QUAL A PALAVRA
doido —
doido por de —
por de —
qual a palavra —
doido disto —
tudo isto —
doido de tudo isto —
dado —
doido dado tudo isto —
visto —
doido visto tudo isto —
isto —
qual a palavra —
este isto —
esta isto aqui —
todo este isto aqui —
doido dado tudo isto —
visto —
doido visto tudo isto esta aqui —
por de —
qual a palavra —
ver —
entrever —
crer entrever —
querer crer entrever —
doido por de querer crer entrever qual —
qual —
qual a palavra —
e onde —
doido por de querer crer entrever qual onde —
onde —
qual a palavra —
lá —
acolá —
ali lá acolá —
longe —
lá longe acolá —
langue —
langue longe lá acolá qual —
qual —
qual a palavra —
vendo tudo isto —
todo este isto —
todo este isto aqui —
doido por de ver qual —
entrever —
crer entrever —
querer crer entrever —
longe langue lá acolá qual —
doido por de querer crer entrever langue longe lá acolá qual —
qual —
qual a palavra —
qual a palavra
NOTA DO TRADUTOR: QUANDO A FALA FALHA
Último poema composto por Samuel Beckett, (1906-1989), Qual a palavra (no original, Comment dire) é considerado o testamento literário do escritor e dramaturgo irlandês.
Comment dire (Como se diz ou Como dizer) foi escrito em francês em 29 de outubro de 1988 no Hospital Pasteur, em Paris, e terminado na casa de repouso Le Tiers Temps. No ano seguinte, o próprio Beckett traduziu-o para o inglês como What is the word (Qual a palavra ou, ainda, O que é a palavra). Comment dire foi publicado no jornal Libération em 1º de junho de 1989. Posteriormente, em edição limitada, fac-similar e fora do comércio, pela Librairie Compagnie: Éditions de Minuit (plaquete, quatro páginas).
What is the word foi publicado pela primeira vez no jornal Irish Times, na edição de 25-27 de dezembro de 1989. Cada verso (com exceção do último) é seguido de hífen, ou de “traços-de-desunião”, como Beckett os chamava (num trocadilho com traits d´union, "hífens" em francês). Percebendo a importância do poema, quando praticamente já não escrevia nada, Beckett anotou junto à sua assinatura: “Mantenha! Para o fim”.
Há um contexto biográfico importante. Em julho de 1988, Beckett sofrera uma queda em seu apartamento em Paris. Foi encontrado inconsciente. Embora os exames neurológicos não indicassem nada (apenas a suspeita de que pudesse ser um derrame ou Mal de Parkinson), o fato é que Beckett experimentou, por alguns dias, a terrível experiência da afasia: a perda da fala, parcial ou total, ou a perda da capacidade de compreender a linguagem escrita ou falada, resultante do distúrbio dos centros cerebrais responsáveis pela fala. O poema retoma, com fecho de ouro, um tema caro a Beckett: “a impossibilidade de traduzir em palavras a experiência da existência, a impossibilidade de significar”, como escreveu o crítico e professor Tom Bishop (1929-2022). “A viagem da linguagem terminou e, no fim, dado o fracasso das palavras, só há silêncio.” A tradução do poema para o inglês é dedicada à Joseph Chaikin (1935-2003), diretor teatral, ator, pedagogo e dramaturgo americano que havia dirigido várias peças de Beckett. Chaikin havia sofrido um derrame em 1984 que o deixara parcialmente afásico.
Qual a palavra testemunha a luta para superar a paralisia verbal provocada pela afasia. O poema, de linguagem e música minimalistas, reduzidas a puro osso, articula-se através de avanços e recuos, permutações. Encontramos repetições compulsivas, ecos sonoros, paronomásias, um ritmo em stacatto. Limiar entre a fala e o silêncio, o poema dramatiza, numa espécie de gagueira linguístico-mental, o processo de busca pela palavra. Se possível, pela palavra exata (a divisa flaubertiana le mot juste). Como definiu o editor e amigo John Calder, Comment dire/ What is the word é “a definitiva declaração beckettiana sobre a velhice e seu maior medo, a loucura”.
A tradução aqui publicada foi feita a partir do original em francês e de sua tradução para o inglês.