Pauliceia desvairada, de Mário de Andrade (1893–1945), traz duas singularidades. A primeira se encontra no Prefácio interessantíssimo. Nele se lê que o autor dos poemas não pretende facilitar a aproximação do leitor a seu livro. Nega a entrega duma chave de leitura a estranho e sabe que seu semelhante já a tem. Lá está: “Repugna-me dar a chave de meu livro. Quem for como eu tem essa chave”. Há 99 anos, o ensimesmamento lírico e a deselegância no trato do leitor estão escritas no pórtico da Pauliceia desvairada.
Lembro Caetano Veloso no cruzamento da Ipiranga com a São João. Narciso “acha feio o que não é espelho”.
A intransigência do poeta nasce em espírito fino. Um ser humano sensível aos tremores da vida familiar e sentimental, delicado na análise dos relacionamentos humanos. A cláusula pétrea requer interpretação. O poeta da metrópole, semelhante ao compositor baiano que a visitará nos anos 1960, é, no popular, cheio de “não me toques”. Alertado, o leitor sempre se cuidou. Se se atrevesse, outros lhe diriam que, para não ofender, seria bom zelar pelo cuidado.
Lembro também que são precoces os poemas de Pauliceia desvairada. Não foram escritos pelas mãos da Nêmesis tardia, a deusa da vingança a desancar o macho heteronormativo e boquirroto. Cito versos do poema Reconhecimento de Nêmesis, anunciado em 1922 e escrito em 1926: “Ah! homens filhos-da-puta,/ Gente bem ruim, bem odiando,/ Homens bem homens, grandiosos/ Na sua inveja acordada!”. O reconhecimento tardio de Nêmesis por Narciso culmina com verso assustador e iconoclasta: “Êh! homem, bosta de Deus!”.
Pauliceia desvairada foi escrito por outras e prévias mãos, as do sacrifício. Mãos de aprendiz, a adestrar os dedos em teclado de piano. O irmão, também pianista, morre prematuramente, vítima de acidente. O luto ganha o corpo do futuro pianista e o impede de assumir o domínio na arte da interpretação. Por causa nobre é que as mãos de Mário se recolhem. Buscam aprendizado semelhante. Adota, primeiro, a manugrafia (o neologismo é do poeta) e, mais tarde, irá dominar um teclado de letras. O da Manuela, sua máquina de escrever.
Extravia-se um intérprete musical. Desponta um escritor. Em carta ao tio Pio, o sobrinho observará: “Carece ir aos poucos adquirindo aquela sensibilidade datilográfica, que é diferentíssima da manugráfica…”. Poema do livro Losango cáqui (1926), Máquina-de-escrever ilustra a troca de teclados e o novo aprendizado.
Foi de chorinho de Zequinha de Abreu (1880–1935) que roubei a expressão “não me toques”. O roubo me ajuda a configurar a relação entre o compositor musical e seu intérprete e entre o poeta e seu leitor. Duas consequências. Primeira. Para o intérprete e para o leitor a genialidade é sempre a do Outro, tido como superior e mestre. Segunda. Ainda que criativos, intérprete e leitor são submissos à partitura musical e ao poema, respectivamente. A atividade do discípulo é sempre não-conclusiva. Dele se espera uma, ou sucessivas performances.
O poeta de Pauliceia desvairada é tão performático quanto o intérprete musical. Na obediência à partitura de Não me toques, pianista e escritor exibem um corpo de olhos atentos e meneios melodiosos e maliciosos, às vezes apimentados. Requebra aqui, seduz acolá. Os corpos de braços e mãos bem relaxados estão bem adestrados. Exercitam-se em movimentos previstos pelo ritmo expresso por notas musicais na partitura ou por versos na página.
Pauliceia desvairada demonstra ambição. O intérprete quer se transformar em compositor. Seria ele capaz de ser poeta? Chegará a escrever as próprias invenções em linguagem fonética? Em caso positivo, suas invenções poéticas não deveriam ser abordadas pelos que objetivamente leem a partitura por aprendizado prévio e no íntimo amam executá-la?
Ao se metamorfosear em corpo de poeta, o corpo de pianista vive satisfeito graças às qualidades de dançarino que desenvolveu sentado na banqueta. De repente, com a chegada de parceira, os movimentos do corpo, até então previstos, se tornam inesperados. Pergunta o poeta Mário e responde: “Quem dirá que não vivo satisfeito! Eu danço!”.
Poeta e parceira passam a rodopiar imaginaria e amorosamente no salão de danças. O poeta é extemporâneo: “Dei um salão aos meus pensamentos!”. E continua: “Tudo gira,/ Tudo vira,/ Tudo salta,/ Samba,/ Valsa,/ Canta,/ Ri!”. Dançam também os seis pronomes pessoais. Dançam o sobe e o desce. E assim ao infinito do salão.
Será que, na metamorfose, o poeta teria se perdido numa página de O crepúsculo dos ídolos (1889), de Nietzsche? Sim, o filósofo alemão passa a dançar nas Incursões de um extemporâneo. Pergunta primeiro: “Entre os alemães, quem ainda conhece por experiência o sutil calafrio que os pés ligeiros transmitem em coisas espirituais a todos os músculos?”. Responde em seguida: “não se pode excluir a dança em todas as formas da educação nobre. Saber dançar com os pés, com os conceitos, com as palavras. Será que ainda terei de dizer que é preciso saber dançar com a pena — que é preciso aprender a escrever?”.
Performáticos, os pés ligeiros do filósofo e do poeta tornam o corpo humano tão vário e múltiplo quanto os sucessivos ritmos musicais expressos por diferentes partituras. Belas e gentis senhoras, “parceiras” no salão de danças, atrasaram o reconhecimento de Nêmesis por Narciso.
O poema Danças é dedicado à Dona Baby Guilherme de Almeida (Belkiss Barrozo do Amaral de Almeida, bela e elegante senhora, cuja figura pode ser “furtada” de retrato pintado por Lasar Segall). Não se alvoroce, leitor de Dom Casmurro, alerta o “corajoso” poeta: “Já sei que não tem propósito/ Gostar de donas casadas”.
Sem alvoroço, o leitor pula até o poema Amar sem ser amado, ora pinhões, onde, ao final, será também acalentado por cantiga de ninar em língua indígena: “Uirô mococê cê-macá…”, cantiga anotada por Roquette-Pinto e harmonizada por Villas-Lobos. Os amores do poeta, como sua poética, têm ancestralidade e contemporaneidade numa cantiga indígena.
Pauliceia desvairada traz uma segunda singularidade — o texto da dedicatória. Um único ser humano, dividido em dois, é de novo envolvido pela música. Narciso retorna fortalecido. Diz a dedicatória: “Permiti-me que ora vos oferte este livro que/ de vós me veio. […]/ Mas não sei, Mestre, se me perdoareis a distância/ mediada entre estes poemas e vossas altíssimas/ lições…”.
Mário de Andrade, meu mestre, são suas as altíssimas lições que eu, Mário de Andrade, seu intérprete, executo com destreza e imaginação em poemas.
Em notável ensaio intitulado O arcaico e o moderno (publicado em 2009), Gilda de Mello e Souza explicitou o modo como o querido tio Pio, de Araraquara, fora desclassificado como bom leitor e finalmente recuperado. Ao apreciar os livros que o sobrinho lhe submete, o tio não demonstra o aprendizado necessário e o amor indispensável à língua portuguesa (falada no Brasil). No entanto, ao ler a tradução (de 1933) ao inglês de Amar, verbo intransitivo (1926), ele pôde apreciar — pela primeira vez e por linhas tortas — a alta qualidade da escrita do sobrinho.
Anota Gilda: “A tradutora norte-americana, Margaret Richardson Hollingsworth, deve ter tido opinião semelhante à de Pio Lourenço [em relação ao estilo de Mário], e quando a editora Macaulay remeteu ao autor a versão inglesa, Mário ficou horrorizado”. Na tradução ao inglês, Mário leu livro diferente do seu. O quid pro quo ajuda a ensaísta a explicar a metamorfose do tio Pio. Como ele se tornou leitor apropriado e único dos livros do sobrinho? “A tradução descaracterizou completamente a mensagem artística original, mas na medida em que para Pio Lourenço a língua inglesa era a mais civilizada de todas as línguas, ela purificava, sacralizava o território suspeito e selvagem de Mário de Andrade”.
Não cabe ao leitor da Pauliceia desvairada imitar o tio Pio e menos ainda a tradutora norte-americana — alertam premonitoriamente o prefácio e a dedicatória do livro. Os poemas de Mário de Andrade estão albergados em retórica bem pessoal, “suspeita e selvagem”, para retomar os deliciosos adjetivos de Gilda. Só a moagem lógica da retórica moderna pela língua inglesa é que a purifica e a sacraliza para o leitor arcaico.
A retórica moderna é consistente. Mário se prima por propor jogos semânticos pela estrutura sintática da intermitência. A intermitência é uma finalização não-conclusiva do ato de fala e vai ganhar diversos modos, formas e figurações no discurso poético de Mário de Andrade. Ou seja: seu discurso poético evita em geral os jogos de significado que se armam por coordenação. O poema é de natural discursivo, embora abomine a sintaxe discursiva.
A intermitência reclama a ruptura. Exemplo. Ela configura o clima paulista como dois modos de ser não-conclusivos. Oscila entre as figurações ambientais de Londres e as de país tropical. Outro exemplo. As descrições socioeconômicas oscilam entre o presente agrário e milionário do estado de São Paulo, com destaque para as figuras do barão do café e do caipira, e a possibilidade de nele inaugurar e inserir algo diferente. Um centro urbano moderno e industrializado, a ser desenvolvido por ondas migratórias estrangeiras e domésticas. “Pátria é acaso de migrações e do pão nosso onde Deus der…”.
Se houver um modelo dominante de composição do discurso poético de Mário de Andrade seria o paratático. Elementos diferentes se justapõem — e, posteriormente, se acumulam uns sobre os outros — sem que a coordenação os linearize ou os montem em escadinha.
O tratamento dos conceitos líricos se dá também na dimensão de eterno e duplo presente. Os respectivos elementos não-conclusivos só desaparecem quando são envelopados e “arquivados” (o verbo é de Mário). Sentimentos, sensações e ideias opostas, ou situações contrastivas ou conflitivas coabitam sob o modo da intermitência, em harmonia aparente. Quebra-se a intermitência no momento em que seu arquivamento a retira de circulação. Abre-se espaço à intermitência seguinte.
Com constância, o silêncio — retorno do branco à página de letras — se recobre de negro pela pontuação. Aliás, exagerada, como é do gosto da casa. O poeta ama excessos. Despreza o vocabulário pobre e a sintaxe parcimoniosa e construtivista, típica de algum modernismo brasileiro. Prefere os estilos fartos de Castro Alves e de Euclides da Cunha.
Em julgamento da prosa de Machado de Assis, o crítico literário desmontou retrospectiva e prospectivamente o estilo mão de vaca — sempre as mesmas vinte palavras — de Graciliano Ramos e de João Cabral. Mário observa: “Machado de Assis […] era o homem que compunha com setenta palavras. Era aquele instrumento mesmo de setenta palavras, manejado pelos velhos clássicos, que ele adotava e erguia ao máximo da sua possibilidade acadêmica de expressão culta da ideia”.
Em 1923, Mário pedirá passagem e intermitência ao cotidiano paulista. Ao lado, ele abre um segundo salão de danças, agora popular. A cidade do Rio de Janeiro é entregue ao Rei Momo. Escreve: “Carnaval…/ Minha frieza de paulista,/ Policiamentos interiores,/ Temores da exceção…”. Os temores, lembro, são da exceção e não de exceção.
No salão de danças carioca, o poeta é exceção à regra paulista (frieza, policiamentos, temores…). Evidencia-se a autenticidade da “invasão furiosa das sensações”. O desbunde carnavalesco toma “de supetão” — sem coordenação evidente — o corpo policiado e temeroso.
Em 1929, Mário pedirá de novo passagem e intermitência. Ao lado, abre um segundo salão de danças popular, agora na atual região Nordeste do Brasil. Escreve: “Ai momentos de físico amor,/ Ai reentrâncias de corpo…”. A sexualidade no Recife se acopla à sensualidade carioca que se acopla ao friozinho arrebitado da Pauliceia desvairada. Em intermitência e acúmulo.
O cidadão/poeta é, pois, fabricado de meias partes não-conclusivas. “O vento corta os seres pelo meio” (Momento). As meias partes não-conclusivas se repetem como tal e vão sendo estocadas. A certo momento, se deixam arquivar na gaveta das performances infinitas do corpo. Em 1929, em poema de Remate de males, Mário já pode reconhecer a si em numeração absurda. “Eu sou trezentos, trezentos-e-cinquenta”. Números pares.
Nesse poema, está também outra cláusula inesperada. Ei-la: “Só o esquecimento é que condensa,/ E então minha alma servirá de abrigo”.
A alma, única figuração da singularidade humana, é afim às possibilidades infinitas e performáticas do corpo e delas se diferencia por ser asilo. Ágrafa, ela não escreve poemas. É mera abstração que “condensa” as trezentas, as trezentas-e-cinquenta partículas do corpo. Solitária, a alma tem péssima memória. Mais que solitária, a alma é solteira. Não dança.
Ao pôr o pé no chão é que a alma se humaniza. Descobre a si sob a forma de corpo erotizado e dançarino de poeta. Abriga o corpo a buscar parceira e a se tornar ladrão (lawless, fora da lei) da experiência alheia. Não pune um dos excessos da intermitência — a paixão amorosa. “Toda paixão é esquecida./ Maria será esquecida.//[…] E a paixão será arquivada./ Maria será arquivada”. Volta a ser receptáculo virgem, semelhante ao quadro-negro ou à tela de computador. Está a se esvaziar com o apagador ou a tecla deletar.
A paixão pela Maria, a amada, terá seu fim ao ser arquivada. Abre-se espaço para outra Maria.
A alma passa o tempo a “descobrir a furto seus próprios beijos”. É voyeur de seu corpo no ato de se tornar erótico. Comprometida com o estágio superior em que condensa a multiplicidade humana, a alma tem seus intentos secretos: “Eu piso a terra como quem descobre a furto/ Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!”. Em qualquer lugar que esteja, a alma beija por interposta boca a beijar outra boca.
Há que se distinguir o “abrigo” (alma) do “arquivo” (acúmulo). Aquele cancela as performances pelo esquecimento, este busca agrupar todas as performances. A dança é o modo como o “arquivo” (acúmulo) se apresenta como negação de princípio identitário único. O ato não-conclusivo, qualquer que seja ele, não se condensa numa única característica física ou psicológica do poeta. Num único homem. Num único caráter.
A composição da vida e do poema em atos não-conclusivos tampouco significa insuficiência. Significa o desprezo pela repetição. Algo tão excessivo quanto a paixão só terá seu final fixado pelo tédio à repetição. Arquivada a paixão, o dançarino se abre a enérgico, alegre e novo ritmo de vida.
Nesse momento crucial do conhecimento de Mário de Andrade por seu leitor, o hiato, como figura de composição, não reproduz o contraste entre eles, ou a contradição e menos ainda a aversão. O reconhecimento de Nêmesis, já dissemos, é tardio na vida e na obra de Mário de Andrade.
Repugna ao compositor musical dar a chave de leitura da composição ao intérprete. Repugna também ao poeta. Poeta hiato leitor. O espelho do hiato os separa e os ata. A imagem do leitor é reflexo da figura do autor. Somos dois desconhecidos e nos entretemos em conversa não-conclusiva.
Não existe partitura musical sem intérprete. Não existe intérprete sem partitura musical.
Ao verso “Amor com medo dos desejos…” seguem-se estes dois: “— Ria um pouco, beleza! / — Come do meu!”. A afirmação é reticente e o diálogo que se lhe segue, desbocado e fescenino. Estão no poema Carnaval carioca. A cena é a de adultério em praça pública. A paixão do poeta por seu leitor e a do leitor por seu poeta acontecem “de supetão” e “a furto”, ou seja, são adulterinas. Ria um pouco, beleza, come do meu! O poema propicia ao medo dos desejos o atrevimento.
Um livro é único, apaixonante e não-conclusivo. Dia chega em que a paixão é arquivada. Haverá outro e mais outro livro. Não há como o leitor progredir em suas leituras de poesia sem trair a partitura que o forma. O livro está ali para dar por iniciada e encerrada uma performance. De supetão e a furto, surgirá diferente performance — semelhante ao beijo que ainda não havia sido dado.
Volto ao cruzamento da Ipiranga com São João: “Ainda não havia para mim, Rita Lee,/ A tua mais completa tradução”.