Aqui, você lê um trecho do romance Um álbum para Lady Laet, de José Luiz Passos, lançado neste mês pela Alfaguara Brasil.
***
Nas minhas largas cicatrizes, como guelras embaixo dos mamilos ou o risco das costelas de Adão, parecendo luas de cornos para cima, foi aí onde focaram em mim quando tiraram a fotografia. No espelho, o pomo da garganta, a barba desalinhada na direção certa, é assim que me sinto. Numa entrevista, Abuelita tinha dito assim, “Paola sempre foi homem, mas Paola-Pila, quer dizer, ‘Pablo’, nunca tinha nascido homem”. Abro um riso quando penso em Abuelita dizendo meus nomes. A verdade é que nunca conheci o meu pai. E eu, antes, coiote arredia, Paola tímida, brigona, sozinha mesmo com ajuda de avó, fui me operar em Chicago, onde acordei dolorido e novo, curioso. De qualquer forma, a mesma alcunha de ringue me servia. “Pila Coyote”.
“El” Pila Coyote, “La” Pila Coyote, que me importa? De presente de Natal, Abuelita me deu uma carteirinha da academia de boxe. Bob Luna me treinou. Mas desde a transformação que não nos falamos. Um namorado meu tinha dito, “Paola, você ama feito homem”. Na verdade, queria dizer “Você ama rápido, Pila, calada”, e fiquei um tempo com isso na cabeça. Realmente, não dou atenção a provocações. “Sereia do Lago Michigan”, “Sereia do Rio LA”, talvez eu vá e tatue isso mesmo. Antes da luta, qualquer apelido é como um soco que se perde no ar. Durante o tratamento, uma volta no rio era uma maratona, me sentia péssimo. Preparei a transição tomando o coquetel, me operei no ano seguinte. Antes, fiz a prova física para a equipe olímpica feminina, mas uma lesão boba me deixou de fora.
Em setembro do mesmo ano comecei com os hormônios. Nos cinco meses seguintes ganhei quinze quilos, cresceu a barba, a voz engrossou. Fui tirar os seios e fazer a modelagem do peito em San Francisco. Agora sou masculina. Depois, por ironia, um deles, em Chicago, saiu do ringue quando soube que ia lutar com uma pessoa feito eu. Dois outros desistiram antes de marcarem a data. Chicago importa muito. Armaram um primeiro ringue em 1885, na pista do velho autódromo. Era o começo dos torneios naquela cidade. Já os de LA, não se sabe quando começaram.
No princípio de tudo, na famosa luta da Longa Contagem, Gene Tunney, O Belo, rodeava o gigante Jack Dempsey, e a cada soco que levava Gene dava dois passos de lado, fazendo seu carrossel. No quarto round, Jack pegou um gancho de esquerda e partiu a mandíbula de Gene. Era 1927. Apoiado num joelho, Gene foi à lona com a boca transformada. Levantou-se quando ouviu “Nove!...” a menos de um segundo da derrota. Voltou com paciência, fez seu carrossel e venceu no último minuto, unanimemente, por soma de pontos.
Bastante em segredo, o grande Muhammad Ali esteve em Chicago no final dos anos 1950, ainda adolescente, com o próprio nome de Cassius Clay. Foi competir no Luvas de Ouro. Antes de ganhar o campeonato de 1964, comprou um ônibus e levou para casa, no Kentucky, onde seu pai, um pintor de placas, coloriu a carroceria de vermelho, amarelo, laranja, verde e azul. A placa dizia assim, “O lutador mais colorido do mundo é Cassius Clay”. Muhammad Ali não foi servir no Vietnã. Anularam seu título nacional e ele acabou indo passar um tempo lá mesmo, num bairro simples, em Chicago.
Só em 1994 o campeonato Luvas de Ouro, do Chicago Tribune, abriu inscrições para mulheres. Mas, de fato, não me importava. Contra elas, nunca quis competir. A minha estreia masculina foi no cassino Fantasy, em Palm Springs, na Califórnia. Falei assim, “Mereço a chance de lutar contra homens, eu mesmo, como qualquer outro homem”, e soaram as vaias. No intervalo, fui comprar um saco de batatas fritas e uma limonada. Subi no ringue para o quarto round. Venci no dia 4 do mês. Era como se finalmente tivesse saído meu número. A primeira profissional foi contra um mexicano, Aguilar, em LA. E ganhei. Os próprios mexicanos adoraram Pablo, El “Pila” Coyote, eu, o seu novo homem do outro lado da fronteira.
Então, meu sonho olímpico morreu quando Paola morreu, eu disse isso à repórter e dei uma risada. “O mundo gira, não gira? Carrossel.” Ela não entendeu nada. Depois dessa primeira como lutador masculino, anunciei num carro de som, “A vitória de ontem não foi vitória minha, foi do boxe”. Logo depois, adotei um galo de briga e, na hora, tirei o bicho das rinhas. Não sinto falta nenhuma da época de Paola, La Coyote, nem dentro nem fora da lona. Foi o que repeti, “Paola ‘Pila’ ficou pra trás. Foi-se como um remoto primeiro round depois do nocaute de agora. Virou borboleta”.
Assim disse a rainha Vitória, da Inglaterra, “Conhece-se um Império pelos seus jardins, um Império apenas pelos seus rios e os ramos de seu serviço postal”. Já tem figurinhas comigo correndo à beira do Rio Los Angeles, de pé no ringue, aceso em cores num parque de diversões, diante do píer de Santa Monica. Mas meu horizonte mais próximo ainda é o deserto. Não pensem que o deserto é o oposto do rio, pelo contrário. Perto de casa, ele vai e vem. No inverno, volta com força. No verão, some. E só então chegam as pombas.
Os maratonistas passam com pressa, me deixam para trás. Também estou aqui por causa do rio. Corro seu curso e, quando não há gente por perto, dou socos no ar. De ambos os lados, há paredes em malhas de arame e, ali dentro, os paralelepípedos formam margens refeitas. O resultado, à tarde, às vezes cintila. Uma única vez vi um seio, o seio, à beira do rio. “Los Angeles is here because of the river.” Pavimentaram o Rio LA em 1960. À beira, agora temos pistas de corrida e ciclovias. Seu curso, desviado, chega espremido por dutos, raso, arrastando cadeiras, alguns peixes, brinquedos de outras eras. Todo ano tiram o capim enramado pelas grades de contenção, todo ano ele volta, feito carrossel. Olha a lição. Admiro grama e grades como essas, que diante do rio imitam o mar, como a criança que teima em brincar de suas próprias transformações.
Só então conheci Lucineide. E ela me mostrou o Brasil. O Brasil é forte no boxe, tem o jiu-jítsu, que até os marines praticam. Fico feliz em apresentar este book trailer do livro dela, um lindo livro sobre sua mãe cantora, e fazer isso como ela própria me pediu que fizesse, contando um pouco da minha história. Somos todos matéria de uma mesma passagem, nas variações que nos são dadas viver. Mudei muito, e Lu mudou também, nós dois ouvindo canções que vêm de longe, muitas delas tatuadas de passado. Não dizem que as sereias cantam? Na palmeira de casa vejo um farol, e no chão meus pés em vaivém, carrossel, casco de meu próprio corpo, novo navio. Então, parabéns, Lu, você conseguiu. Quanto a mim, venci, eu mesmo me venci. Eu, a minha oponente. Ouvia à volta a plateia gritando, de pé, com os braços erguidos nas arquibancadas,
¡Pila Coyote!... ¡El Coyote!... Venci porque conheço o boxe. E no boxe tem muito de rio, carrossel e arco-íris.