Este é um trecho do ensaio Imagens de crianças: Modos de olhar, de Renan Ji — professor, doutor em Literatura Comparada e crítico de teatro —, que a Zazie Edições publicará em breve no seu site para leitura gratuita.
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Em pleno século XIX, Lewis Carroll tornou-se célebre pela narrativa das aventuras de Alice, revigorando o universo imaginativo ligado à infância. Como fotógrafo amador, explorando os rudimentos do novíssimo advento técnico da fotografia, Carroll também logrou uma revisão do olhar sobre a infância, mostrando como deveríamos atentar para essa fase em si mesma, e não como uma preparação do adulto. Porém, em seu caso, esse fascínio pelas crianças não poderá ser lido apenas como uma predisposição lúdica e inofensiva.
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O artista procurou manter completamente separada a vida privada de professor de Matemática e de fotógrafo (Charles Dodgson), da personalidade pública de escritor de livros infantis (Lewis Carroll). E no entanto, a extensa produção de fotos de crianças e jovens do sexo feminino, realizadas entre 1856 e 1880, acabou provocando um forte cruzamento entre o público e o privado, expondo sua admiração pessoal e no mínimo polêmica pela infância feminina, exigindo muitas vezes um posicionamento acerca da questão […]
Esquivando-se ou não dos debates públicos em que seu nome se viu enredado, é certo que Charles Dodgson nos legou centenas de imagens que, naquela época, de fato representaram um novo modo de ver a infância. O autor dos livros da inesquecível Alice buscava uma representação das meninas livre do decoro vitoriano, captando sua singularidade enquanto crianças, e não pré-damas da sociedade. […] Na tentativa de retratar o devir de crianças, como a famosa Alice Liddell, a suposta musa inspiradora de suas obras literárias mais famosas, as imagens de Carroll possuíam assimetrias e gestos descontraídos, refletindo não só o próprio processo artesanal e informal das sessões de foto, como também a intenção de captar a naturalidade, a inocência e a pureza das meninas.
O testemunho da infância feminina que transparecia nas fotos de Dodgson era encarado aqui e ali com desconfiança não tanto pelo conteúdo das imagens, mas pela fixação temática do fotógrafo e pela demarcação etária e de gênero — um homem adulto fotografando insistentemente meninas menores de idade. Essa suspeição ganhará reforço com a descoberta, na década de 1970, de quatro nus feitos pelo autor de Alice, que supostamente deixara instruções para que fossem queimados após sua morte. Famoso pelos inúmeros retratos que teria feito das irmãs Liddell (a famosa Alice seria uma delas, e sua preferida) e de outras meninas, Dodgson a princípio não teria despertado nenhum estranhamento da opinião pública diante de sua atividade amadora de fotógrafo […]. Bastará, no entanto, um tal achado para que ocorra uma guinada na recepção da imagem fotográfica. Esta continuaria marcada pelo estatuto documental, mas seu suposto testemunho traria novos indícios, novas formas de ler aquilo que antes parecia ser somente a foto de uma criança. […]
Anne Higonnet, [nota 1] em obra que resgata as imagens da criança na história da fotografia, remontando ao caso de Charles Dodgson, confirma que a nudez de algumas meninas afetou a recepção das imagens de todas as outras por ele retratadas. […] Higonnet analisa um dos retratos mais famosos de Charles Dodgson: The beggar maid, de 1858. A autora percebe a pequena musa Alice Liddell em andrajos que revelam os pequenos ombros, formando uma composição com o seu olhar ligeiramente arrogante. O contraste entre a roupa em farrapos e a saúde da criança burguesa de origem privilegiada torna o tema da pequena pedinte quase um mero pretexto para a exposição do corpo da menina. Identificando ambiguidades nessa foto específica, Higonnet ressalta, contudo, que os contemporâneos de Lewis Carroll sequer estranharam a imagem, celebrando-a por sua beleza e primor na captação da inocência, em uma das fotos mais famosas da história das representações infantis. O problema para a autora começa no exato momento em que a imagem passa a ser campo de especulações, adentrando no terreno escorregadio da dubiedade e das possíveis intencionalidades por trás da foto. The beggar maid não é um retrato ofensivo ou degradante, porém a sensibilidade para determinados detalhes da imagem nos leva a indagar sobre as escolhas do fotógrafo […]
Higonnet prima por detectar o cerne da questão: entre a nudez de implicações pornográficas e o desejo de captar a graça do corpo infantil, ela acredita que a real fonte do problema está na ambiguidade. A categoria do ambíguo reúne num mesmo espectro diversas possibilidades de recepção. Nesse sentido, a argumentação da autora compreende as leituras consensuais — da inevitável periculosidade da nudez infantil à inocência do corpo vestido e fantasiado — mas vai além delas, destacando que o verdadeiro problema surge quando deparamos com imagens de inequívoca e deslizante ambiguidade. […]
Daí a necessidade de um reajuste do olhar que nos obrigue a um confronto com nossas próprias ideias e hábitos em relação à representação da criança.
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A dificuldade de acostumarmos nosso olhar à infâncias outras, desviadas dos padrões socialmente convencionados como aceitáveis, é comprovada por dois escândalos midiáticos recentes ocorridos no contexto brasileiro. Em 2012, Iran de Jesus Giusti criou, na plataforma conhecida como Tumblr, o blogue Criança viada, no qual postava fotos antigas de si e de pessoas próximas em poses e trejeitos considerados afeminados. A iniciativa, que começara como uma brincadeira interna entre amigos, ganhou maiores proporções e se tornou um fenômeno das redes sociais. Pessoas de diversos grupos, dos héteros aos LGBTQ, passaram a contribuir com fotos pessoais ao blogue de Giusti, transformando a expressão “criança viada” num termo voltado para todos os meninos e meninas que fugiriam das normas de gênero, independentemente de sua vida afetiva como adultos. Tornou-se, logo, um qualificativo que enalteceria a liberdade de expressão das crianças, cuja espontaneidade ainda não teria sido reprimida pelo conservadorismo da vida social.
Iran Giusti encerrou as atividades do blogue em 2014, após múltiplas repercussões do Criança viada — desde a criação de sites falsos homônimos e acusações de pedofilia, até o reconhecimento de acadêmicos e especialistas acerca da relevância cultural da iniciativa. Ainda em 2013, como resultado da fama alcançada pelo blogue, a artista Bia Leite aproveitou as legendas criadas para as fotos e criou uma série de pinturas que dialogavam com as imagens, conseguindo a autorização de Giusti para o prosseguimento do projeto artístico e sua respectiva exibição.
A reviravolta ocorreria em 2017: selecionado para participar da exposição Queermuseu: Cartografias da diferença na arte brasileira, apresentada no Santander Cultural de Porto Alegre, o trabalho de Bia Leite levaria o Criança viada novamente aos principais tópicos de discussão das redes sociais. Com curadoria de Gaudêncio Fidelis, a mostra como um todo despertou a ira de grupos conservadores, que rapidamente se posicionaram com críticas, campanhas de difamação e promoção de factoides, tendo como um dos alvos principais a obra de Bia Leite. Em meio à controvérsia, Giusti decidiu retomar as atividades do blogue em protesto contra os pedidos de fechamento da exposição. Logo em seguida, o perfil de Giusti na plataforma Tumblr foi cancelado, com a justificativa de que a página propagava conteúdo considerado impróprio envolvendo menores de idade. A exposição também não teve melhor destino […].
A exposição Queermuseu, cuja pauta da diversidade de gênero e de sexualidade fora pensada numa perspectiva de respeito às diferenças, acabaria, na visão de seus detratores, pondo em risco valores tradicionais como família, moral e ordem social. No caso específico do termo “criança viada” e de seu inegável peso cultural, a questão adentraria o vespeiro da pedofilia, na medida em que, supostamente, pressupor que uma criança é “viada” é sobrepô-la a uma sexualidade que ela não possui.
As contradições desse raciocínio são claras. O próprio Iran Giusti, em testemunho sobre os acontecimentos relacionados ao Criança viada, alerta que o costume social de perguntar a um menino se tem namoradinhas nunca passaria por pedofilia,[nota 2] a partir do que se pode inferir que muitas práticas sociais introjetam noções de gênero e sexualidade nas crianças. O problema, na verdade, seria o tipo de gênero e sexualidade que se quer propagar. Nesse sentido, o incômodo se dá não tanto porque se atribui uma sexualidade à criança, mas sim que se atribua uma sexualidade queer à mesma.
Relevando por ora o importante debate público sobre gênero e sexualidade, gostaria de ressaltar que um dos maiores focos de incômodo em relação à exposição Queermuseu remete a imagens de crianças que demovem nossas expectativas acerca da infância. Nesse contexto, a pedofilia surge menos como fator real de discussão sobre a infância, e mais como ferramenta de retórica sensacionalista para acirrar ânimos em disputas culturais. Tanto que, em meio ao fogo cruzado, poucos de fato voltaram seu olhar e buscaram ajustar suas expectativas para os sujeitos que aparentemente todos buscavam defender: as crianças, nas fotos e fora delas. “Viadas” ou não, elas permaneceram como pano de fundo nos discursos de defesa da família e dos bons costumes, mas não receberam a devida atenção dos defensores do momento.
Antes mesmo de abordar questões acerca da sexualidade, é indispensável ser mais preciso no que tange ao processo de leitura de uma imagem. As fotos de “crianças viadas” remetem a uma infância de outrora, guardada em álbuns familiares e subitamente resgatadas por um modo de leitura contemporâneo à ascensão dos movimentos e das estéticas LGBTQ na cultura. Como as imagens de Alice Liddell por Lewis Caroll, tais retratos íntimos talvez não tenham provocado reação nos meios familiares em que circulavam, porém algo muda quando o olhar do espectador é atravessado por outros vetores. […]
O interessante nesse caso é que, no blogue de Iran Giusti, as fotos de crianças se tornaram fotos de crianças viadas. Das muitas que podemos observar em sites e redes sociais, vejo que todas elas se inserem em ritos e cenas típicos de uma infância comum: festas de aniversário, brincadeiras entre irmãos, a pose diante dos pais. […] A infância que surge nessas fotos é “viada” não somente por uma sexualidade que será (ou não) confirmada anos mais tarde, como também por ser um todo compósito, traduzido num corpo infantil afetado por imagens de apresentadoras loiras de botas, desenhos, brinquedos, músicas de duplo sentido e coreografias peculiares, típicos de um momento cultural e de uma classe social localizados na história brasileira.
[…] Sublinho a importância de perceber como devemos ajustar nosso olhar para as crianças ditas viadas: ali se flagram corpos porosos às injunções da cultura, em inter-relação com roupas, brinquedos, programas de televisão, enfim, toda uma cultura de massas em direta interação com dados da educação, da criação familiar e da sexualidade dos indivíduos. […] O que diferencia a teatralidade “alegre” das crianças “normais” da teatralidade “perigosa” das crianças “viadas”? Uma serve à criatividade e prepara para a ação no mundo (conforme se preconiza nos currículos escolares e nos manuais pedagógicos), e a outra para a “lacração” nociva das redes sociais? Existe uma tal diferença?
Devemos lembrar sempre que crianças viadas são, antes de tudo, crianças. E mais: antes mesmo de serem reunidas por Iran Giusti, as crianças viadas sempre estiveram ali. Cabe aceitá-las. E disponibilizar nosso olhar para a sua singularidade.
NOTAS
[nota 1] Anne Higonnet. Pictures of innocence: The history and crisis of ideal childhood. Nova York: Thames and Hudson, 1998.
[nota 2] Iran Giusti. “Como o ‘criança viada’ virou militância, motivo de histeria reacionária e um crime”. Disponível em: <https://medium.com/@Irangiusti_/como-o-crian%C3%A7a-viada-virou-milit%C3%A2ncia-motivo-de-histeria-reacion%C3%A1ria-e-um-crime-e97b50a12f8b>.