Mais adiante você lê um trecho de Camarada, da teórica estadunidense Jodi Dean (foto), recentemente lançado pela Boitempo, com tradução de Artur Renzo. O texto se debruça sobre o termo do título, um tratamento comum entre as esquerdas do mundo que foi sendo substituído por palavras como “aliado”. Essa mudança é um dos exemplos que Dean lança como problema da esquerda contemporânea. A questão residiria na sobreposição da identidade política a uma relação de pertencimento político que precisa ser levantada, sustentada e defendida.
“O cerne do livro são quatro teses sobre o camarada: 1) ‘camarada’ dá nome a uma relação caracterizada por uma condição comum, pela igualdade e pela solidariedade (uma relação que, no entendimento dos comunistas, rompe as determinações da sociedade capitalista); 2) qualquer um, mas nem todo mundo, pode ser um camarada; 3) o indivíduo (como lócus de identidade) é o ‘Outro’ do camarada; e 4) a relação entre camaradas é mediada pela fidelidade a uma verdade; as práticas de camaradagem é a forma de relação política necessária para a esquerda hoje”, explica a autora na obra.
No trecho abaixo, Jodi Dean discute a terceira tese, centrada naquilo que caracteriza o camarada em diferença ao “indivíduo” enquanto identidade.
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TESE TRÊS: O INDIVÍDUO (COMO LÓCUS DE IDENTIDADE) É O “OUTRO” DO CAMARADA
“Camarada” designa uma relação, não uma identidade individual. Um obituário publicado em 1925 no Pravda elogia o falecido: “O camarada Nesterenko não tinha biografia pessoal nem necessidades pessoais”. [nota 1] O filme Ninotchka [1939] mostra que não se deve fazer muito caso do fato de uma camarada ser mulher; todos têm trabalho a fazer. Na esquerda, camarada é um pronome de tratamento que se vincula a nomes próprios — camarada Yakushova. O nome próprio carrega a identidade individual; a forma de tratamento afirma uma condição comum. Depois de uma grande manifestação de um dia inteiro contra supremacistas brancos, um camarada meu observou, com alegria: “Não precisamos nem saber o nome um do outro — somos camaradas”. “Camarada” assume o lugar de “senhor”, “senhora” e cidadão”. O termo nega a especificidade de determinado título — título que inscreve diferenciação e hierarquia — e o substitui por uma insistência positiva em uma condição comum igualadora. Ao mesmo tempo, exige uma decisão e demarca um corte. Como nem todo mundo é camarada, chamar alguém de camarada assinala uma divisão: você está ou não conosco?
Oxana Timofeeva ressalta que na camaradagem a identidade desaparece.[nota 2] Ela dá o exemplo dos disfarces utilizados pelos bolcheviques na clandestinidade. Qualquer um poderia estar por baixo daquele bigode. Schrecker fornece outro exemplo, uma declaração do general Herbert Brownell, procurador-geral* do presidente Dwight D. Eisenhower. As suspeitas de Brownell em relação aos comunistas haviam aumentado porque, em suas palavras, era “quase impossível ‘reconhecê-los’, uma vez que eles não usam mais carteirinhas de filiação ou outros documentos escritos que os identifiquem devidamente” [nota 3]. Nesses exemplos, é o camarada genérico que aparece, disfarçado de indivíduo, embora um entre muitos; pode ser qualquer um. Schrecker cita Herbert Philbrick, um informante disfarçado: “Qualquer um pode ser comunista. Qualquer um pode de repente se revelar membro do Partido Comunista — um amigo próximo, irmão, empregado ou mesmo empregador, cidadão importante, servidor público de confiança”. [nota 4]
A cantata de Bertolt Brecht A decisão [Die Massnahme] também explora a relação antitética entre identidade individual e a figura do camarada. Quatro agitadores são julgados frente a um comitê central do partido (o coro de controle) pelo assassinato de um jovem camarada. Os agitadores contam como se disfarçaram a fim de se aproximar dos trabalhadores chineses que eles estavam tentando organizar. Cada agitador teve de apagar a própria identidade a ponto de não ter “nome nem mãe”, “folhas em branco sobre as quais a revolução escreve suas instruções”. [nota 5] Cada agitador, incluindo o jovem camarada, havia concordado em lutar pelo comunismo e não ser mais si próprio. Todos vestiram máscaras chinesas, de modo a parecerem chineses em vez de alemães ou russos. No entanto, em vez de seguir as instruções e agir conforme o plano acordado, o jovem camarada repetidamente sobrepôs seu próprio juízo ao do partido, estimulando a tomada de ações antes da hora certa. Ele viu com seus próprios olhos que “a miséria não pode esperar”, rasgou escritos do partido e arrancou sua máscara. Ele buscou antecipar a revolução, e sua impetuosidade acabou comprometendo o movimento todo. Forçados a fugir das autoridades chinesas, os agitadores e o jovem camarada se apressaram para escapar da cidade. Os agitadores se dão conta de que, uma vez que o jovem camarada havia se tornado identificável, eles precisavam matá-lo. O jovem camarada concorda. Os quatro agitadores o fuzilam, o jogam em uma mina de cal que eliminaria todo e qualquer traço dele e retomam seu trabalho.
Camaradas são múltiplos, substituíveis, fungíveis. São elementos em coletivos, até mesmo coleções. Como menciono no primeiro capítulo, em diversas línguas românicas “camarada” surgiu como termo para pessoas que compartilham uma mesma dependência ou viajam juntas. Ser camarada é compartilhar uma condição com outra pessoa no que diz respeito a para onde ambas estão indo. Aliás, esses elementos de condição comum e coletividade apontam para a diferença entre a figura do camarada e a do militante. O militante é uma figura singular que luta por determinada causa. O fato de alguém ser militante não nos diz nada sobre a relação desse alguém com outras pessoas. O militante expressa intensidade política, não relacionalidade política.
No processo de transição ao capitalismo que ocorreu na Rússia pós-1991, o termo “camarada” começou a ser desacreditado. Alla Ivanchikova me diz que essa foi uma luta política travada no campo da etimologia. Surgiram novas etimologias buscando despolitizar e ridicularizar o termo. Elas sublinhavam sua origem na palavra tovar, ou seja, mercadoria, um bem à venda [nota 6]. Ivanchikova explica que “isso tinha o claro propósito de mostrar que por trás de todo o falatório sobre ‘camaradagem’ há relações monetárias e mercadológicas dando as cartas. Qualquer camarada (tovarish) é uma mercadoria (tovar), se você souber pagar o preço certo” [nota 7]. Ao mesmo tempo, contraetimologias insistem que a palavra tovar é muito mais antiga que sua referência a uma mercadoria ou bem produzido para ser vendido. Tovar deriva de uma antiga palavra para designar um acampamento militar, tovarŭ [nota 8]. Os soldados referiam-se uns aos outros como camaradas.
Por trás dessa guerra etimológica reside um pressuposto de equivalência. A intercambiabilidade — entre soldados, mercadorias, alunos de uma escola, viajantes ou membros de um partido — caracteriza a figura do camarada. Tal como ocorre com fantoches, engrenagens e robôs, a comunalidade não decorre da identidade, não decorre de quem alguém é, mas, sim, do que está sendo feito: luta, circulação estudo, viagem, fazer parte de um mesmo aparato. Camaradas políticos são aqueles que se encontram de um mesmo lado. Camaradas comunistas são aqueles que lutam para emancipar a sociedade do capitalismo e criar novos modos igualitários de associação livre e de tomada coletiva de decisão em prol do benefício comum.
Para os anticomunistas, o instrumentalismo das relações entre camaradas soa horripilante. Combinado com a impessoalidade maquínica e a fungibilidade dos camaradas, o fato de as relações entre camaradas serem produzidas para um propósito exterior, o fato de elas serem meios e não fins em si mesmas, parece moralmente questionável. Essa objeção deixa de reconhecer a especificidade da camaradagem como relação política, como algo que implica estar do mesmo lado da luta. Ela omite a maneira pela qual o trabalho político se concentra em fins que vão além do indivíduo e, portanto, necessariamente requer coordenação coletiva. Ela pressupõe uma política totalizante que subsume todas as relações, em vez de reconhecer uma política abstrata liberada ou alienada de relações sociais específicas. E ela reduz o espaço de significado a autorrelações, como se relações genéricas abstratas entre pessoas que se filiam a uma verdade política só pudessem ser o resultado de manipulação.
Em entrevista a Vivian Gornick, um ex-membro do CPUSA [Partido Comunista dos EUA] descreveu sua vida de reuniões, atividades, manifestações de Primeiro de Maio, venda do Daily Worker e discussões infindáveis sobre Marx e Lênin como algo “além das noções de bom ou ruim”, como algo “arrebatador, poderoso” e “intenso, absorvente, repleto de uma espécie de camaradagem que penso não ser possível reencontrar” [nota 9]. Ele se via como útil, vivendo a serviço de uma luta de significado histórico mundial. Suas ações não eram individuais; eram momentos de uma luta coletiva, instâncias pelas quais o poder coletivo do partido podia surgir [nota 10]. Precisamente por estar engajado com outros em um propósito comum, o camarada foi capaz de experimentar um profundo significado político. Precisamos rejeitar a ficção burguesa de que intimidade depende de revelações pessoais, experiência individual ou da maneira como uma pessoa se sente a respeito de outras pessoas e acontecimentos. Há outras intimidades de trabalho comum e propósito compartilhado: preparar o jornal, produzir os cartazes, planejar uma ação, bater de porta em porta.
NOTAS
Todas as notas são da autora de Camarada, exceto quando sinalizado o contrário.
[nota 1] Jeffrey Brooks, Thank You, Comrade Stalin! Soviet Public Culture from Revolution to Cold War (Princeton, Princeton University Press, 2000), p. 24.
[nota 2] Nikolay Oleynikov e Oxana Timofeeva, Beastly Spirits: A Pack of Folks, em Rethinking Marxism, v. 28, n. 3-4, 2016, p. 500-22.
* Vale notar que, no sistema brasileiro as funções análogas às exercidas pelo procurador-geral estadunidense são dividas entre três cargos: o de procurador-geral da República, o de advogado geral da União e o de Ministro da Justiça. (Nota do Tradutor)
[nota 3] Ellen Schrecker, Many Are the Crimes, (Boston, Little, Brown and Company, 1998), p. 141.
[nota 4] Idem.
[nota 5] Bertolt Brecht, em John Willett e Ralph Mannheim (orgs.), The Measures Taken and Other Lehrstücke (Nova York, Arcade, 2001), p. 12 [ed. bras.: A decisão: peça didática, em Teatro completo 3, trad. Ingrid Dormien Koudela, São Paulo, Paz e Terra, p. 241 e 260].
[nota 6] Olga Kravets, On Things and Comrades, em ephemera, v. 13, n. 2, 2013. P. 422.
[nota 7] Comunicação pessoal.
[nota 8] Serguei Sakhno e Nicole Tersis, Is a ‘Friend’ an ‘Enemy’? Between ‘Proximity’ and ‘Opposition’, em Martine Vanhove (org.), From Polysemy to Semantic Change (Amsterdã, John Benjamins, 2008), p. 334.
[nota 9] Vivian Gornick, The Romance of American Communism (Nova York, Basic, 1978), p. 56.
[nota 10] Agradeço a Hannah Dickinson e Kai Heron pelas discussões sobre essa questão.