Abaixo você lê um texto da escritora Marilene Felinto, Clarice Lispector e a alegria fatal de Recife, sobre a obra de Clarice Lispector (1920-1977), pensando sua experiência de viver no Recife em contraste com a da autora de A hora da estrela. O texto integra o livro O que eu escrevo continua: Dez ensaios no centenário de Clarice Lispector (Cepe Editora), organizado por José Mário Rodrigues.
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Há tempos eu quis buscar Clarice Lispector no mapa de Recife, para ver onde exatamente ela viveu, morou, estudou, brincou, foi menina. Por uma curiosidade pessoal: como também passei a infância em Recife, onde nasci, quis saber como a escritora absorveu e incorporou a cidade em sua obra.
E mais: como ela teria experimentado o fato de ter deixado a cidade aos 14 anos de idade para ir viver no Rio de Janeiro. Também eu tive experiência de imigração semelhante, ao sair de Recife aos 11 anos, de mudança com a família para São Paulo.
A minha foi uma experiência dramática, de fugir da pobreza nordestina para o sul e sudeste do país, nas levas da grande imigração das décadas de 1940-1980. Com o passar dos anos, esse drama, central na minha formação, seria objeto de muitos exercícios literários meus.
Minha curiosidade sobre este tema sempre foi instigada também por uma declaração de Clarice Lispector afirmando sua brasilidade e sua ligação com Recife:
Cheguei ao Brasil com apenas dois meses de idade. Sou brasileira naturalizada, quando, por uma questão de meses, poderia ser brasileira nata. Fiz da língua portuguesa a minha vida interior, o meu pensamento mais íntimo, usei-a para palavras de amor. [...] Criei-me em Recife, e acho que viver no Nordeste ou Norte do Brasil é viver mais intensamente e de perto a verdadeira vida brasileira [...]. Minhas crendices foram aprendidas em Pernambuco, as comidas que mais gosto são pernambucanas. E através de empregadas, aprendi o rico folclore de lá.[nota 1]
Este artigo não pretende ser uma comparação entre a obra de Clarice e os poucos textos de ficção que escrevi e publiquei. A obra clariceana continua ímpar e incomparável na literatura brasileira.
Faço apenas uma aproximação entre duas pobrezas, entre duas perdas de um mesmo território de infância, entre dois modos de imigração e a consequente origem semelhante de um sentimento de não pertencimento presente nos escritos de Clarice, e com o qual me identifico.
Hoje consciente de como aquele ambiente de infância foi fundamental nos meus processos de elaboração da realidade via literatura, quis entender como isso se passou na gênese de criação artística de Clarice.
As semelhanças entre uma vida pernambucana e outra, a despeito das particularidades de cada biografia, são várias, apesar também das diferenças de época e de grupo social.
Tenho clareza de que a solidão de imigrante experimentada pela menina Clarice, a percepção terrível de sofrer discriminação por condição social, por pobreza ou por racismo não eram muito diferentes da minha naquela cidade de infância. Meus pais, negros, embora não fossem imigrantes, vinham do semiárido de Pernambuco e da Paraíba, retirantes da seca e da fome.
Tenho clareza também da semelhança entre roubar rosas e pitangas às escondidas nos jardins dos palacetes do centro de Recife, como fazia Clarice menina, e roubar dálias e margaridas de certas casas ricas da minha rua, para servir ao “rei” na brincadeira de rua chamada “boca-de-forno” nos anos de 1960, como fazíamos.
A família de Clarice veio para o Brasil em 1921, fugindo da perseguição aos judeus na Ucrânia e Rússia. Aportaram em Maceió, onde viveram por três anos. Clarice chegou com quase quatro anos de idade em Recife, em 1924. E a família haveria de mudar-se para o Rio de Janeiro em 1935. [nota 2]
Nasci em 1957, ou seja, 33 anos depois de Clarice ter chegado em Recife. E deixei a cidade em 1968. Em quatro décadas, muita coisa já tinha mudado, mas a geografia era a mesma, a paisagem, a imagética, a luz, o clima. De escandalosamente semelhante, porém, só a desigualdade social, que se alargara em abismo instransponível na minha época.
No mapa de Recife, a família de Clarice habitou o quadrilátero entre a Ponte da Boa Vista e a Ponte Princesa Isabel, no bairro da Boa Vista, à beira do Rio Capibaribe, onde vivia uma comunidade judia de cerca de 350 famílias.
Naquela capital ainda acanhada, movida a bondes, que tinha perto de 300 mil habitantes, Clarice viveria uma de suas maiores tristezas, perderia a mãe, que morreu em 1930, quando a menina tinha 9 anos. O pai, mascate vendedor de tecidos, esforçava-se para dar às filhas a melhor educação do lugar. Clarice e as duas irmãs tiveram inclusive aula de piano, instrumento que o pai havia comprado “com grande sacrifício” logo que a esposa morreu.
E a família tinha empregadas domésticas, como conta Clarice em uma crônica: “Em Recife, eu ia aos domingos visitar a casa de nossa empregada nos mocambos. E o que eu via me fazia como que me prometer que não deixaria aquilo continuar. Eu queria agir”.[nota 3]
Desse primeiro contato com a face cruel daquela Recife da injustiça social, a futura escritora formaria sua indignação pela pobreza e a discriminação de classe. Ali seriam geradas todas as suas personagens de empregadas domésticas e o sempre impacto que a existência delas lhe causava, em dezenas de crônicas e em contos e romances, da Janair de A paixão segundo G.H. à Macabéa de A hora da estrela.
Clarice menina tinha intimidade com o centro da cidade e certo acesso à cultura letrada para além da escola – a livraria Imperatriz era vizinha de porta de sua casa –, brincava à beira do rio e no elegante jardim do Derby com seu chafariz.
Na minha época, o rio já se encontrava poluído demais, e cheirava a caranguejos podres, a pescadores exaustos e sujos de lama. E as pontes do centro eram povoadas de esmoleres miseráveis, expondo feridas abertas e cuias que tilintavam moedas ralas ao sol a pino. Minha família vivia na Imbiribeira – bairro que não ficava nem a 10 quilômetros do centro – uma espécie de periferia pobre do bairro de Boa Viagem e sua famosa praia.
Mas para mim, o centro do Recife era um lugar muito distante, mistura de miséria absoluta e modernidade espantosa, lugar cansativo, aonde se chegava por meio de ônibus velhos e barulhentos, e para onde se ia fazer compras, resolver negócios intrincados ou frequentar os detestáveis consultórios médicos e dentários.
Meu pai, negro de pele clara, que só tinha cursado o antigo primário mas tinha servido como fuzileiro naval, alimentava sonhos de cultura e riqueza, escutava música clássica em casa e comprava à prestação livros dos mascates que ainda existiam e percorriam as ruas do bairro vendendo de tudo. Muitas vezes não pagava, e tínhamos que manter portas e janelas fechadas quando os vendedores vinham cobrar a dívida, fingindo que não tinha ninguém em casa.
A menina Clarice Lispector estudaria na mais tradicional das escolas públicas da cidade, o Ginásio Pernambucano, um prédio imponente na Rua da Aurora, à beira do Rio Capibaribe. Na minha época, entretanto, aquele Ginásio era privilégio dos filhos da oligarquia pernambucana. E me lembro claramente dos momentos de angústia com que minha mãe procurava vagas para as quatro filhas nas escassas escolas públicas da cidade que, naqueles anos de 1960, tinha apenas perto de 800 mil habitantes.
Acabamos por estudar como bolsistas em uma escola particular do bairro, de freiras católicas, o Ginásio Maria Tereza. Para uma família de negros pobres, a vida naquela Recife dos anos de 1950-1960 era de pobreza avassaladora.
Já no colégio, éramos discriminados também como filhos de protestantes: não podíamos assistir às aulas de religião nem participar dos rituais católicos, entre eles o de comungar e comer a hóstia, desejo que alimentei por longo tempo.
Mas algo na cidade e naquela infância – muito embora não seja exclusividade daquele lugar nem daquela infância – de gente pobre, fosse judia ou negra, era de pura inspiração e alegria para certo tipo de percepção ou sensibilidade que no futuro poderia ser chamada de “artística”.
Que “algo” era aquele? O quê? O mar gigantesco? A natureza exuberante em flor e fruto de mangas, de jambos do clima quente? Os festejos – impedimentos para uns, os protestantes, os pobres, pura interação alegre para outros – o Carnaval, o São João, o Pastoril?
Uma infância de pobreza será para sempre a lembrança do que tanto se desejou e não se teve. E em Recife, com sua luz faiscante de tão clara e seu céu azul-azul de tão bonito, não ter era um misto de dor e alegria-tortura-esperança de um dia vir a ter, uma espécie de agonia.
Desse sentimento, me lembro de ter passado anos desejando ardentemente possuir um par de meias com pompons dependurados do elástico – isso tinha virado moda naqueles anos. Muitas crianças usavam aquele luxo que eu só pude ter depois de anos.
O jeito era resolver brincando do que não se tinha, portanto, de uma casa que fosse sua, um palacete dos ricos, e arriscar-se, quando possível, a roubar uma rosa da casa deles, uma que fosse inteiramente sua.
Para sempre marcaria a futura escritora Clarice a rosa roubada do quintal do palacete ajardinado na crônica Cem anos de perdão? Sim, para sempre e em glória. E todas as suas histórias sobre flores e primaveras nasceram desse Recife de jardins e desigualdades – da "Flor Mal-assombrada e Viva Demais" à “A Rosa Branca”, do talo das begônias que menina morde em Felicidade clandestina à crônica Dicionário, um verdadeiro inventário anatômico de 18 tipos de flores. Para não falar do icônico conto Restos do Carnaval, em que a menina é fantasiada de rosa em papel crepom. [nota 4]
E para sempre, enfim, estaria Clarice “invadida e embriagada” pelo mar de Olinda? Sim, o mar de Pernambuco, o porto e os navios que tanto a trouxeram como a levaram diversas vezes no seu trajeto de imigrante em busca de pertencimento.
Uma infância de pura alegria era experimentar o mar de Pernambuco, em Olinda, na praia de boa Viagem em Recife, onde fosse, e sua água verde-morna, aconchego reconfortante, brincadeira em ondas infindáveis. “Eu não sei da infância alheia”, diz Clarice. “Mas essa viagem diária [à praia do Carmo, Olinda, antes de amanhecer], me tornava uma criança completa de alegria”.
“Estou tão emocionada que não consigo escrever”, continua a escritora ao descrever o mar em “Banhos de Mar”. Mais tarde, já mulher feita, em “As Águas do Mar”, experimenta a mesma sensação de alegria e entrega ao entrar no mar, no silêncio das seis horas da manhã: “uma alegria fatal” porque “a alegria é uma fatalidade”.
O espaço aqui neste artigo não é suficiente para aprofundar a questão que me propus a investigar: esta de como, a despeito das privações e da infelicidade da pobreza, uma cidade como Recife impregnou como “alegria fatal” os textos de Clarice Lispector (e um tanto os meus).
O restante desta minha reflexão, que não cabe aqui desenvolver, fica como homenagem ao centenário desta que é a maior escritora brasileira de todos os tempos, mas como homenagem a ser continuada, sempre que possível.
NOTAS
[nota 1] “Esclarecimentos – Explicação de Uma Vez Por Todas”. In LISPECTOR, Clarice. A Descoberta do Mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 498.
[nota 2] Todas as referências biográficas sobre Clarice Lispector estão em GOTLIB, Nádia. Clarice: Uma Vida Que Se Conta. São Paulo: Ática, 1995. E, da mesma autora, Clarice: Fotobiografia. São Paulo: Edusp/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2007.
[nota 3] “O que eu queria ter sido”. LISPECTOR, Clarice. In op. cit., p. 217.
[nota 4] Todos os títulos citados neste parágrafo e no seguinte estão em LISPECTOR, op. cit.