I
Descobri a razão do meu incômodo com os escritores claros: eles não têm problemas de memória. A limpidez denuncia uma inteligência simplista. Quem chora porque não consegue verbalizar um trauma é uma pessoa profunda. Eu estou muito apaixonado por uma mulher profunda.

Descobri meu incômodo com os escritores claros na Polônia. É uma lembrança muito nítida. Senti, a mais ou menos quinhentos metros de um pequenino terminal de ônibus na Cracóvia, a solidão mais intensa da minha vida.

Um ano depois, quando resolvi resgatar na memória o momento mais solitário da minha vida, percebi que a sensação não é ruim. Ela não me faz sofrer.

Eu estou sentado em um banco sozinho. Não há ninguém por perto e nenhum som. Muito longe, percebo que duas senhoras estão em um banco idêntico ao meu. É um quadro.

A solidão é física. Ela causa uma falta de ar moderada e um tênue formigamento nas pernas. O estômago fica pesado e a vista embaça. Não é possível descrever uma solidão muito intensa.

Lembro apenas da minha imagem na Cracóvia, em 2005. Não é uma lembrança ruim. As recordações que me torturam não são imagens congeladas, mas filmes de mais ou menos três minutos. Tenho quase dez na cabeça. De vez em quando eles retornam e me causam um sofrimento muito forte.

II
A minha lembrança mais sofrida dura três minutos. Ela se passa em Buenos Aires, especificamente no Aeroporto de Ezeiza, onde Perón causou um massacre ao retornar do exílio em 1973. O taxista me contou que se lembrava daquele dia: ele estava em casa assistindo à televisão. De repente, cortaram.

Minha lembrança começa quando ele disse pode deixar que eu pego e vai até quando vejo o corpo dele desmaiado, no meio-fio do estacionamento do aeroporto de Ezeiza, bem ao lado da minha mochila. Ele é careca e gordinho. Minha bagagem está pesada porque comprei um monte de livros.

Embarquei na Plaza San Martí e quando passamos por trás da Casa Rosada, perguntei-lhe se é verdade que há um túnel ligando a sede do governo a algum outro lugar. Onde é o final do túnel?

Ele me olhou surpreso e deu uma explicação estranha. Não entendi muito bem. O taxista, então, me disse que se eu tivesse tempo, pelo mesmo valor da corrida até o aeroporto de Ezeiza, ele me levaria a alguns dos pontos de Buenos Aires que se tornaram históricos por causa de Evita.

Aceitei e no final da corrida, um pouco antes de se oferecer para pegar minha mochila, já no aeroporto onde Perón causou um massacre em 1973, ele me disse que o Museo Evita vale um passeio. O Museo Evita vale um passeio.

Depois ele afirmou que pegaria minha mochila. A partir daí, lembro-me de tudo. De vez em quando a recordação volta e eu sofro. Ele estaciona o carro, fala um pouco mais sobre a primeira dama mais extraordinária que o mundo já teve e sai. A porta dele se fecha antes que eu abra a minha. Ele vai até a parte de trás do carro, tira com algum esforço a bagagem e depois, ao fechar a porta, acerta-a com toda força na própria cabeça. Quando o encontro desmaiado junto da minha mochila, percebo que há algum sangue logo acima da testa.

III
Não é uma lembrança estática. Com essas, sofro menos. Não me incomoda lembrar o momento mais solitário da minha vida. Eu estava sentado em um banco na Cracóvia, sozinho e sem entender uma palavra da língua dos poloneses. A quinhentos metros, duas senhoras estavam em um banco idêntico ao meu. É um quadro.

Em Ezeiza, o taxista está desmaiado ao lado da minha mochila. Ela caiu tombada e o corpo dele se estende entre a minha bagagem e o carro. O porta-malas continua aberto. Algumas pessoas já se aglomeram, mas estamos naquele instante em que ninguém se move. Todos nos certificamos de que o taxista acertou mesmo a porta na cabeça. Apenas isso. Apenas isso e não um tiroteio ou um atentado (era dezembro de 2003). Estou parado na calçada a um metro e meio dele. Enxergo claramente a pequena mancha de sangue, imóvel e escura, um pouco acima da testa. Há alguns outros táxis parados, nenhum muito perto. Faz um dia de muito sol e eu recordo, agora, que o suor acaba fazendo minha camiseta colar-se à pele das minhas costas. O taxista veste uma camisa azul por dentro da calça jeans, apertada por um cinto cáqui já envelhecido. Ele tem uma barriguinha. Minha mochila é verde, com alguns detalhes vinho. Não fechei o zíper de um dos compartimentos laterais. O asfalto da rua parece novo e o piso da calçada está bem cuidado. Não há lojas naquela parte do aeroporto. Acho que estou próximo ao ponto de ônibus. Não tenho nada nas mãos, o que hoje acaba sendo um problema, já que não consigo lembrar onde está a mochila menor que eu carrego para todo lado. No caminho até Ezeiza, onde Perón, ela com certeza veio no meu colo.

Então alguém se move em direção ao taxista, desmaiado entre o carro e a minha mochila.

IV
Voltei a Buenos Aires em fevereiro de 2004. Antes de sair do aeroporto, fui ver o local onde o taxista desmaiou. No caminho, sofri muito. Fiquei com dificuldade para respirar, minhas mãos coçaram um pouco e meus olhos, o que sempre acontece quando estou em um momento difícil, começaram a projetar uma tensão estranha acima das sobrancelhas.

Tive que parar e respirar fundo várias vezes durante o trajeto. Quando cheguei, consegui identificar perfeitamente o ponto onde o taxista desmaiou. Ele morreu. Ele não morreu, mas para mim ele tinha morrido. Sentei-me sobre a minha mochila, que ficou tombada no mesmo lugar que o corpo dele, e senti muita vontade de chorar. Mas não chorei. Eu não gosto de chorar.

Depois de alguns minutos, um taxista se irritou comigo, pois queria estacionar. Ele buzinou e eu fui embora.

Naquele mesmo dia, fui ao Museo Evita. Fica na Calle Lafinur, acho que em Palermo Viejo. Não tenho certeza sobre Palermo Viejo, mas toda quanto à Calle Lafinur. Calle Lafinur. Calle Lafinur.

O Museo é fraco e quem já visitou alguns pontos de Buenos Aires que se tornaram históricos por causa da primeira dama mais extraordinária que o mundo já teve não vai aprender muito. Mas achei linda uma das imagens de Evita com Perón, logo na primeira sala. Apesar da proibição, consegui fotografá-la.

Quando baixei a imagem no meu laptop, de volta ao hotel no centro de Buenos Aires, notei que o anel que Perón tinha acabado de dar a Evita desaparecera. Retornei no dia seguinte à Calle Lafinur, e de fato o anel tinha sido roubado da imagem do Museo também.

V
Saí desnorteado para a rua. Andando pela Calle Lafinur, tropecei no meio-fio duas vezes. Eu não conseguia parar de olhar para as mãos das argentinas. Em fevereiro de 2004 elas tinham dedos muito feios.

Algumas usavam um anel. A maioria não. Pouquíssimas tinham mais de um na mesma mão. Não olhei para as duas mãos de uma mesma mulher da Lafinur. Acho que nas outras ruas fiz isso algumas vezes. Na Callao, de fato terminei caindo no chão.

Não desmaiei. Levantei muito rápido e continuei olhando para as mãos das argentinas. Algumas usavam um anel, mas pouquíssimas tinham dois na mesma mão. Não me lembro de ter visto ninguém com três anéis em apenas uma das mãos. Nem na Calle Lafinur e nem em nenhuma das outras ruas.

Infelizmente, não encontrei o anel de Evita. Em fevereiro de 2004, nas ruas do centro de Buenos Aires, ele não estava nos dedos de nenhuma mulher argentina. Olhei para as mãos de todas no perímetro da Lafinur até Puerto Madero. No perímetro da Lafinur até um dos lugares mais cafonas da capital argentina.

Não encontrei o anel que Perón deu para a primeira dama mais extraordinária que o mundo já teve. Na rua, as argentinas movem as mãos muito devagar. Vi que elas usavam um anel, é verdade, mas pouquíssimas colocavam dois na mesma mão.

E nenhuma, absolutamente nenhuma, usava o anel que Perón tinha dado para Evita, a primeira dama mais extraordinária que o mundo já teve. Frustrado, voltei ao hotel e consegui antecipar minha passagem de volta ao Brasil para o dia seguinte. Era fevereiro de 2004 e eu não estava mais obcecado pela Argentina.

VI
Resolvi voltar ao Brasil antes da data que tinha planejado. Poucas vezes eu me sentira tão frustrado. Alguma coisa mudou em mim em fevereiro de 2004 e não ter conseguido recuperar o anel de Evita apenas me deixou mais angustiado.

Antes de entrar na sala de embarque, fui até onde o taxista tinha morrido. Eu não chorava há uns dez anos, mas não foi ali, outra vez. Como o movimento era grande e o filminho com a imagem dele caído começou a voltar na minha cabeça, resolvi entrar logo no aeroporto.

Meu voo ainda demoraria muito para sair. Estacionado em um portão distante vi um belo avião da Japan Airlines parado. As pessoas estavam entrando. Sentei em uma das poltronas mais próximas ao vidro e fiquei admirando o logotipo da Japan Airlines, a JAL. Minha angústia aos poucos foi aumentando (nunca é de repente), até que, pela primeira vez em uns dez anos, em fevereiro de 2004, comecei a chorar. Foi no Aeroporto de Ezeiza em frente a um avião da Japan Airlines. Não era um choro discreto, que eu pudesse esconder. Eu chorava muito, eu chorava tanto porque o meu taxista, o meu guia sofisticado de turismo, tinha morrido e eu não conseguia esquecer, e eu sabia que jamais esqueceria, e eu chorava daquele jeito porque logo o meu amigo André iria se matar, e eu chorava sem nenhum controle, do jeito que mais me incomoda, sem nenhum controle, porque o André morreu sem conhecer os livros do Roberto Bolaño, não é justo, e eu também sabia que nunca mais iria esquecer: quando a polícia encontrou o corpo do meu amigo André, enforcado lá naquele lugar, havia uma sacola de uma livraria em cima da mesa, com o Noturno do Chile dentro, ele tinha acabado de comprar Noturno do Chile, então voltou para onde estava morando e se enforcou sem abrir o livro, ele colocou a sacola na mesa e se enforcou logo depois, e eu chorava daquele jeito porque o André nunca mais iria aos meus lançamentos,  eu chorava muito, na frente do avião da Japan Airlines, porque as pessoas dizem que eu sou cerebral e eu chorava daquele jeito, como eu nunca, porque os meus ex-professores iriam se tornar o que eles se tornaram mesmo e eu chorava porque não consegui encontrar o anel de Evita; tinha sumido, o meu inferno em Campinas já tinha passado, mas o André se enforcou sem conhecer a obra de Roberto Bolaño e eu chorava, eu chorava muito porque estava voltando para o Brasil, e o Brasil não é radical, o Brasil anula o radicalismo para continuar sendo o Brasil, eu não conseguia parar de chorar por causa disso tudo, porque eu não achava justo o André se enforcar, o anel de Evita desaparecer, as pessoas dizerem que eu sou cerebral e o meu taxista ter morrido, eu não achava justo e então em fevereiro de 2004 eu só chorava, eu só chorava.

 

SOBRE O AUTOR
Ricardo Lísias é autor de, entre outros, O livro dos mandarins e Anna O. e outras novelas

 

Leia mais:
Inéditos de Cícero Belmar

SFbBox by casino froutakia