Este fim de ano vai ser completamente diferente para mim. Não que todos os anos fossem sempre iguais, não mesmo. Mas é que esse réveillon vai ser singular. Antes de me explicar melhor, preciso dizer que quando criança sempre me perguntei se no réveillon a gente comemorava o ano que passava ou o ano que chegava. Aos poucos fui entendendo que, ainda que a festa seja em homenagem ao ano que está chegando, uma coisa não vem sem a outra. O presente tem que virar passado para o futuro virar presente. Mas semana passada uma conversa me assustou. Uma amiga me dizia que não existe presente. Aquela visão bastante cética que considera o tempo apenas uma sucessão de segundos. Já tinha ouvido esse discurso antes, mas ele não me convence. Ou melhor, não me agrada. Talvez eu já seja ansioso e nostálgico demais para pensar que vivemos de passado e futuro. Ao mesmo tempo, não compartilho aquela ideologia “carpe diem” dos que vivem o presente como realidade única. Bocejo. Não. Acho que deve existir por aí um meio termo. Simpatizo bastante com a noção de ciclos. E como as temporadas de séries de TV, os ciclos podem durar meses ou apenas 24h. Mas enfim, chega de tentar discutir a concepção subjetiva do tempo...
Só mais um parêntese antes de voltar a falar deste meu fim de ano: acabei de me dar conta que apesar de sempre ter sido um menino sabido, nunca me intrigou o fato que a cada réveillon toda minha família chora. Na verdade, só depois de algum tempo descobri que há pessoas que não choram na virada do ano. Para mim, como a roupa branca, o choro na hora de desejar feliz ano novo sempre foi natural. Depois do último minuto do ano que passou e antes do quinto minuto do ano que começa todo mundo desaba. E depois continua a festa. Acho que são os ciclos que nos fazem chorar. Ou melhor, a renovação deles. O fim de ano joga uma lupa sobre essa questão, escancara. Então dá aquele friozinho na barriga pelo ano que vai chegar. E é exatamente nesse momento que começamos a criar inúmeras expectativas para a próxima temporada. Talvez a gente faça isso justamente para evitar transformar o tal friozinho em angústia ao calcular quantas das expectativas do ciclo passado ficaram pelo caminho.
É, este fim de ano vai ser completamente diferente para mim. Para ser bem franco, não fosse o fato de estar escrevendo esse texto e os comentários de alguns amigos, talvez nem percebesse que estamos apenas a alguns dias da festa de réveillon. Afinal de contas, não vi o congelador cheio de comida, nem percebi a agitação dos familiares programando as músicas e as bebidas das festas. Este ano, enquanto minhas tias vão para a praia pegar o bronze do natal (minha mãe não, ela não gosta de sol), eu compro uma luva mais grossa para enfrentar o frio que está por vir. Com o oceano de distância dos meus fins de ano habituais pude entender melhor essa questão de ciclos. Principalmente porque, de fato, me aproximo do fim de uma temporada. Em janeiro, depois de um ano em terras francesas, volto pra casa. O réveillon não vai ser meu último dia aqui, mas depois dele tudo será apenas despedidas.
Quando eu sei que alguma fase está passando, acabando, a minha reação imediata é ter um pouco de medo. Temo esquecer o que vivi. Eu sei que com os anos sempre vamos perdendo os detalhes e quanto mais antiga é a lembrança, mais ela adquire um aspecto de sonho. Tenho medo de um dia me lembrar do meu primeiro ano fora de casa e não saber se certas coisas aconteceram, ou é apenas impressão, confusão da memória. Tenho medo de esquecer como eu vivi tudo isso, de não me lembrar bem de como é ser estrangeiro, nem do quão estranho foi descobrir que pode existir alguém bem parecido comigo na Finlândia. Ou ainda, esquecer a alegria que foi comprar uma máquina de lavar roupas.
Mas o que eu mais temo na verdade, com a volta pra casa e o reencontro com a velha rotina, é esquecer tudo que descobri. Não pense que eu estou me repetindo e sendo redundante. Entenda bem, há uma diferença grande entre esquecer o quê e como vivi e esquecer o que descobri. As descobertas são o que podemos levar de melhor de um ciclo para outro. Descobri muitas coisas que não sabia e outras tantas que já desconfiava. Descobri que existem muitos mundos que giram em paralelo. Confirmei também aquela velha frase de consolação: nós nos habituamos facilmente a quase tudo. Pois é, aprendi que certos clichês são de fato verdadeiros. Agora, por exemplo, tenho certeza que é impossível ser feliz sozinho (confesso: na falta de uma brasilidade cotidiana, tive uma pequena recaída pela bossa nova). Comprovei que de fato a gente não faz amigos, simplesmente os reconhece, e que tenho uma facilidade maior do que pensava para me apegar às pessoas. Acho que é por isso que não acompanho seriados: detesto quando os personagens somem entre uma temporada e outra. Mas o que me deixa tranquilo é que nesta viagem também descobri que, não importa onde eu esteja, certas pessoas sempre vão estar comigo. Por isso, na tentativa de traduzir a palavra saudade para a língua estrangeira, acabei aprendendo que ela tem mais a ver com presença que com falta de.
Mesmo assim, tenho certeza que vou sentir bastante a ausência do mar neste réveillon. Apesar de ter passado a maioria das festas de fim de ano na praia, nunca pulei sete ondinhas. Ao invés disso o que costumamos fazer é dar um mergulho no mar antes da virada do ano, por volta das dez horas da noite. O último banho de mar do ano. Bom mesmo é quando a maré está cheia e ficamos exaustos apenas na tentativa de permanecer em pé. Deixamos no mar tudo que não queremos levar para o ano seguinte. O último mergulho de 2010 eu já dei há alguns meses, afinal, na cidade onde estou só existem montanhas no horizonte. E neste réveillon, acho que elas vão ser as únicas a se vestir de branco.
Na falta de rituais, sobra apenas a renovação de ciclos. Ainda não sei ao certo o que vai acontecer em 2011, mas tenho a impressão que este ano foi apenas a primeira temporada de um novo ciclo. Quando eu penso no próximo ano vem uma sensação estranha, uma ansiedade. Como se eu estivesse voltando para o desconhecido, entende? Talvez eu até volte pra velha rotina, mas sei que ela não vai ser mais a mesma. Muita coisa já não é igual. Mas acho que só quando eu voltar pra casa vou saber o que mudou realmente. E pode ser que apenas no Brasil eu vá perceber qual foi a minha maior descoberta. Pode ser que eu ainda não esteja entendendo nada direito. Pode ser. Enfim, não vejo a hora de mergulhar no mar de novo.
SOBRE O AUTOR
Fellipe Fernandes estuda cinema na Universidade Blaise Pascal na França.