo, na África do Sul, seja a primeira cidade no mundo que ficará totalmente sem água; que uns cientistas tenham conseguido criar orelhas para cinco crianças que sofriam de uma malformação hereditária; que Charlie Sheen seja portador do HIV, que as ruas de Coyoacán tenham as luzes acesas ou apagadas, que se faça justiça em Ayotzinapa, que a dívida pública mexicana seja incontrolável, que haja reféns em Mali, que se legalize ou não a maconha, que o terrorismo se torne incontrolável, que Trump ou Clinton ou Scioli ou Macri tenham ganhado, que a palavra impeachment não tenha verdadeira tradução em espanhol, que continue existindo lavagem de dinheiro e venda de armas, que sejam proibidos os narcocorridos, que seja decretada a lei de transparência (duvidosa), que um tigre ande solto pelas ruas de Acapulco, que Lenin tenha entrado em São Petersburgo às vésperas da Revolução Russa, que já se possa comer salmão transgênico, que seja publicado um livro chamado Fire and fury que revela os segredos da Casa Branca em tempos de Trump; que há três anos neve no Saara; que o Fenômeno do Niño revele mudanças climáticas dramáticas, que as malas inteligentes já sejam uma realidade, que haja estados de exceção, que policiais dos Estados Unidos tenham matado mais de mil pessoas indefesas durante 2015, que o plástico, assim como as redes sociais, tenha sido benéfico e agora contamine; que Marilyn Monroe tenha luxado o tornozelo in illo tempore, que sejam decretados estados de exceção, que seja declarada uma nova e terceira ou quarta guerra mundial; que David Bowie, Fidel Castro, Prince tenham morrido; que Felicitas Schirow, uma mulher alemã de sessenta anos, voltará a exercer a prostituição, depois de quinze anos de carreira política e vários negócios fracassados; que Virginia Woolf escrevesse: Queridíssimo Leonard: Estou certa de que estou ficando louca de novo. 24 de janeiro de 1941; que tenham apanhado de novo Chapo Guzmán ou que o pequeno Calígula da Coreia do Norte exploda uma bomba de hidrogênio; que uma baleia jubarte seja assassinada no refúgio da vaquita marinha? O que será mais importante: ir ao trabalho de bicicleta ou saber que no metrô – tube – de Londres irrompeu uma greve que durou vinte e quatro horas; que o Papa tivesse antecipado no Vaticano parte da mensagem a favor dos migrantes mexicanos, que uma mulher na França tenha sido mordida no nariz quando quis beijar uma cobra píton, que Sean Penn e Kate del Castillo possam ser considerados culpados por terem entrevistado Chapo Guzmán que foi recapturado; que um deputado do PRI declare que os filhos de mães solteiras se tornam delinquentes; que um estudo do Sol sugira que, utilizando ondas sonoras na camada na qual se encontra a atividade magnética, se adverte que ela se tornou mais fina; que duas jovens de vinte e quatro e vinte e nove anos tenham sido violadas e assassinadas em Xochimilco e Milpa Alta, que encontrem mais duas jovens assassinadas e achem outras em Guachochi, Chihuahua; que o esqueleto humano consista de 206 ossos; que se queira mudar o final da ópera Carmen de Bizet porque não é politicamente correto que se assassine uma mulher; que Calderón de la Barca dissesse que a vida é sonho e que os sonhos sonhos são, que Sor Juana Inés de la Cruz tivesse escrito Primero Sueño, que Francisco de Quevedo Lucientes, os Sonhos, que Sigmund Freud tenha se ocupado de fazer um estudo psicanalítico sobre os sonhos, que seu primeiro nome não seja muito judeu ou que se sonhe todas as noites e depois se esqueça completamente o que se sonhou; que a linguagem politicamente correta seja hipócrita ou que o buraco na camada de ozônio alcance um recorde tamanho; que alguns terrorismos tenham sido financiados por governantes do mundo ocidental e agora eles finjam que se arrependem; que as figuras retóricas sejam mecanismos que alteram o uso normal da linguagem, com o fim de obter um efeito estilístico; que se suscitasse uma polêmica entre Marrocos e México por um rabo de dinossauro leiloado a favor das vítimas do terremoto do dia 19 de setembro de 2017; que haja aqueles que têm a válvula aórtica atrofiada; que pareça uma tragédia que Brad Pitt e Angelina Jolie se divorciassem ou que Jennifer Lawrence humilhasse um jornalista estrangeiro na cerimônia dos Golden Globes em 2015 ou que González Iñárritu e Leonardo DiCaprio tenham ganhado respectivos globos de ouro pelo filme The Revenant; que na década de cinquenta estivesse em pleno apogeu o teatro do absurdo, sobretudo em Paris; que se criem dinastias de órgãos tubulares ou que os adoradores de David Bowie confirmem que, como ele dizia, todos temos diferentes personalidades e que ponham velas e flores diante de um mural em Brixton, onde ele nasceu; que um comando sequestre vinte pessoas e mate dois durante um casamento em Arcelia, Guerrero; que Madonna diga a Sean Penn, Ainda te amo, ou se é verdade o que se conta, que ele maltratava suas companheiras ou que um acossador se travestisse para poder tocar as mulheres no metrô da Cidade do México; que Bob Dylan tenha ganhado o Nobel e não fosse a Estocolmo para recebê-lo, mas que no entanto o tenha aceitado, que Patti Smith cantasse uma de suas canções em Estocolmo e se interrompesse na metade porque ficou nervosa e que ela fosse a musa do grande fotógrafo Mapplethorpe ou que Leonard Cohen tenha morrido e muitos pensem que era ele quem deveria ter ganhado o Nobel ou que vexações a centenas de alemãs por grupos de supostos muçulmanos em Colônia seja uma conspiração para suspender o fluxo dos refugiados; que sejam necessários 140 mil insetos para obter um quilo de grana cochonilha; que se tenha que fortalecer o assoalho pélvico; que a grande fotógrafa Lee Miller tivesse que deixar os Estados Unidos por uma foto que tirou de Edward Steichen, aparecida na Vogue por volta de 1930, onde ela anunciava pela primeira vez absorventes Kotex; que Händel tenha ficado em estado de cegueira, enquanto compunha o oratório Jephtha, ou que se pense que o estado da Terra há trezentos milhões de anos fosse lindo, porque ainda não havia homens e porque as flores apareceram ao mesmo tempo que os dinossauros, ou que o estado do bisonte que faleceu no zoológico de Chapultepec fosse mortal, ou melhor, qual era o estado desse zoológico onde também morreram o último gorila macho, três primatas e uma elefanta no lapso de um ano; que as figuras retóricas ajudem a captar a atenção, surpreendam por sua originalidade e possuam um grande poder sugestivo e persuasivo; que há quem pense que seria melhor se a cidade que alguma vez foi o Distrito Federal continuasse sendo o que era, ao invés de mais um estado da República; que a Odebrecht seja uma Organização global, de origem brasileira, que operou nos setores de Engenharia, Infraestrutura, Indústria, Energia, Transportes e Meio Ambiente e corrompeu, mediante subornos, numerosos funcionários e políticos de vários países da América Latina, incluindo o próprio Brasil; que muita gente esteja em estado de velhice prematura, que o estado dos ombros dos humanos possa ser desigual ou que se possa reganhar a flexibilidade praticando ioga; que Shostakóvich escrevesse sua Quinta sinfonia no meio do terror e da ameaça estalinista; que seja terrível o estado de olhar só para a frente e nunca para os lados; que o carnavalesco e o kafkiano tenham se tornado lugares-comuns ou que o momento mais viral de uma cerimônia dos Globos de Ouro fosse DiCaprio olhando para Lady Gaga ou que a palavra viral tenha se popularizado nesse grau; que David Bowie tenha sido um ícone da moda durante quatro décadas e que ele tenha dado à sua última música premonitória o nome de Lazarus; que o concreto, material usado para construir edifícios, seja chamado também de hormigón, que é um material de má qualidade, muito usado nos chamados povoados mágicos do México; que os mosquitos sejam oitenta vezes mais mortais do que os leões, os crocodilos e os tubarões juntos, e que 750 mil pessoas morram por ano por culpa deles e pela mudança climática; que a ONU e a Unesco estejam prestes a desaparecer; que os muçulmanos e os mexicanos estejam se transformando nos judeus de hoje ou que a exposição chamada Duelo de Francisco Toledo confirme sua enorme criatividade; que a Coreia do Sul e o Japão cheguem a um acordo histórico sobre as mulheres exploradas sexualmente na Segunda Guerra Mundial; que três japoneses revelem que preferem ter como companheiras de vida suas bonecas robôs, feitas de silicone e providas de vaginas intercambiáveis; que o assoalho pélvico seja a parte da nossa musculatura que mais se aproxima dos nossos esfíncteres; que Trump ganhasse com mentiras ou que Hillary Clinton perdesse a presidência dos Estados Unidos e os efeitos possíveis que esse fato teria para o mundo e para o México ou que Sacha Baron Cohen e Isla Fisher doassem um milhão de dólares para os refugiados sírios; que a China seja um país que envelhece rapidamente; que haja uma mulher de noventa e nove anos que tem mais flexibilidade do que uma jovem de vinte e três, devido a fazer ioga sua vida toda e que o fato de que Twitter colapse se torne uma catástrofe ou que o racismo e a intolerância aumentem a graus intoleráveis ou que alguém tenha pouca mobilidade no braço esquerdo porque quebrou o ombro; que o dólar no México tenha alcançado níveis inauditos diante do peso e comece a oscilar de novo; que a dieta genética ajude a explicar a forma como os alimentos afetam os seres humanos; que possamos verificar o insuportável peso do ser.