Graciliano Diadorim out19

 

 

 

Escrito durante a pandemia de covid-19, Fisiologia da composição: Gênese da obra literária e criação em Graciliano Ramos e Machado de Assis é um dos mais sofisticados ensaios de Silviano Santiago. Publicado pelo Selo Suplemento Pernambuco, da Cepe Editora, a obra será lançada num bate-papo virtual entre o autor e o editor Schneider Carpeggiani, no dia 7 de dezembro (segunda-feira), às 19h, no canal da Cepe no YouTube.

O livro está focado na leitura de dois grandes nomes: Graciliano Ramos, com uma imersão em Memórias do cárcere; e Machado de Assis, com Memórias póstumas de Brás Cubas e Esaú e Jacó.

No trecho abaixo, Silviano fala sobre a relação entre narrativas hóspedes a partir do livro de Graciliano, hospedeiro de Em liberdade, romance lançado pelo próprio Silviano nos anos 1980. 

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Em liberdade (1981) é um romance hospedado por seu autor nas Memórias do cárcere (1953), de Graciliano Ramos. Livro hospedado, diário íntimo, e livro hospedeiro, memórias, são ambos escritos na primeira pessoa do singular e ambos são, ainda que o primeiro não o seja, “de” Graciliano Ramos. A obra que acolhe ostenta estilo original e a que nela se aloja passageiramente, estilo homológico. Este não foi, ponhamos, conquistado naturalmente; foi primeiro apreendido pelo autor do livro hospedado na leitura de obra alheia.Em seguida, foi aprendido e repetido como cópia, atividade a não ser tomada no sentido meramente decorativo do vocábulo, para retomar Jean Cocteau (citado por Susan Sontag na epígrafe) [nota 1]. No processo de composição do romance/hóspede, a lei do usucapião é soberana: a posse de Silviano contra a propriedade (estilística) de Graciliano.

Não se tenha dúvida: o livro hóspede é espaçoso e ambiciona, no mundo, o lugar geográfico e físico ocupado pelo livro hospedeiro. Sub-repticiamente, o forasteiro se faz de executivo no gerenciamento da hospedaria. Responsabiliza-se não só pelo estilo literário do hospedeiro como também pela sua grafia-de-vida. Compõe um diário íntimo apócrifo e, de fato, verdadeiro, já que o todo está circunscrito pelo estilo do hospedeiro. Obedece aos limites impostos por uma forma-prisão.

Abstraído o caráter decorativo, ou seja, abstraídas as aparências de a proposta de diário íntimo ser mera cópia, aparências que se afinariam convencionalmente pelo que é dado como plágio, diga-se que o nome-próprio/impróprio do narrador/protagonista hóspede é o mesmo nome-próprio/certificado do narrador/protagonista hospedeiro. O eu — o sujeito que escreve as memórias e o diário íntimo e neles atua — se refere à grafia-de-vida de uma única pessoa, o escritor Graciliano Ramos vivendo na cidade do Rio de Janeiro, então sede do governo federal, durante os anos de 1936 e 1937.

Memórias/hospedeiras e romance/hóspede se assemelham a gêmeos, embora não sejam univitelinos, ou seja, não tenham sido gerados pela mesma célula vital. Apresentam-se, no entanto, dentro do mesmo útero artístico, se guardadas pequenas e inevitáveis diferenças, digamos, empíricas, sentimentais e emocionais. A semelhança entre as duas obras está (1) em esforço estilístico idêntico e (2) no efeito de composição com uma mesma e única grafia-de-vida, ressalte-se: de obras literárias de diferente autoria. Hospedeiras, as memórias do cárcere não transformam a obra hóspede, o diário íntimo, em biografia de X por Y; acolhem-na na condição de diário do famoso autor das memórias e de vários romances e contos canônicos, ainda que ele seja ficcional e assinado por romancista estreante.

A grafia-de-vida de Graciliano Ramos é trabalhada em dois gêneros distintos, memórias e diário, que são aproximados pela escrita do eu e recobrem perspectiva cronológica diferente. Na obra hospedeira, a trama se desenrola no ano de 1936; na hóspede, nos primeiros meses de 1937. Caso as duas obras tivessem tramas que transcorressem em idêntico espaço/tempo, a segunda seria repetição silenciosa (às vezes, irônica, como no caso da paródia). Por mais criativa que fosse, a obra hóspede não passaria de mera leitura pouco ou em nada criativa da primeira.

Ao assumir a diferença-na-semelhança, o autor de Em liberdade afirma que a principal originalidade do ato de hospedar sua obra está no admirável potencial de reprodutibilidade — no potencial hoteleiro — que o estilo de Graciliano Ramos comporta, admite e acolhe, seja nas Memórias do cárcere seja na variada ficção. O estilo responsável pelo corpo de Graciliano Ramos está tematizado nas memórias e, no caso de Em liberdade, ele passa a ser responsável pelo corpo presente de Graciliano Ramos na composição estilística/ fisiológica do diário íntimo ficcional.

A fidelidade estilística (ou infidelidade estilística — esta depende do ponto de vista do observador, ou da idiossincrasia do leitor do diário íntimo) não é mera questão de plágio. Ela tem de ser tratada como problema extramoral. Tem a ver com a condição inexcedível da mentira ficcional. Se dita e reafirmada como ficcional, caso das Memórias póstumas de Brás Cubas, ela é a mais radical das manifestações humanas da verdade extramoral. Fora do cárcere, o corpo ainda é — se e quando e mesmo em mãos de outro autor — presa do próprio estilo que, no cárcere, o tematiza. (Não há esforço meu em desclassificar a tematização do corpo em favor de sua presença na composição. Há o desejo de oferecer compreensão e metodologia de leitura de obras que se distanciam do estilo documental, que enfatiza o assunto, ou seja, de romances que se distanciam da escrita realista-naturalista. Interessa-nos objeto diferente. Interessa-nos jogar luz sobre obras literárias que se autoafirmam com eficiência e rigor pela composição inusitada, que dificulta, ou evita, a naturalização fácil de sua significação).

Nas memórias/hospedeiras, o corpo do escritor alagoano se encontra tematizado como cidadão político que, em tempos que precedem a ditadura de Getúlio Vargas, está tendo sua circulação pelo mundo involuntariamente limitada ao espaço reduzido e tormentoso do confinamento (i)legal. De maneira arbitrária e injustificada, a liberdade de agir lhe é tolhida pela Delegacia de Ordem Política e Social, órgão policialesco federal que, à semelhança do Serviço
Nacional de Informações do Império Brasileiro, criado em 1821, se incumbe da segurança nacional. Às vésperas do Estado Novo, o corpo do autor das memórias é o de prisioneiro político em cárcere de criminosos comuns. Ele nada mais deseja e almeja que a própria liberdade de atuação na vida cotidiana e, para tal, precisa deixar o cárcere e voltar urgentemente à vivência familiar e comunitária. Voltar a ter os direitos constitucionais de cidadão em regime democrático. Fugir do confinamento a que obrigam seu corpo — eis a busca imediata do corpo tematizado nas memórias.

(Susan Sontag constata: “Em termos práticos, todas as metáforas para o estilo consistem, na verdade, em pôr o tema no lado interno e o estilo no lado externo”).

Liberdade, a palavra, aparece 51 vezes nas Memórias do cárcere. No entanto, é indispensável alguma precaução semântica no tratamento do vocábulo. No estilo de Graciliano Ramos, a liberdade tal como almejada pelo preso político não se assume como valor absoluto, já que não se confunde com a liberdade universal, filosoficamente almejada para a condição humana. Ela, na cadeia, expressa apenas o se mexer (sic) livre do ser humano. Lemos na página inicial do livro: “Liberdade completa ninguém desfruta: começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer” (grifo meu).

Se oprimido pelo estilo alheio, caso de Em liberdade, o corpo do escritor alagoano se mexe no interior duma forma-prisão, em quase tudo semelhante às propostas pela sintaxe e o Dops.

A liberdade do prisioneiro político não depende apenas da vontade do homem. Ela se deixa fabricar por ele entre os estreitos limites coercivos que, no mestiere di vivere (Cesare Pavese), são impostos a todas e a todos os encarcerados, indistintamente. Fora do cárcere, o prisioneiro continuará prisioneiro. Não terá a liberdade que julga poder usufruir na condição de interno que se julga inocente. Ser prisioneiro é consequência da condição linguística, e sociopolítica e econômica, do humano. Liberdade política é valor precário (ela não é “completa”, para citar o adjetivo no texto de Graciliano). Evidências do valor extramoral da liberdade são o inevitável uso correto do léxico e da sintaxe em língua nacional (ou nalguma língua dita universal, como o francês ontem e o inglês hoje), ditado pelo dicionário e pela gramática, e o comportamento social, político e econômico do cidadão, devidamente vigiado e punido pelas leis vigentes, legais ou ilegais. Conquista-se a liberdade em exercício individual entre manifestações concretas, variadas e violentas, de coerção.

Qualquer forma de poder imposta pela força ou pelo espírito humano ao indivíduo é coerciva. A prisão política do cidadão é um condicionamento entre outros de poder ditatorial, apenas uma variável da servidão humana. O exercício de liberdade do cidadão no campo do possível é, aliás, juízo recorrente na criação literária de nossa época. Citem-se versos de Píndaro, em epígrafe à coleção de poemas Charmes (1922), de Paul Valéry: “Ó minha alma, não aspire à vida imortal, mas esgote o campo do possível!”. Os versos de Píndaro reaparecem em outra epígrafe, a do ensaio Le mythe de Sisyphe (1942), de Albert Camus, autor traduzido por Graciliano Ramos pouco antes da redação de suas memórias. Aliás, a última frase do narrador de A peste incorpora precocemente os juízos de Graciliano sobre o encarceramento do ser humano na desgraça: “ele sabia que o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada. E sabia, também, que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz.”

 

NOTAS

[nota 1] "Em termos práticos, todas as metáforas para o estilo consistem, na verdade, em pôr o tem no lado interno e o estilo no lado externo. Caberia melhor inverter a metáfora. O assunto, o tema, está no exterior, e o estilo está no interior. Como escreve Cocteau: 'O estilo decorativo nunca existiu e, infelizmente, para nós a alma assume a forma do corpo" (Susan Sontag, no ensaio Sobre o estilo, do livro Contra a interpretação).

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