A linguagem é o que Giorgio Agamben discute no texto abaixo, um trecho do livro O que é a filosofia?, lançado pela Boitempo Editorial e atualmente em pré-venda. No livro, cinco ensaios de Agamben tentam dar conta da pergunta-título da obra - o trecho abaixo é do primeiro capítulo, dedicado a pensar a voz. Para ele, a linguagem não é uma questão de gramática, mas de antropogênese política. A voz é o vetor de discussão na parte em questão - mas aqui você lê as ideias do filósofo sobre a linguagem.
Além da voz, o autor investiga, à procura de respostas para a pergunta sobre filosofia, argumentos em torno da exigência, do dizer e da ideia, do proêmio e da música. A tradução é de Andrea Santurbano e Patricia Peterle.
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EXPERIMENTUM VOCIS
1.
É fato sobre o qual nunca deveríamos nos cansar de refletir que – apesar de ter havido em todos os tempos e lugares sociedades cujos hábitos nos parecem bárbaros ou, de alguma forma, inaceitáveis e grupos, mais ou menos numerosos, de homens dispostos a questionar cada regra, cada cultura e cada tradição; apesar, além disso, de terem existido e existirem sociedades inteiramente criminosas e de não haver, de resto, nenhuma norma e nenhum valor sobre cuja validade os homens consigam estar unanimemente de acordo –, não há, contudo, e jamais houve uma comunidade ou sociedade ou grupo que tenha decidido renunciar pura e simplesmente à linguagem. Não que os riscos e os danos implícitos no uso da linguagem não tenham sido percebidos várias vezes ao longo da história: comunidades religiosas e filosóficas, tanto no Ocidente quanto no Oriente, praticaram o silêncio – ou, como diziam os céticos, a “afasia” –, mas silêncio e afasia eram apenas uma prova para um uso melhor da linguagem e da razão, e não uma renúncia incondicional àquela faculdade de falar que, em qualquer tradição, parece inseparável do humano.
Assim, frequentemente nos interrogamos sobre a maneira como os homens começaram a falar, propondo acerca da origem da linguagem hipóteses manifestamente incontroláveis e desprovidas de rigor; mas nunca nos perguntamos por que eles continuam a falar. No entanto, a experiência é simples: é sabido que a criança, se não é exposta de algum modo à linguagem nos seus onze primeiros anos de vida, perde irreversivelmente a capacidade de adquiri-la. Fontes medievais nos informam que Frederico II teria tentado um experimento desse tipo, mas o objetivo era totalmente diferente: não a renúncia à transmissão da linguagem, mas sim o desejo de saber qual era a língua natural da humanidade. O resultado do experimento é suficiente por si só para destituir as fontes em questão de qualquer credibilidade: as crianças, cuidadosamente privadas de qualquer contato com a língua, teriam espontaneamente falado o hebraico (ou, segundo outras fontes, o árabe).
Que esse experimento nunca mais tenha sido tentado, não apenas nos campos de concentração nazistas mas também nas comunidades utópicas mais radicais e inovadoras, que ninguém – nem mesmo entre aqueles que não teriam hesitado em tirar a própria vida – jamais tenha ousado assumir a responsabilidade de privar o homem da linguagem, isso parece provar, além de qualquer dúvida, o elo infrangível que parece ligar a humanidade à palavra. Na definição que quer que o homem seja o vivente que possui a linguagem, o elemento determinante não é, segundo toda evidência, a vida, mas a língua.
No entanto, os homens não saberiam dizer o que para eles estaria em questão na linguagem enquanto tal, no simples fato de falarem. Apesar de perceberem mais ou menos obscuramente quão inútil seria usar a palavra da forma como costumam fazê-lo, na maioria das vezes à toa e sem nada para dizer um ao outro, ou para se fazerem mal, continuam obstinadamente a falar e a transmitir a seus filhos a linguagem, sem saber se é o bem supremo ou a pior das desventuras.
2.
Vamos partir da ideia do incompreensível, de um ser totalmente sem relação com a linguagem e a razão, absolutamente indiscernível e irrelativo. Como pôde nascer semelhante ideia? De que forma podemos pensá-la? Porventura um lobo, um porco-espinho, um grilo poderiam tê-la concebido? Diríamos nós que o animal se move num mundo que para ele é incompreensível? Como ele não reflete sobre o indizível, seu ambiente não lhe pode parecer como tal: tudo ali acena para ele e fala com ele, tudo se deixa selecionar e integrar, e o que não lhe diz respeito de forma alguma é para ele simplesmente inexistente. De resto, a mente divina não conhece por definição o impenetrável, seu conhecimento não encontra limites, tudo – mesmo o humano, mesmo a matéria inerte – é para ela inteligível e transparente.
Devemos, portanto, olhar para o incompreensível como se fosse uma aquisição exclusiva do homo sapiens, para o indizível como se fosse uma categoria que pertence unicamente à linguagem humana. O caráter específico dessa linguagem consiste em que ela estabelece uma relação particular com o ser de que fala, independentemente de como o tenha nomeado e qualificado. Qualquer coisa que nomeemos e concebamos, somente pelo fato de ter sido nomeada, já é, de algum modo, pré-suposta à linguagem e ao conhecimento. É essa a intencionalidade fundamental da palavra humana, que já está sempre em relação com algo que pressupõe como irrelativo.
Toda posição de um princípio absoluto ou de um além do pensamento e da linguagem tem de contar com esse caráter pressuponente da linguagem: sendo sempre relação, refere-se a um princípio irrelativo que é ele próprio a pressupor como tal (ou seja, nas palavras de Mallarmé: “o Verbo é um princípio que se desenvolve por meio da negação de todo princípio” – isto é, por meio da transformação do princípio em pressuposto, do ἀρχή em hipótese). E é esse o mitologema originário e, ao mesmo tempo, a aporia com que se choca o sujeito falante: a linguagem pressupõe um não linguístico, e esse irrelativo é pressuposto, porém, ao se lhe atribuir um nome. A árvore pressuposta no nome “árvore” não pode ser expressa na linguagem, pode-se somente falar sobre ela a partir de seu ter nome.
Mas então em que pensamos quando pensamos um ser totalmente sem relação com a linguagem? Quando o pensamento busca alcançar o incompreensível e o indizível, na verdade, ele busca precisamente alcançar a estrutura pressuponente da linguagem, sua intencionalidade, seu estar em relação com algo que se supõe existente fora da relação. E um ser totalmente sem relação com a linguagem, podemos pensá-lo apenas por meio de uma linguagem sem nenhuma relação com o ser.
3.
É na estrutura da pressuposição que se articula a trama de ser e linguagem, mundo e palavra, ontologia e lógica que constitui a metafísica ocidental. Com o termo “pressuposto” designamos aqui o “sujeito” em seu significado original: o sub-iectum, o ser que, jazendo antes e no fundo, constitui aquilo sobre o qual – sobre cuja pré-suposição – se fala e se diz e que não pode, por sua vez, ser dito sobre nada (a πρώτη οὐσία ou o ὑποκείμεvov de Aristóteles). O termo “pressuposto” é pertinente: ὑποκε[ῖ]σθαι vale, de fato, como perfeito passivo de ὑποτῖθέναι, literalmente “pôr sob”, e ὑποκείμενον significa, portanto, “o que, tendo sido suposto, jaz como fundamento de uma predicação”. Nesse sentido, Platão, interrogando-se sobre a significação linguística, podia escrever: “Para cada um desses nomes é pressuposta (ὑπόκειται) uma substância particular (οὐσία)” (Protag. 349b) e “os nomes primitivos, para os quais de forma alguma são pressupostos outros nomes (οἶς οὔπω ἕτερα ὑπόκειται), de que modo eles nos manifestarão os entes?” (Crat. 422d). O ser é o que é pressuposto para a linguagem (para o nome que o manifesta), aquilo sobre cuja pressuposição se diz o que se diz.
A pressuposição, então, expressa a relação originária entre linguagem e ser, entre os nomes e as coisas, e a pressuposição primeira é a de que haja uma tal relação. A posição de uma relação entre a linguagem e o mundo – a posição da pré-suposição – é a prestação constitutiva da linguagem humana tal como a filosofia ocidental a concebeu: a ontologia, o fato de que o ser é dito e de que o dizer se refere ao ser. Somente com base nessa pressuposição são possíveis a predicação e o discurso: ela é o “sobre o qual” da predicação entendida como λέγειν τι κατά τινος, dizer algo sobre algo. O “sobre algo” (κατά τινος) não é homogêneo ao “dizer algo”, mas expressa e ao mesmo tempo esconde o fato de que, nele, foi já sempre pressuposto o nexo ontológico de linguagem e ser – isto é, a linguagem leva sempre a algo e não fala inutilmente.