… E nisto chegou a um caminho, que se dividia em quatro. E logo lhe veio à imaginação a encruzilhada em que os cavaleiros andantes se punham a pensar que caminhos daqueles tomariam. (Cervantes: D. Quixote de la Mancha)
Asa
Antes, vivia na certeza,
como uma águia aprisionada na gaiola.
A dúvida me libertou
deixando-me voar no espaço livre,
não mais certo de nada
senão da importância do voo.
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Quando escrevo os meus versos
meu coração fica leve
como uma folha.
Mas sopra a tempestade
e a folha sofre
o desespero de ser leve.
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Meu pai, homem de espírito
mas de pouca alma.
Impermanente homem, viveu improvisando,
discutia impossíveis,
vagabundo de múltiplas paixões.
Descaradamente amava o efêmero das coisas.
Nunca ficou o mesmo
Não sabia quem era, mas apenas que era.
E então corria
antes que a vida lhe passasse à frente.
E eu, tão diferente, rebelei-me
contra o meu pai.
É, por isto, imitei-o
(e, como ele, perdi-me;
que imitou seu Pai).
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Minha mãe era feita de incertezas,
tecida de solidão de infindas luas.
Nunca assentou seu coração viajeiro
de medo de esquecer o fim da viagem.
Não dormia, sonhava,
vivia os sonhos acordada e louca
e amava a vida
com tal ódio e paixão,
que até se percebia nos seus olhos,
nas mãos, nos gestos
na vontade de ser e o desespero
de não ser nunca e ainda.
E eu perguntava coisas
e ela não respondia,
apenas navegava incertos mares
guiada por estrelas que eu não via.
Minha mãe era feita de incertezas
mas, por certo, sabia o que queria.
Colhes uma flor sem nome num jardim qualquer,
numa tarde como as outras
e, no entanto, toda a tua vida se recolhe
nesse ato humilde,
todo o teu passado se reflete
num gesto obscuro,
e se recapitula tudo o que fizeste
desde os mais remotos tempos em que não existias
senão no desejo de teus avós,
quando eras apenas uma forma vagamente possível,
um voto de amor não formulado ainda,
talvez nem isto.
Ao colheres uma flor,
a tua vida inteira se refugia nesse gesto.
E é por isto que a flor estremece.
Meu irmão, te verei um dia
despojado de tudo o que não és
desse rosto não teu
das aparências, dos guisos, das mentiras
dos disfarces.
Te verei meu irmão
tão diferente
e desnudo e pequeno
tão tu mesmo e tão outro
e passearemos por galáxias vadias
e céus e inferno longos
e falaremos nada tantas horas
que o tempo se fará de nossas falas.
Te verei meu irmão
mas talvez não me vejas
tão diferente estarei
tão pequeno e desnudo
tão parecido a ti nas vaidades mortas
na humildade do rosto enfim reencontrado.
Sufocarei senão gritar agora.
Deixa, Senhor, que eu blasfeme
na danação desta hora.
Preciso ser maldito
para sentir-me salvo.
Se permitires que eu blasfeme agora,
verás, Senhor, que essa blasfêmia
é apenas
um jeito de oração de amor magoado.
A natureza, arte de Deus, supremo artifício,
não a retoques.
Humildemente aceita-a.
Descobre-a em ti, nas coisas, em tudo.
E, se não podes segui-la, ama-a e respeita-a,
guarda-a no coração, em teu silêncio.
E se lhe fores fiel, mesmo timidamente,
nela descobrirás, amando-a,
tua mãe, tua amante
e tua casa.
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Não é o mar que amo,
é o infinito que ele sugere,
são as paixões que lembra
é a força que suscita
– é isto que amo no mar,
não o mar, mas o que ele representa,
a paisagem interior aonde ele aponta,
o mar em mim, as águas reprimidas
no coração mais dentro.
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Como suportaria os rudes golpes da vida,
se em mim a cicatriz não precedesse a ferida?
Se as águas dos meus mares
não fechassem em instantes
o corte que lhes fazem
os navios que as singram noite e dia?
Às vezes antes, outras vezes
no instante do sofrer,
a vida em mim responde
e faz-se cicatriz antecipada
ou água revolta a se fechar no instante
ou apenas também
a submersa dor, tornada espuma.
SOBRE O AUTOR
Esses textos fazem parte do livro de estreia de Daniel dos Santos Lima, Poemas, que é lançado este mês pela Companhia Editora de Pernambuco.
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