Você já deve ter lido algo que escrevi. Só não está ligando o nome à pessoa. Mas não é culpa sua. Acontece. Meu nome é Wolf, Edgard Wolf. Sou jornalista e tenho uma coluna em um dos jornais da cidade. Na verdade, uma tira vertical, espremida entre os anúncios da clínica de emagrecimento e da agência de viagens. Por causa disto, vez ou outra me perguntam como anda o meu regime ou como eu fui de férias. Não ligo. Acontece.
O que faço não é lá grande coisa. Assim como o jornal que trabalho. Mas garante o suficiente para que eu viva decentemente, num modesto apartamento alugado no Centro, onde posso fazer praticamente tudo a pé. Ainda sobra um trocado para uma cesta básica com produtos de primeira necessidade, composta por livros, vinhos, queijos e preservativos. Quando o orçamento permite, perambulo pelos sebos da cidade em busca de um vinil para tocar na radiola que herdei do meu pai.
Estava justamente ouvindo uma coletânea de tangos de Gardel quando a campainha tocou. E pelo toque, percebi logo que deveria ser uma mulher. Não me pergunte como, mas com o tempo desenvolvi a habilidade de saber por quem o sino dobra, como diria o bom e velho Hemingway. Muito útil na hora de se evitar visitas indesejadas. Não era o caso. Mesmo antes de conferir o palpite pelo olho mágico, senti um perfume doce se alastrar pela fresta da porta, como aqueles nevoeiros dos filmes B de terror. Um a zero para mim.
Do lado de fora estava a nova estagiária do jornal, em carne, osso e carne novamente, embrulhada para presente num vestido florido de um tecido tão fino que deixava transparecer a beleza interior dela. Abri a porta e ela nem esperou o convite para invadir o apartamento, estrategicamente triscando o corpo dela no meu. Sorte não ter nada inflamável por perto. O perfume agora tomou conta do ambiente, como se uma bomba de gás tivesse sido detonada. Lembrei de uma velha máscara da Segunda Guerra comprada no Mercado de Pulgas de Berlim. Mas nem me dei o trabalho de procurá-la. Já estava letalmente intoxicado.
“Trouxe vinho e queijo”, disse ela, com um sorriso tão largo que deveria caber uns 70 dentes na boca. Ainda sem a mínima cerimônia, a estagiária foi na cozinha, desfilando numa passarela imaginária, o vestido florido balançando de lá para cá, na iminência de cair. Ela conhecia bem a área, já havia me visitado outras vezes. Kerol Newjob era mais uma filhinha de papai seduzida pelo glamour do jornalismo, porém o jeito de menina mimada escondia um Vesúvio em plena atividade. Ela voltou com o saca-rolha e duas taças. Senti a temperatura se elevar.
Na radiola, Gardel cantarolava uma dor de cotovelo: “Si ella me olvida, qué me importa perderme mil veces la vida. Para qué vivir?”. Ela teria o quê, 20, 22 anos, no máximo. Os braços torneados giravam o saca-rolha. Nada balançava, tudo era durinho, como se religiosamente misturassem uma porção de concreto ao café da manhã dela. Uma cena familiar, afinal, de certa forma ela se assemelhava às outras estagiárias que inexplicavelmente cruzaram meu caminho. Desenvolvi a tese de que mulheres aparentemente sem problema, eventualmente nutriam a necessidade de se sentirem um pouco mais humanas, através do contato com a realidade mundana e decadente. Era aí que eu entrava na história.
Apesar de me sentir um velho Landau carcomido por dentro pela ferrugem, sabia que externamente não era de se jogar fora. Um pouco rodado, concordo, precisando de um reparo aqui, outro acolá. A lataria acusava o tempo de uso, a pintura meio acinzentada na lateral do teto, umas rugas no canto do farol. Mas ainda mantinha um certo luzir do brilho original. O motor roncava um pouco, é verdade, porém a potência continuava praticamente a mesma. Bastava apenas o combustível certo.
“O que você está fazendo aqui?”, perguntei, finalmente tomando alguma iniciativa, mas me sentindo um idiota por já saber da resposta. “Isso não é certo, você deveria estar se divertindo por aí com alguém da sua idade”, segui com minha inútil ladainha, tentando sair ileso de uma nova erupção. Alheia ao meu fraco argumento, ela me serviu o vinho, enchendo em seguida a taça dela. “Você sabe que não me contento com pouco”, respondeu, tomando um generoso gole, capturando uma gota perdida no canto do lábio com a ponta da língua. “Quando estou com você, é como estivesse com duas pessoas da minha idade. E nada melhor que um bom ménage.”
Com uma garrafa na mão e a taça na outra, Kerol Newjob foi direto para o meu quarto. As pernas longas, alvas e sólidas como um par de colunas de mármore do Parthenon, venceram a distância entre os cômodos em dois passos. O ranger da cama denunciou que havia alguém deitado nela. Em seguida, o barulho inconfundível de um zíper sendo aberto. Lá se ia o vestido florido. “Vem cá, chatinho”, convocou, docemente, a estagiária, girando a ignição do velho motor. Permaneci estático na sala, na esperança que ela desistisse de me tragar para a armadilha.
SOBRE O AUTOR
Alvaro Filho é jornalista e escritor. Esse é um trecho do seu romance Jornalismo para iniciantes, lançado este mês
Três imóveis mal-assombrados, por Luís Henrique Pellanda