A Subida ao Calvário Brueghel 1564 WikimediaCommons

 

A erudição e a precisão são alguns dos modos usados pelo escritor Everardo Norões, colunista deste Pernambuco, para criar suas ficções. São características presentes no conto O quadro de Brueghel, que você lê adiante, e nas demais narrativas que integram o livro Garrafas que sonham macacos (Cepe Editora), que Norões lança neste mês, no Recife.

Com 19 contos, Garrafas que sonham macacos é o primeiro livro de ficções em prosa curta do escritor em quase dez anos - o último, Entre moscas (Confraria do Vento, 2013), venceu o Prêmio Portugal Telecom (atual Oceanos) em 2014. 

Em O quadro de Brueghel, vê-se a linguagem manipulada como algo exato, "como faca afiada: não há espaço para qualquer transbordamento de pathos", o conto "não fere os nervos, mas a inteligência; é, assim, mais implacável que circunstancial", como sintetiza o professor Lourival Holanda (UFPE) em texto sobre o livro. Associada a referências de diversas matizes, essa exatidão resulta, no conto, em uma perspectiva particular de ler/ver os entornos das ruas, das artes e da História, que surgem relacionadas de maneira próxima. 

 

 

***

Num sábado, fui à sessão da tarde ver o filme O moinho e a cruz, do diretor Lech Majewski. Primeira cena: a reconstituição de um quadro de Pieter Brueghel, A subida ao Calvário.
Saí do cinema perturbado. Desisti do passeio costumeiro à livraria do centro da cidade, onde tomo um café com bolinhos de nozes e despisto poetas de plantão para evitar conversas prolongadas. Faço isso desde que me separei de Lucinha.
Agora, sozinho, o desleixo instalou-se no apartamento: pilhas de louça por lavar, laranjas e bananas aguardando a podridão na fruteira. Duas vezes por semana vem Zefinha, a faxineira. Ela simula pôr ordem nas coisas jogando para baixo dos móveis a poeira mais rebelde e enfiando as pontas dos lençóis entre brechas da cama. Finjo que não vejo.

Parado na calçada do cinema, imaginei minhas telas trituradas pelas rodas dentadas do grande moinho do filme. Pinturas decorativas, enquanto Brueghel pintava seus quadros inspirado no que observava, mesmo sentindo-se ameaçado pelos soldados da Espanha.
Fico constrangido por trabalhar em projetos sob encomenda de arquitetos da moda. Paulo Cesar, com quem colaboro, é um deles. Insiste que o artista é obrigado à subserviência. Argumenta que em todas as épocas sobreviveu assim, sustentado por mecenas. Aceitar compromissos subalternos é estratagema do ofício, que nem mesmo um Leonardo conseguiu dispensar.
— O que teria sido de um dos maiores artistas da humanidade nos últimos anos de exílio sem os mil escudos de ouro pagos pelo rei da França?
Ouço tudo calado e faço de conta que concordo. É ele quem me faz encomendas. Quando são telas maiores, alugo um galpão e combino com o proprietário o pagamento com quadros. Posso até perder na troca, mas em contrapartida desfruto de um lugar silencioso, perto da bodega cujo caldinho de feijão é pretexto para minha cerveja.

De repente, perguntei-me:
— E Brueghel?
Acendi o cigarro.
O Rio Capibaribe, à esquerda, deslizando atrás de prédios decrépitos e muros manchados de lodo. À direita, a rua desembocando na Avenida Agamenon Magalhães, ligando Recife e Olinda, serpente a abocanhar o que ainda resta de história num emaranhado de sobrados, bares, favelas. E logo na primeira esquina, enorme escultura de um boi em cimento no pátio da churrascaria — monumento ao abate.
Tirei o celular do bolso. Disquei chamando um táxi.
Preferi recolher-me ao apartamento de dois quartos que acomoda meu pequeno ateliê: os esboços, os desenhos a nanquim, as esculturas, os papéis. No meio da desordem, a caixinha de música que reproduz o Yesterday, dos Beatles. Presente da Lucinha.

Velho conhecido, o taxista estacionou, abriu a porta e cumprimentou-me levando a mão à testa, numa espécie de continência.
— Boa tarde, doutor!
Gosto de seu Pedro. Conta histórias de clientes antigos e do submundo da cidade, fruto de sua experiência de mais de vinte anos de profissão. O carro arrancou com ruído no escapamento. Na esquina, dois flanelinhas jogaram água no para-brisa. Seu Pedro costumava ter à mão algumas moedas. Deu vinte centavos a um dos guris, que ergueu o polegar e correu em busca de outro automóvel.
Rumamos para o centro. No final da Riachuelo paramos no prédio onde moro, fachada com pastilhas de azulejos leprosos, apartamento no sétimo andar. Desci batendo a porta com força. Olhei para os lados, atento para a possibilidade de um assalto. Se ocorresse, seria o terceiro. O primeiro foi nas imediações da Casa da Cultura. Com a ponta de uma faca às minhas costas, ouvi uma voz de criança anunciar:
— Passa a carteira, tio! Passa depressa, senão te mato!
O outro, pouco antes de seis da tarde de um domingo, num estacionamento próximo ao Cais da Alfândega. Dois rapazes. Um, o cano da pistola à minha cabeça. Lembro do meu ímpeto de reagir neutralizado pelo olhar do comparsa, a mão trêmula apalpando a arma, pronto para desferir o tiro. O olho vermelho, vermelho.

Entrei no prédio e tomei o elevador dos fundos, único em funcionamento. Ordem do síndico para economizar energia. Tirei as chaves do bolso e abri as duas fechaduras da porta reforçada com chapas de aço.
A brisa que entrava pela janela voltada para o porto varria a fumaça do incenso que acendi para tentar diminuir o cheiro fétido vindo da rua, mistura de urina e fritura.
Observei do alto o movimento: pessoas caminhando em direção ao Parque Treze de Maio, roda de cerveja no bar da esquina, travesti abordando um cliente ao volante de um automóvel de luxo. Dois magricelas cheirando cola.

Perto do apartamento, a língua de rio escorrendo por trás do Teatro de Santa Isabel. Adiante, o excesso de luzes acesas no Palácio da Justiça estilo bolo de noiva, pintado em cores berrantes. Um amigo debochado comentou certa vez que é ali onde a Justiça é estuprada.

Deitei-me no sofá. Cheiro de mofo. Ao lado, a pequena estante feita com quatro tábuas de madeira separadas por tijolos. Na prateleira de cima, os livros de leitura mais frequente, entre eles o I Ching. Ao lado, um potinho com a efígie de um atleta grego seminu lançando dardos. Dentro, três moedas chinesas para as consultas. Na prateleira de baixo, um livro de capa vermelha, presente da namorada que conheci durante um estágio na École des Beaux-Arts, em Paris. Ela, modelo nas aulas de desenho para os estudos de anatomia. Posava sobre um estrado, na sala de pé-direito alto com enfeites neoclássicos nos estuques. Uma troca de sorrisos levou-me a convidá-la para um café no Chez Martin, perto do metrô La Muette. Os encontros repetiram-se e num domingo nosso passeio terminou no pequeno quarto onde ela morava desde que havia chegado de Nantes. Ficamos juntos quase um mês; na despedida, ofereceu-me aquele livro com pinturas de Brueghel. Retirei-o da estante, sentei no chão e respirei fundo antes de rever a reprodução de A subida ao Calvário, o mesmo da cena de abertura do filme.
Abri a página.
Vi um grande pássaro negro planando entre nuvens num céu de chumbo. Observei o chão pigmentado de verde e vermelho esmaecidos e a paisagem de colinas onde camponeses moviam-se entre homens a cavalo. Cavalos árabes, um deles todo branco, dando coices ao vento. Os cavaleiros, de aspecto marcial, usavam túnicas vermelhas, capacetes de ferro e empunhavam lanças.
Com uma lupa, examinei os detalhes da reprodução. Nos gestos dos personagens era possível adivinhar a crueldade dos soldados. As varas imensas, erguidas para o céu, os círculos nas extremidades eram bandejas aéreas com corpos de torturados cujos olhos haviam sido bicados pelos corvos.
No outro plano do quadro, uma Mater Dolorosa acompanhada por um séquito de camponeses vestidos em tecido grosseiro e calçando tamancos de madeira para poder caminhar na lama e nos chiqueiros, entre porcos e gansos. Num misto de medo e espanto, pareciam dizer a quem os observasse:
— Não se aproxime deste lugar maléfico!
Os homens a cavalo eram os espanhóis que torturavam, cegavam, enterravam os vivos em nome de Deus. E do Duque de Alba. Num dos cantos do quadro, uma data:
1564.

Quatro séculos separavam a procissão do Calvário de Brueghel de outro acontecimento: o golpe de Estado, Recife, Brasil, 1964.

Por que nenhum de nossos artistas concebera, como Brueghel, uma pintura que revelasse nosso martírio. Por exemplo, Gregório Bezerra, com uma corda ao pescoço, puxado pelo coronel Villocq berrando impropérios diante de uma população paralisada pelo medo e pela covardia. Tanques de guerra rondando a cidade, empresários de pistola em punho auxiliando militares a caçar supostos comunistas.
Falei em voz alta para mim mesmo, num acesso de indignação:
— Nunca pintamos nosso calvário!
Costumamos retratar mulatas, coqueiros, dançarinas, frutas, paisagens de pontes corroídas pela ferrugem e pela preguiça. Nenhuma cor de nossos quadros revela o que aconteceu entre nós, nenhum de nossos desenhos simboliza a dor a soar no regaço das coisas. Nossa pintura é cúmplice no esquecimento.

Acendi outro bastão de incenso e deitei-me no tapete da sala. A fumaça cheirava a sacristia, ao latim das missas cujas frases despertavam liturgias. O Ad Deum qui laetificat juventutem meam. “Deus que alegra minha juventude”. Juventude de merda!, blasfemei na época, ao saber o que significavam aquelas palavras.
Acendi o baseado e traguei com força.
Se juntasse alguma grana iria ao Marrocos fumar kif, verificar se a sensação era a mesma descrita por Walter Benjamin, ao experimentá-lo em seu quartinho de Marselha: sons de vozes levando-o a descobrir dialetos desconhecidos.
Pensava nisso quando, de repente, tomei um susto ao ver meu autorretrato na parede da sala. Minha imagem havia envelhecido: nariz mais adunco, lábios flácidos, pele do pescoço percorrida por estrias, colarinho da camisa amarelecido. O amálgama de cores também se transformara, o carmim destoava do fundo esverdeado. A pintura parecia ter sofrido uma metamorfose, como se durante minha ida ao cinema algum pintor tivesse penetrado no apartamento e retocado o quadro: agora era o rosto de um desconhecido e o fundo de tela sem paisagem não parecia o que eu havia pintado. Em nada o traço de minha mão.

Tarde da noite, entorpecido, vieram-me novamente as cenas do quadro de Brueghel. Pequeninas formas movimentavam-se através da fumaça de meu cigarro: um cavalo árabe arremetia coices, os lábios da Mater Dolorosa esboçavam um sorriso irônico, homenzinhos fugiam da nuvem que escondia o corvo gigante: o grande Pássaro da Morte.

Levantei-me.
No apartamento ao lado havia um rumor de festa.
Traguei o baseado até o limite. Entrevi um Grande Moinho como o do filme, atravessado por corredores por onde transitavam os condenados ao patíbulo: o lugar mais frio do Frio. Sorvi com mais força a nuvenzinha acinzentada que me levava a outras esferas. Minha boca ficou seca, as sombras embaralharam-se. Invadiu-me uma melancolia sem motivo aparente. E senti uma mão a adivinhar-me a fronte. Uma mão de alguém saído daquela paisagem gelada do quadro de Brueghel.
Sonolento, pus-me a ouvir o CD recomendado por um amigo. Ele repetia que a música popular brasileira parara no tempo e nada havia de novo desde os anos 1980. Restava “viajar” por outros lugares, continentes, nuvens onde houvesse bandas interessantes como aquela.
Deitei-me novamente no sofá. Continuei a ouvir a música, mas aos poucos ela foi sumindo, sumindo... Comecei a contar cavalinhos árabes. Cavalinhos percorrendo colinas semeadas de imensas varas com plataformas nas extremidades, nas quais jaziam cadáveres de torturados e em torno pequenas bailarinas dançando ao som da banda Beirut.

And I know winter will pass by slow
Without my heart what can I do?

And we grow fat on the charms
Of our idle dreary days
Our desires have died
Decadence to play
Wroclai.

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