O texto a seguir faz parte do livro "Coros, contrários, massa", de Flora Süssekind (Selo Pernambuco/Cepe Editora), e você pode comprar o livro clicando aqui.

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Entre os trabalhos incluídos na seção Galeria da versão online do jornal O carioca há um deles, de Angelo Venosa (1954-2022), idealizado especialmente para visualização digital, que materializa, com certa autoironia, alguns dos motivos e princípios mais característicos do seu método artístico. Trata-se de um pequeno esqueleto de perfil, cujos braços e pernas se movem com alguma rapidez, produzindo-se, assim, uma figuração de movimento, e fazendo parecer que ele caminha a um ritmo sempre idêntico, sem que, no entanto, se altere de fato, em momento algum, o lugar que, desde a sua ativação, ocupa inicialmente na tela negra.

Se o caráter mecânico, rígido, dessa gesticulação, assim como a não progressão da figura no espaço, sublinham o dado cômico e transformam o esqueleto em uma espécie de autômato involuntário, o que, de fato, intensifica certo desconforto, e parece justapor ironia e autorreflexão, é o paradoxo, evidenciado nessa imagem, da conjugação do inanimado à dinamização, a contradição entre o tempo aparentemente morto das coisas imóveis, dos elementos sem um princípio próprio de mobilidade (como é o caso do esqueleto) e sua associação a um processo de temporalização, a um movimento de redimensionamento narrativo.

Do ponto de vista do trabalho de Angelo Venosa, o que esse pequeno “esqueleto animado” parece assinalar, de saída, é a recorrência, na sua obra, desde a primeira exposição individual, em 1985, e a sucessão de carcaças, vértebras, dentes, caveiras, crânios, imagens tomográficas, fósseis, moldes faciais próximos a máscaras mortuárias, imagens corporais seccionadas, descarnadas, ossificadas, sem vida ou qualquer figuração integralizadora. Desde seus “fósseis vivos”, como Ronaldo Brito nomeou as suas primeiras peças de escultura, de 1985 e 1986, à espécie de bacia óssea, de madeira e fibra de vidro, exposta no Ciclo de Escultura Contemporânea da Funarte em 1989, à carcaça de baleia instalada na Praça Mauá, em 1990, e transferida, depois de muita polêmica, para a Praia do Leme, no Rio de Janeiro, em 1998.

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Sem Título (Divulgação)

Desde, também, os muitos trabalhos com cera e dentes de boi, de 1993 e 1994, a peças em cera e chumbo, lembrando pedaços de vértebras, da mesma época. Dos crânios reais de boi à simulação, em mármore, de cabeças de fêmur, na exposição da Galeria Camargo Vilaça, em São Paulo, em 1994. Do crânio humano, exposto em 1997, e visualizado em meio a seu desdobramento em camadas de vidro enfileiradas, à imagem tomográfica de uma cabeça submetida a exploração radiológica — figurada por meio de uma sucessão de impressões em placas de vidro justapostas e exibida na mostra de 1999 da Galeria Camargo Vilaça.

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Turdos 21 (Divulgação)

Imagens inanimadas, descarnadas, anônimas e fragmentárias, do corpóreo, ora envolvendo despojos reais (como os crânios e dentes de boi), ora simulando-os (como no caso dos ossos em mármore carrara ou das (pseudo)cartilagens e peles em cera e resina), que seriam contrastadas, porém, por um outro tipo de rastro figural. Por um conjunto de trabalhos produzidos a partir do registro de uma presença física direta. Como é o caso das reproduções tomográficas, obtidas por exames via ressonância magnética, e retrabalhadas em camadas de vidro, ou em outros materiais, de que é exemplar o grande rosto, oco, fatiado, e virado para o chão, exibido na mostra Território expandido, do Sesc de São Paulo, em 1999.

É o caso, também, dos perfis do artista e de seus familiares, exibidos em 1998 no Paço Imperial, e feitos em vidro, com lâminas recortadas e dispostas em sequência regular. Ou, ainda, dos moldes de gesso do próprio rosto, a partir dos quais Venosa construiu, em primeiro lugar, uma tábua das distâncias que parecem singularizá-lo, e, em seguida, uma espécie de malha hexagonal de pontos de referência, que originaria, por sua vez, um duplo desdobramento na exposição de 1999 da Galeria Camargo Vilaça. De um lado, uma massa sólida, no chão, com pinos de alturas diferentes e, de outro, uma malha suspensa de esferas oxidadas de ferro, correspondendo esses pinos e esferas a cada um dos pontos mapeados no rosto.

Essa tensão entre rastros corporais contraditórios, configuraria, ao longo do conjunto da obra de Venosa, uma de suas linhas mestras. Estruturaria, ainda, de modo particular, trabalhos isolados e momentos distintos dessa trajetória. Daí Ronaldo Brito falar em “fósseis vivos” com relação às peças dos anos 1980 e Lorenzo Mammi chamar atenção, nas do começo dos anos 1990, para a dominância de “elementos em que o ser vivo se confunde com a coisa inanimada”.

Daí o conjunto de perfis vítreos que, de um lado, parecem individualizar, guardar a presença corporal do retratado, e, de outro, se aproximam a máscaras mortuárias anonimizadoras. Um efeito desrealizador semelhante àquele das imagens obtidas por exploração radiológica, por desdobramento em fatias ou por uma espécie de pontilhismo escultórico como acontece nos grandes rostos feitos de bolas e pinos oxidados de 1999. Animação do imóvel, de um lado; objetivação do que se afigura ainda vivo, de outro.

Angelo Venosa parece dialogar, nesse sentido, guardadas as diferenças evidentes, com algumas das paisagens corporais dominantes nas artes visuais modernas e contemporâneas. Nesse sentido, destacam-se os muitos trabalhos das últimas décadas do século XX envolvendo anatomias médicas, marcas corporais, impressões digitais, partes do corpo, moldes faciais. Ou, de modo diacronicamente mais amplo, exemplos como os das séries de cabeças trabalhadas por Brancusi e Giacometti, como as radiografias usadas por Meret Oppenheim, ou também uma obra como Booster (1967), espécie de retrato do artista enquanto esqueleto, de Robert Rauschenberg. Além dos autorretratos com esqueletos, dos anos 1980, de Selena Trieff, do crânio desenhado a chumbo por Gabriel Orozco, em 1997, dos trabalhos quase de taxidermista de Damien Hirst, com os seus crânios e cadáveres de animais expostos em vitrines, ou os de Christine Borland, como Os mortos ensinam os vivos (1997), em torno de cabeças, máscaras mortuárias e moldes anatômicos extraídos de um Instituto de Anatomia, de Munich, ou From life (1994–1996), todo ele em torno das possibilidades de identificação e reconstituição figural de um esqueleto asiático comprado (fácil e legalmente) pela artista.

Mas é com uma das categorias tradicionais da pintura de naturezas mortas — as Vanitas — e sobretudo com um de seus motivos-padrão — o crânio (desdobrado em ossos, esqueletos, perfis, radiografias) — que essa paisagem corporal óssea, anatômica, mortuária, de Venosa, parece se relacionar de modo mais intenso. De um lado, aspecto mais evidente dessa relação, por meio de uma consciência intensificada da transitoriedade, e da exposição-em-variação de um motivo temporal comum. De outro lado, e lembrando que Angelo Venosa iniciou a sua formação como artista voltando-se para a pintura, há o recurso ao memento mori, e suas formas diversas de apropriação das Vanitas, o que permite a ele uma especulação voltada para duas de suas formas de experiência plástica.

Não é de estranhar, nesse sentido, que, em seu trabalho como escultor, o artista tenha se voltado diversas vezes para a frontalidade pictórica, para as “peças de parede”, como já assinalou Rodrigo Naves. Ou que, por meio das imagens tomográficas (processo no qual objetos tri e bidimensionais são reconstruídos a partir de fatias unidimensionais), e da sua reprodução em chapas de vidro, discuta não apenas a relação entre massa e superfície, mas simultaneamente entre o pictórico e o tridimensional. Ou que pareça tomar emprestado do pontilhismo de Georges Seurat o método de notação, via pontos, das distâncias por meio das quais figuraria, em um volume sólido e em uma malha de bolas suspensa, o próprio rosto em dimensão gigantesca e quase informe na exposição de 1999.

O fundamental, nesse diálogo com as naturezas mortas, parece estar, no entanto, em um movimento semelhante de ênfase no aspecto temporal, realizado, paradoxalmente, porém, por um gênero (no caso das pinturas de Vanitas) ou por um meio de expressão (no caso da escultura) classificados, em geral, como antinarrativos, como voltados para objetos estáticos, para uma constituição exclusivamente espacial da forma. Talvez não seja à toa, nesse sentido, que Angelo Venosa apropriou-se exatamente do “gênero mais afastado da narrativa” (como diz Norman Bryson em seu estudo sobre a natureza morta), para sublinhar a experiência temporal, e a narratividade, no seu método construtivo. Uma ênfase que não se limita, evidentemente, à exposição do motivo temporal implícito nos seus crânios e carcaças, ou no emprego da cera e do osso como materiais. Mas que parece ter-se desdobrado, ao longo de sua obra, em três procedimentos fundamentais.

Em primeiro lugar, na relação constitutiva, em obras visualizadas isoladamente, entre o seu caráter de objetos a rigor inertes, estáticos, e um movimento concomitante de abertura à contingência, à instabilização, por conta, como registrou Ronaldo Brito, de uma “interioridade oca” que impediria o seu acabamento formal e as pressionaria no sentido de uma “existência experimental”.

Em segundo lugar, por meio do emprego de um procedimento serial. O que se manifestaria não só na repetição, com variações, de motivos, métodos e materiais, ao longo da sua obra. Mas, frequentemente, por conta da apresentação simultânea de determinada série de peças. Acentuando-se, assim, tanto as diferenças de organização formal perceptíveis entre elas, quanto a necessidade de uma temporalização da percepção, já que se deve dar conta de todo o conjunto e, ainda, das transformações operadas de uma peça para outra. Esse é o caso, por exemplo, dos perfis exibidos pelo artista em 1998. Ou da exposição em conjunto, em sequência, na Galeria Camargo Vilaça, em 1994, de doze blocos pequenos, feitos de cera e dentes de boi, que, à primeira vista, pareciam emprestar caráter de eco à sua visualização concomitante. A evidente semelhança entre eles acentuaria, porém, ao contrário, dissonância metódica, estrutural, expondo a disposição singular, diversa, sugerida, em cada um deles, para uníssono aparente, para elementos a princípio idênticos.

O outro princípio de temporalização, igualmente serial, característico ao trabalho de Venosa, tem um âmbito um pouco diverso de atuação. E transporta orientação narrativa, evidenciada na sucessão de peças em mútuo contraste, para cada uma dessas formas em particular, operando uma espécie de intrasserialização, uma afirmação de descontinuidade constitutiva, que se converteria, nesse caso, em princípio fundamental de seu método artístico. Pois se, de certo modo, não se deixa de ter uma apreensão global da obra, esta se apresenta submetida simultaneamente a um divisionismo, a um fracionamento de tal ordem que os vazios, os intervalos entre os materiais passam por uma exacerbação da sua performatividade. E produzem, assim, não apenas efeitos de interrupção, mas apontam para o princípio serial que, inerente à forma global, parece, no entanto, contradizê-la do seu interior.

É desse modo que se podem compreender as fatias, lâminas, os pontos e fileiras de dentes na organização formal dos trabalhos de Angelo Venosa. Tanto como componentes dinâmicos presentes no âmbito do aparentemente estático, e elementos do diálogo da obra com a hipótese da sua constante reorganização, quanto como pressão interna do tempo sobre a figuração. Acentuando-se, assim, ao contrário, uma espécie de contraparte sua, uma narratividade impelida, no entanto, nesse mesmo movimento, a voltar-se sobre si e se dar a ver. Como fatias de vidro, malhas pontilhadas, lâminas radiológicas, dispositivos cuja organização intervalar, se, por um lado, torna visível a dimensão temporal da obra, aponta, simultaneamente, para o seu contrário. Para uma reespacialização desses princípios de temporalização sob a forma de “vazios interiores”, de “espaços temporais” (seriais) em exposição contrastada e tensionamento mútuo.

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Anamórfico (Divulgação)

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